Asunción, 07 de junho de 2009.
Caros amigos,
estou de volta da Bolívia, onde estive para rever a experiência de fé começada pelos jesuítas há 300 anos atrás, na selva de Chiquitânia, e ainda hoje visível nas pessoas que, não obstante a teologia da libertação, continuam vivendo o cotidiano no modo mais belo e concreto da relação pessoal com Cristo.
Vi crianças sujas e famintas tocando violino, contra-baixo, órgão... Vi essas crianças de 5 a 10 anos, cadavéricas, tocando o violino tendo a partitura de “La donna è mobile”, de Verdi, à sua frente. Imaginem a minha comoção! No meio da selva, onde só havia cabanas e uma igreja belíssima – fruto da fé dos jesuítas e dos índios – com três naves ladeada de casebres de barro e palha. Nada de estradas, apenas trilhas. Como na Idade Média: um povo gerado pela fé que vive em cabanas pobres, desagradáveis, entre as quais se ergue a majestade e a beleza da igreja.
Estando com estas crianças, pensava no que o Papa disse nos funerais de Giussani: “na sua casa tinha pouco pão, mas muita música”. Exatamente como na selva Chiquitânia: as crianças não têm pão, mas tocam violino, contra-baixo, flauta, harpa, viola. Aquilo que, para vocês, é uma escola – para aqueles que, economicamente, podem – ali é um fato que cada criança vive. Pode-se ficar sem comer, mas não se pode viver sem o violino. Meu Deus! De fato, na selva, encontrei o Movimento, um movimento como o de Marcos e Cleuza, como este de São Rafael: um movimento onde aquilo que é chamado “lixo” do mundo vive comovido, esperando a morte. Esperando-a com a música ou pintando – como as pinturas que mando para vocês.
Aquilo que Carrón nos dizia nos Exercícios (refere-se ao Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação; ndt), falando da positividade das circunstâncias – que, para mim, são o sorriso, a ternura de Deus – eu o vivo com paixão, a cada dia, e experimento sua beleza, exatamente como aqueles curumins que tocam violino em circunstâncias impensáveis.
Duas circunstâncias em particular, nestes dias, me educaram a ver a positividade do real:
1. Hoje, uma jovem mãe com dois filhos, que emigrou há alguns anos sozinha para a Espanha, voltou em coma para o Paraguai, graças à piedade cristã de algumas irmãs que pagaram o avião para a família. Chegou viva por milagre e, agora, já está na nossa clínica. Sua chegada foi dolorosa para os seus filhinhos que a viram partindo para a Espanha, em busca de fortuna, saudável. O que eu poderia dizer a eles? Abraçá-los e fazê-los sentir a ternura de Jesus que, mesmo se em condições terminais, permitiu a eles revê-la ainda viva.
Certamente que as perguntas são tantas... uma jovem mãe obrigada a emigrar, a dureza do período na Espanha, os filhos distantes, a solidão e, finalmente, a doença e o coma... Não é possível não se perguntar onde está a positividade disso tudo. Então, me volta à mente a Escola de Comunidade onde Giussani fala do “desejo de um bem árduo”, da “inevitável incerteza”, do “caminho que é caracterizado pela fadiga” e “a força de Jesus”. É como chegar a dizer que o positivo desta situação é, para mim, viver estas palavras de Giussani, viver a certeza de que Cristo é o sentido de tudo (doença e saúde) e, por isso, o caminho é o mesmo que Jesus seguiu até o calvário. É uma certeza – cheia de raiva, às vezes, cheia de obscuridade – como a de Jesus no Getsêmani, mas é uma certeza que torna mesmo a raiva da impotência e da solidão um grito: “Não a minha, mas a Tua vontade seja feita” ou “nas tuas mãos eu entrego o meu espírito”.
“A Tua graça vale mais do que a vida”: todas a semanas, nas “horas”, rezamos estas palavras... mas, aqui, o instante é que nos “obriga” a reconhecer esta verdade. Então, se a graça, Cristo, vale mais do que a vida, vocês entendem por que não existe dor, sofrimento, que não seja positivo? Então, vocês entendem por que esta mulher foi acolhida por nós, vinda da Espanha, como se acolhêssemos Jesus, em coma? “A Tua graça vale mais do que a vida”: o nosso hospital é a memória disso.
2. Marciana, uma bela garota que está morrendo de câncer, tem 20 anos. Se Deus não faz um milagre, os seus dias estão contados. No entanto, é feliz na certeza de estar na reta final.
Olhem seus últimos quadros, pintados nestes dias, com uma fadiga enorme, com os olhos cheios de letícia, mesmo que cheios de dor. Tem metástases para todo lado, dores imensas... mas, não é a morfina que lhe acalma as dores, mas a fé mais forte do que o granito. Ela repete continuamente: “a vida é bela... padre, estou bem”. Pinta com fadiga, sustentada pelo seu pai... e pinta com cores vivas, pinta a realidade. Não é abstrata a sua pintura, porque ela vive a realidade, vive o câncer, vive cada circunstância com a intensidade das cores dos lapachos (como são conhecidos os ipês – Tabebuia impetiginosa –, no Paraguai; ndt) amarelos, brancos e rosas, quando florescem. Para ela, ou a pintura descreve a realidade ou não é uma pintura, porque a doença que ela viva não é abstrata, é concreta, concretíssima e não lhe permite sonhar, fugir da concretude das dores terríveis da metástase óssea. Os seus quadros são lindíssimos porque afirmam o que existe, a realidade, e, nesta consciência, o olhar de Marciana, pintando aquilo que vive, gritam: “Ele existe”.
Vejam o que ela me escreveu... e algumas frases escritas como dedicatórias atrás de dois quadros de que lhes mando as fotos.
“Chamo-me Marciana Elizabeth Estigarribia, tenho 20 anos de idade, fui abandonada pela minha mãe quando nasci. Cresci com minha avó paterna. Com ela, tive uma infância bela e nunca me faltou nada, até que ela morreu. Pela primeira vez experimentei o maior sofrimento da minha vida: minha “mãezinha” morta (era como eu chamava minha avó). Fui para a casa de meu pai e ele continuou a me dar todo o calor que nós, seres humanos, precisamos na nossa vida.
O meu calvário: alguns dias antes do Natal de 2008, manifestaram-se os primeiros sintomas da minha doença. Passado o Ano Novo, fiz alguns exames e descobri a minha doença: hepatocarsinoma. Depois de percorrer hospitais públicos e privados, ficamos sem nenhum recurso financeiro. Meu pai não podia mais trabalhar e os remédios para o meu tratamento custavam muito caro.
Meu pai, no seu desespero, começou a vender os meus quadros, que eu havia pintado para saldar as minhas despesas. Porém, a minha situação era cada vez mais crítica.
À noite, rezávamos juntos a Deus e a Nossa Senhora, pedindo-Lhes pela minha saúde e por todos os necessitados. O Senhor nos escutou e guiou para chegarmos a esta Clínica, onde estou circundada por pessoas maravilhosas. Graças a eles, estou melhorando e peço a Deus que me dê força para continuar a fazer coisas bonitas até o último momento da minha vida.
Aos jovens, eu gostaria de dizer que não desperdicem as suas vidas, que valorizem aquilo que Deus lhes deu.
O meu afeto especial ao Padre Aldo por me ter oferecido tanto amor no momento mais difícil da minha vida. Que Deus infunda nele abundantes bênçãos, para que continue a ajudar os doentes.
Que Deus abençoe a todos vocês”.
Foto 1: Amigos. É aqui – junto com amigos – que ela sofre, esperando a morte... isto é, esperando a vida na sua plenitude.
Foto 2: “As coisas belas e sinceras nascem do coração e nunca mais morrem”.
Foto 3: “Que tristeza me dá saber que existem pessoas que não veem as maravilhas que Deus lhes dá para viver”.
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