quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O que resta do Pai?



Por Jonah Lynch

Impressiona pela profundidade das intuições o último trabalho do psicanalista Massimo Recalcati, Cosa resta del padre? (O que resta do pai?, em tradução livre; ndt), na livrarias pela editora de Raffaello Cortina. 
Vai muito além das minhas competências avaliar a interpretação de Lacan que nutre e sustenta o pensamento do autor. O que gostaria de considerar é apenas uma pequena parte do livro, que porém é uma janela útil para se chegar ao conjunto da proposta de Recalcati. Trata-se de um dos exemplos literários tomados como “testemunhos” ao final do livro: a figura do pai em A estrada, de Cormac McCarthy. Recalcati sintetiza assim a lição que aquele pai nos dá, através do seu testemunho da esperança, do seu “levar o fogo”: “A vida não é abuso, não é luta para o triunfo do mais forte, não é violência cega. A vida é dedicação, cuidado, presença. A dedicação de um pai a um filho. O amor não é amor da vida, não é amor pelo mundo. O amor é amor do nome, é amor por um nome próprio, pelo mais particular, é amor de um pai por um filho. Nunca é amor pelo universal” (p. 162). Na página seguinte, o autor afirma nas entrelinhas uma novidade desta posição quanto ao que diz respeito à tradição cristã: “O verbo existe apenas através de uma criança. Não é mais aquilo que redime e justifica a vida, não é mais aquilo que pode salvar o mundo, mas é aquilo que pode continuar a existir somente através da singularidade de uma vida” (p. 163). O autor conclui a sua interpretação de McCarthy com um decálogo minimalista: “... algo que resiste, que não cede diante do próprio desejo, a algo, uma sobra de pai que, mesmo no esfacelamento e na decomposição niilista de todos os valores, insiste em transmitir com o fogo a vida como possível. Não matar, não comer, não violentar o outro homem. O que sobra do pai é o ser portador do fogo na noite escura de um mundo sem Deus” (p. 168).
Foi exatamente isto que me comoveu em A estrada. O mundo é mais feio quando vivido sem doação. O egoísmo não nos realiza. Com Recalcati, estou convicto de que seja melhor, mais conveniente para si e para os outros, viver a gratuidade, mesmo que seja na ausência de alguma justificativa transcendente.
Mas, me pergunta se a beleza sedutora de afirmar o outro não obstante tudo, “na noite escura de um mundo sem Deus”, não possa também esconder uma falsidade sutil. Este altruísmo parece ter necessidade da cenografia de um mundo desesperado e brutal. De outra forma, o seu esforço nobre e trágico não ressaltaria. Mas quem me garante que o sacrifício e o meu fazer as vezes do Pai-eterno ausente não seja, na realidade, a minha necessidade de me sentir um herói?
A resposta a esta pergunta está na experiência do sacrifício por amor, tema pouco valorizado no livro de Recalcati. Ele chega à soleira do problema, nas últimas páginas, dedicadas ao filme de Clint Eastwood, Gran Torino, mas não o enfrenta.
Não insisto sobre este ponto apenas por um senso de conservadorismo militante, mas porque é estranho como Recalcati recusa o Deus cristão e, ao mesmo tempo, acaba fazendo um retrato Seu em muitos aspectos preciso, comovente e desejável.
Parece que o axioma tantas vezes repetido do “céu vazio” seja simplesmente uma opinião do autor que tem pouco que ver com o conteúdo da sua proposta. Estamos de acordo praticamente em tudo: graças a Deus que o céu não contém a terrível presença do deus de Sartre ou de um pai-tirano como Zeus. Tem razão, é muito sugestivo descrever o pai, com Lacan, como aquele que une desejo e Lei. É fundamental a experiência do limite e da falha, assim como é fundamental experimentar a vida como mistério superabundante, e viver tanto a errância quanto a pertença, trazidas à tona pelo autor com uma referência ao filho pródigo.
Mas quem foi que disse que não há um vínculo forte e real entre a doação de um pobre pai perdido nas cinzas pós-apocalípticas e a suma gratuidade do Pai criador? Por que não afirmar também esta possibilidade? Ela exalta, não elimina, a beleza da “singularidade de uma vida”.
Fico tocado que aquilo que Recalcati propõe e deseja seja justamente aquilo que Jesus fez. Ele não resolveu os problemas. O Onipotente não dominou com seu poder, mas se humilhou e se comunicou a poucas vidas singulares, aos apóstolos.
Não iluminou a noite com uma mágica solução deus ex machina. Mais do que isso: ele transmitiu o fogo da caridade, que rende a vida possível e belíssima, mesmo quando é inteiramente vivida no vale escuro do mundo hiper-moderno. Tu estás comigo: não temerei mal algum. Sobretudo, não temerei que amanhã seja inevitavelmente pior do que hoje. Aquele fogo que Tu me acendeste poderá passar não apenas a um filho, mas a dois, talvez três. Será preciso o tempo, mas assim nascerá um povo luminoso.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 12 de outubro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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