terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Bento XVI: o alargamento da razão e a caridade

Proponho este texto* de D. João Carlos Petrini:

O caminho indicado pelo papa é alargar o uso da razão, levar a sério toda a extensão da experiência humana

Nos pronunciamentos de Bento XVI, dois temas se colocam como proposta de caminhos diante dos limites e das contradições da sociedade moderna: o alargamento da razão e a caridade.
O papa parece conduzir a igreja para fora da posição de uma instituição acuada, na defensiva diante de novos problemas morais. Ele procura dialogar com todos que, mesmo não partilhando a fé cristã, se preocupam com o vazio de sentido e de perspectivas e com o niilismo atual, definido como "gaio" - sem inquietação, aparentemente sem drama - por Augusto del Noce, frutos de uma razão que fechou as portas à dimensão da profundidade e do significado.
No discurso na Universidade de Regensburg, o papa Bento XVI afirma: "Todos somos gratos pelas grandiosas possibilidades que o mundo moderno abriu ao homem (...)". E aponta uma necessidade urgente: "Um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque, com toda a alegria diante das possibilidades do homem, vemos também as ameaças que sobressaem dessas possibilidades e devemos perguntar-nos como podemos dominá-las. Só o conseguiremos se (...) superarmos a limitação autodecretada pela razão ao que é verificável na experiência e lhe abrirmos de novo toda a sua vastidão".
Esse conceito moderno de razão, que restringe o seu campo de ação, "se baseia, em síntese, num resumo entre o platonismo (cartesianismo) e o empirismo que o sucesso técnico confirmou". E explica: "Somente o tipo de certeza derivante da sinergia de matemática e empiria nos permite falar de cientificidade. O que pretende ser ciência deve confrontar-se com esse critério (...). Com isso, encontramo-nos diante de uma redução do leque de ciência e razão que é obrigatório pôr em questão".
O horizonte do conhecimento coincide, então, com o mercado: o que vale a pena conhecer é o que pode ser analisado, avaliado pelo lucro e pelo poder que proporciona. Da realidade, se conhece apenas uma parte, a que cabe nos esquemas explicativos que a ciência é capaz de construir. A realidade fica esvaziada, nada mais parece conter além do que pode ser calculado.
A esse respeito, o papa fala: "Se a ciência, no seu conjunto, é apenas isso, então é o próprio homem que, com isso, sofre uma redução. As interrogações propriamente humanas, isto é, "de onde" e "para onde", os questionamentos da religião e do "ethos" não podem encontrar lugar no espaço da razão científica (...) e devem ser deslocados no âmbito do subjetivo. (...) A consciência subjetiva se torna, portanto, a única exigência ética".
Uma racionalidade assim estruturada se torna incapaz de realizar um verdadeiro diálogo com as grandes religiões do mundo, diálogo atualmente urgente pela intensidade do intercâmbio que os povos vivem. Afirma o papa: "Uma razão que diante do divino é surda e rejeita a religião no âmbito das subculturas é incapaz de se inserir no diálogo com as culturas".
Como poderemos construir, no contexto multicultural atual, uma sociedade democrática e pluralista, capaz de respeitar e valorizar o aporte de cada grupo, em clima de solidariedade e paz social, se o laicismo dominante ignora e agride as identidades religiosas? As charges sobre Maomé bem simbolizam esse problema.
O caminho indicado pelo papa é alargar o uso da razão, levar a sério toda a extensão da experiência humana, surpreender todos os aspectos da realidade, numa inesgotável abertura da razão diante da inexaurível provocação do real, pois a razão é exigência de totalidade. "Para essa vastidão da razão", afirma Bento XVI, "convidamos os nossos interlocutores".
Outro tema merece ser aprofundado: "O amor - 'caritas' - será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há nenhum ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor se prepara para se desfazer do homem enquanto homem" ("Deus Caritas Est", nº 28).
No mundo contemporâneo, a capacidade de amar ficou reduzida porque as pessoas se relacionam de modo utilitarista, centradas em si mesmas.
O papa irá insistir na idéia de que a realização plena do amor implica a dimensão de doação de si ao outro e que essa doação não pode se fechar nas relações íntimas, mas deve abrir-se a todos os que necessitam de amor e apoio.

*Este texto foi publicado na Folha de São Paulo e encontra-se disponível no site da Folha.
DOM JOÃO CARLOS PETRINI, doutor em ciências sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), coordenador do mestrado em família na sociedade contemporânea da UCSal (Universidade Católica de Salvador, BA), é bispo auxiliar de Salvador (Bahia).

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