quarta-feira, 18 de julho de 2007

Ao Divino Assassino

Um dia após o trágico acidente do vôo JJ3054 da TAM, e quase um mês depois da morte do poeta Bruno Tolentino, relendo suas poesias, encontrei uma que ajuda a olhar para a dor que, tenho certeza - pela dor mesma que sinto eu -, tantos estamos enfrentando agora:

Litania concebida ante o Sagrado Coração,
à época do acidente fatal de Anecy Rocha

Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível
é sempre assim? Não tens um refratário
à hora do massacre - um mais sensível

que atrasasse o relógio, o calendário?
Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino dói no campanário.

Começa a amanhecer e uma vez mais
rebelo-me, mas sei que a minha vida
não tem como ou por que voltar atrás.

Aceito que a mais dura despedida
é bem mais que metáfora do nada
a que se inclina o chão; que uma ferida

e a papoula sangrenta da alvorada
pertencem ao mundo sobrenatural
tanto quanto uma lágrima enxugada

à beira de um caixão. Mas afinal,
Senhor, amas ou não a humanidade?
Não fui ao escandaloso funeral

e imaginá-la em Tua eternidade
dói demais! Vou passar mais este teste,
sim, mas protesto contra a insanidade

com que arrancas a muque o que nos deste!
Tu sabes que a soberba da família
era maior que a dela e eu tinha a peste -

pai e mãe apartavam-me da filha
e o irmãozinho nem falar... E hoje, coitados,
como hão de estar? Aqui é a maravilha,

as genuflexões... Os potentados
e os humildes, a nata da esperança,
todos chegam por cá meio esfolados,

sangrando como a luz. Não só da França,
toda a Europa rasteja até aqui
esfolando os joelhos, não se cansa

de ensangüentar-se até chegar a Ti,
e ao menos a um pixote do Além Tejo
restituíste a vista; eu quando o vi

solucei - mas que o cego e o paraplégico
saiam aos pinotes, que o Teu coração
se escancare e esparrame um privilégio

aqui e outro acolá na multidão,
só me faz perguntar: E ela? E ela...?
Não consigo entender que a um alejão

concedas tanto quanto a uma camélia
Tu deixas despencar... Por quê, Senhor?
Olho tudo do vão de uma janela,

mas vejo a porta de um elevador
escancarar-se sobre um outro vão,
um vão sem chão. E a seja lá quem for

aqui absurdamente dás a mão!
Me pões trêmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor - mas consolado não.

A mesma mão que fez gato e sapato
da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,

Dominus dixit... Mas quem merecia
mais do que uma açucena matinal
um manso desfolhar-se ao fim do dia,

quem mais do que uma flor, Senhor? Igual
nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos,
tinha direito a um fim mais natural,

à morte numa cama, em casa ao menos...
Mas não - tinha que ser total o escândalo!
Por que, se nem nos circos mais extremos

Teus mártires andaram despencando
sobre os leões, se nem o lixo cai
de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!

Não vim denunciar o Filho ao Pai
ou o Pai ao Filho, não vim dar razão
aos que recusam e usam cada ai

contra a humildade; vim porque a Paixão
me chamou pelo nome e a alma obedece
e aceita suar sangue - como não?

Mas não sei mais unir o rogo à prece
do que a elegia ao hino de louvor,
não sei amar-Te assim. Caso o soubesse

teria que ficar aqui, Senhor,
aqui, arrebentando-me os joelhos,
esfolando-me todo ante um amor

que vai tornando sempre mais vermelhos,
mais duros os degraus do Teu altar.
Tu, que tudo consertas, dos artelhos

que desentortas e repões a andar
até às pupilas mortas de um garoto,
do cachoupinho que me fez chorar;

Tu, que a este lhe dás a flor no broto
e àquele o lírio pútrido do pus;
Tu, que passas por um de quatro e a um outro

pegas o colo e entregas a Jesus;
Tu que fazes jorrar da rocha fria;
Tu que metaforizas Tua luz

ao ponto de fazer de uma agonia
um puro horror ou a morna mansuetude -
que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?

Quando eu agonizar, boiar no açude
das lágrimas sem fundo... Quando a fonte
cessar de soluçar e uma altitude

imerecida me enxugar a fronte...
Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras
que a mim me embale a barca de Caronte,

como o fazia a velha Cantareira,
o azul da travessia... A Irrecorrível
arrasta a cada um de uma maneira

e a quem quer que se abeire ao invisível
recordas a promessa: aquele a escuta
e este a recusa porque a dor é horrível,

mas, se a todos a última permuta
terá sempre o sabor da anulação,
o travo lacrimoso da cicuta,

a ela Tu negaste o próprio chão,
deixaste-a abrir a porta sem querer!
Nunca falou na morte, e com razão,

intuía, quem sabe, o que ia ver...
Sentença Tua? Em nome da promessa
não há negar Teu duro amanhecer -

mas quando arrancas mais uma cabeça
como saber que és Tu, que não mentia
O que ressuscitou? Talvez na pressa,

no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,

metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão

de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta. Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,

se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Arial por Calibã...?
Alvorece, a manhã beata velha

enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso: ela morreu... Hoje, amanhã,

enquanto Te aprouver e até que dê
a palma ao prego e o último verso à traça,
vai doer - mas Amém! Não há porque

amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não... Tudo dói, menos a graça,

mata, Senhor, que a morte não faz mal!

* Tolentino, B. (2002). O mundo como idéia: 1959-1999. São Paulo: Globo, pp. 244-249.

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