Dilma Rousseff, estabeleceu o presidente Lula, será apenas um nome para preencher o que chamou de "vazio" na cédula eletrônica de 3 de outubro. "Eu mudei de nome e vou colocar a Dilma lá", discursou ele na convenção do PT que homologou a candidatura da ex-ministra. Que outro governante, a não ser ele, teria a caradura de reduzir à absoluta insignificância a fiel seguidora a quem escolheu solitariamente para lhe suceder? Só mesmo um político que ama a si mesmo sobre todas as coisas e se tosta ao sol de uma superlativa popularidade poderia dizer com desprevenida franqueza o que desde sempre era óbvio a todos quantos acompanham a operação eleitoral lulista: a sua decisão de disputar, por interposta pessoa, o terceiro mandato que a lei lhe veda.
Lula não se pejou de humilhar a sua criatura, cuja incapacidade de respirar politicamente por si rivaliza com uma falta de apelo e carisma que resiste aos esforços dos melhores marqueteiros. Nem os 1.800 convencionais petistas reunidos domingo em Brasília tiveram algum momento de genuína empolgação ao longo do seu discurso de 50 minutos - salvo quando ela se desmanchava em louvações ao patrono, o que fazia com patética insistência. Mas, para ele, a dignidade da candidata, para não falar em autonomia, é o que menos importa. Já se sabe que, tão logo termine a Copa do Mundo, Lula mergulhará ainda mais fundo do que até aqui na operação de sair pedindo votos para si sob outro nome.
O teatro começou na própria convenção, concebida para exaltar a condição feminina de Dilma. Nas pesquisas, como se sabe, a maioria das mulheres prefere o adversário José Serra. O artificialismo da montagem ao menos foi coerente com o confronto postiço armado por Lula entre "nós e eles, pão, pão, queijo, queijo", como se os aspirantes ao Planalto fossem de fato ele e o antecessor Fernando Henrique. À candidata em carne e osso resta falar em "seguir mudando", mas "com alma e coração de mulher". Pode-se contar, durante a campanha, com uma proliferação de platitudes do gênero, testando a paciência daquela parcela do eleitorado que ainda acredita que os candidatos devem lhe oferecer "pão, pão, queijo, queijo", como sinônimo de propostas e prioridades.
Para Serra, trata-se de um desafio. Não, evidentemente, porque lhe faltem uma coisa ou outra. Mas porque, nesta campanha que o lulismo fará tudo para manter engessada no molde plebiscitário, será pouco para o ex-governador contrapor o noviciado de sua oponente com a sua indesmentível experiência, como tornou a assinalar no sábado, em Salvador, na convenção do PSDB que ratificou a sua indicação. "Não comecei ontem e não caí de paraquedas", disse então. Ele terá de se haver com o presidente que não se cansará de dizer que estará na cédula com outro nome. Até a convenção, Serra parecia pensar duas vezes antes de não criticá-lo. Chegou a afirmar, numa espécie de fuga para a frente, que Lula "está acima do bem e do mal".
Bem diverso foi o seu tom na festa tucana. Dessa vez, atacou a presidência imperial de Lula, a sua convivência com a corrupção, o aparelhamento do Estado, as afinidades do presidente com ditadores. Duas passagens de sua fala foram especialmente pontudas. Na primeira, lembrou que "o tempo dos chefes de governo que acreditavam personificar o Estado ficou para trás há mais de 300 anos", para emendar: "Luís XIV achava o que o Estado era ele. Nas democracias e no Brasil, não há lugar para luíses assim." Na segunda, pregou "o repúdio da sociedade" a quem "justifica deslizes morais dizendo que está fazendo o mesmo que outros fizeram ou que foi levado a isso pelas circunstâncias". Estes "são os neocorruptos".
Serra teria decepcionado os 8 mil militantes presentes no evento que abre a temporada eleitoral propriamente dita se não fizesse as suas críticas mais pertinentes a Lula e ao lulismo - ainda mais sob o impacto da revelação de que arapongas aparentemente a serviço da campanha de Dilma quebraram o sigilo fiscal do vice-presidente executivo do PSDB, Eduardo Jorge Caldas Pereira.
Mas, perante o eleitorado, Serra não poderá transformar o incensado Lula em alvo nem fingir que ele não existe.
* Extraído d'O Estado de São Paulo, do dia 15 de junho de 2010.
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