quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Cartas do P.e Aldo 177

Asunción, 15 de janeiro de 2011.

Caros amigos,
Nestas semanas, estou com o pensamento fixo sobre dois fatos que encontramos no Evangelho: o nascimento e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz e o olhar de Jesus a Zaqueu.
1. O nascimento e a morte de Nosso Senhor: os primeiros que foram encontrá-Lo em Belém eram pastores. Normalmente, quando pensamos nos pastores, temos deles uma imagem bucólica ou romântica. Mas, não acredito que esta imagem corresponda à realidade. Eram beduínos, deslocavam-se continuamente, vivem dias cheios, roubavam, assaltavam... uma vida certamente desordenada, vida de pecadores. Penso neles assim, porque me recordo dos pastores da minha terra, que eram “bandidos”, não tinham moradia fixa e tantas vezes nem tinham uma família. Deslocavam-se da montanha ao mar segundo as estações. Causavam danos em todos os lugares por onde passavam, roubando... concretamente, era uma vida desordenada, e a blasfêmia era a sua linguagem normal. Viviam com suas ovelhas, cavalos, jumentos e cães, se tornando, às vezes, como eles. Não quero pensar no filme dos irmãos Taviani – “Padre padrone” (Pai chefe; ndt) –, mas acredito que eles faziam parte, de alguma maneira, daquela categoria... em suma... eram pecadores. Como aqueles dois que estavam ao lado de Jesus, na cruz. Amigos! Tudo isso é desconcertante! No início, como no fim, Jesus se encontra entre pecadores, assim como durante a sua vida. E isto me enche de comoção, porque ressalta o fato que Jesus veio para nós, pobres filhos de Eva, veio graças à nossa pobre e frágil humanidade. Por isso, é espontâneo para mim me perguntar: aquilo que Carrón nos diz sobre a nossa humanidade como caminho para Cristo é o ponto sobre o qual trabalhamos seriamente? Penso nisso porque, sem uma grande simpatia pela nossa humanidade assim como ela é, o que quererá dizer que Cristo é contemporâneo? Para mim, o encontro com Cristo coincidiu e coincide com uma afeição grande pela minha humanidade: a alegria de ser homem, a liberdade de olhar com ironia os meus pecados, os meus limites. Não é mais o pecado, o limite, a me definirem, mas aquele olhar, assim como, para os pastores, uma vez que O viram, assim como para aquele ladrão, uma vez que, sobre a cruz, virou a cabeça e fixou Aquele Homem. Graças àquele Olhar, roubou dEle o paraíso. Um verdadeiro “ladrão” até ao fim! A simpatia pela nossa humanidade, semelhante àquela dos pastores ou dos dois ladrões na cruz com Jesus, cresceu ou permaneceu escondida num canto do nosso eu? Fico comovido por sentir-me abraçado por aquele menino, da mesma maneira que os pastores, ou aqueles dois bandidos, um dos quais entrou no paraíso no último instante da sua vida, quando reconheceu em Jesus o Filho de Deus. Amigos, será que nos damos conta de que Cristo precisa do nosso limite, do nosso temperamento?
Nestes dias, recebi na clínica, pela terceira vez, um rapaz doente de câncer. Um rapaz que vive na rua, com uma experiência terrível de amizades, tentativas de homicídio, de furtos, droga etc. Tem um câncer que parece uma pedra aguda na cabeça e outro na parte direita do pescoço que parece uma bola. Tantas vezes o recebemos e cuidamos dele, tantas vezes escapou, deixando-me o coração partido. Foi muitas vezes para a cadeia. Agora, voltou porque não dá mais conta, está acabado. Tem 18 anos. Ontem, me pediu a confissão. Foi, de fato, um reacontecer daquilo que aconteceu aos pastores ou aos dois na cruz, ou melhor, àquele que pediu perdão. Eu o olhava nos olhos pretos e lúcidos, enquanto pedia perdão. “Eu te absolvo...” e toda a sua história de miséria se tornou, de uma só vez, uma história de graça.
Amigos, pudéssemos nos deixar abraçar por aquele menino ou por aquele Homem que veio, vive e se faz presente todos os dias para nos dizer “amei-te de amor eterno, tendo piedade do teu nada”! Nestes dias, o calor chegou a 42º e, no entanto, mesmo isso é graça e me permite dizer, mesmo se todo molhado de suor e com a respiração ofegante, “Tu, oh meu Cristo”. E assim, tudo se torna uma graça, uma vibração apaixonada pela ternura de Jesus, que me faz olhar para os meus filhos tão belos com uma ternura única, um pouco como aquela de Jesus. Olhando-os, acho-os de uma beleza indescritível, sorridentes, vivos, certos daquele “eu sou Tu que me fazes”, ainda que tendo vivido violências terríveis, como as crianças que Herodes assassinou tentando eliminar também a Jesus.
2. O olhar de Zaqueu: impressiona-me e me conforta ver como Carrón nos provoca continuamente com este fato... e quanto mais assimilo aquele olhar, tanto mais sinto vibrar dentro de mim aquilo que Zaqueu experimentou no momento em que Jesus o chamou pelo nome. Aquele instante ficou pregado na minha mente, aquele átimo no qual se encontraram o olhar de Zaqueu e do Mestre. Tentem pensar, em meio aos problemas de todos os dias, no significado do sentir-se olhados, fixados daquele modo! Tudo se desfaz, se ilumina. Não desaparecem os problemas, os estados de ânimo, as doenças, a depressão, mas tudo se torna outra coisa, porque aquele olhar muda tudo, abraça tudo, domina tudo.
Florêncio é um rapaz de 20 anos, sozinho no mundo, foi recolhido por uma mulher com problemas psiquiátricos. Um drama dentro de outro drama. Miséria, fome, abandono. E, finalmente, um câncer “comeu” o rosto do rapaz, que, hoje, está terrivelmente desfigurado. A “mãe”, internada diversas vezes no manicômio. Conseguimos tirá-la deste lager e levá-la para junto do filho. Dia e noite, ela o assiste com uma amabilidade tão grande que nós, “sãos”, se não vibrássemos como Zaqueu por Jesus, não conseguiríamos entender, ou melhor, não seríamos nem mesmo capazes de nos dar conta. Olhando para aquele rapaz moribundo que, de vez em quando, retoma a consciência por um pouco, lhe pergunto “como está, Florêncio?”, e ele, levantando levemente o polegar da mão, me faz entender: “bem”. Outro dia, pensávamos que estivesse para morrer e a mãe me disse: “Padre, prefiro levá-lo para casa comigo vivo, porque se ele morrer aqui, eu não terei dinheiro para levá-lo até à casa, porque o traslado é muito caro (são 300 km daqui)”. Olho-a com ternura e lhe digo: “Estela, não se preocupe... a Providência cuidará de tudo”. E se tranquilizou. Algumas horas depois, passei perto dela e vi, com surpresa, que Florêncio estava sentado na cama e com uma canetinha estava desenhando uma figura feminina. Olho para o desenho e olho para ele comovido... da sua boca saía uma líquido podre... mas que ternura! Ele é literalmente consumido pelo câncer, todo inchado, com a carne já em decomposição, e no entanto com o olhar que me diz que a vida é bela! Eu o entendo, o invejo, porque ele é assim porque encontrou, alguns meses atrás, quando chegou aqui em condições desesperadas, o mesmo olhar que Zaqueu experimentou diante do olhar do Senhor. Não se pode explicar de outra forma como um rapaz naquelas condições, nos poucos momentos de lucidez e de consciência, diante da minha pergunta sobre como está, me responda OK levantando o polegar e me fixando com o seu olhar. O que posso fazer, além de beijá-lo e, ajoelhando-me diante dele, deixar-me olhar como Zaqueu por Jesus, presente em Florêncio, consciente de estar diante da morte. Porque ele sente o cheiro da sua pobre carne que só espera a ressurreição para se recompor, gloriosa e bela!
Amigos, quando Carrón nos lembra, em seu artigo de Natal, que Cristo está presente hoje, para mim, para vocês, instnate depois de instante, não posso não pensar no hino “Iesus dulcis memoria”. De verdade, é mesmo bonito viver com quem nos chama a atenção e nos remente em cada momento à doçura de Jesus.
Padre Aldo
P.S.: aos tão numerosos emails que vocês me enviam, responderei nos próximos dias, quando estarei, por alguns dias, no Brasil com meus amigos. Estar com eles é, para mim, repousar, na doce memória de Jesus.

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