segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A beleza nos curará do niilismo e do fundamentalismo


Por Costantino Esposito

Costantino Esposito enfrenta as raízes culturais do relacionamento entre identidade e diferença e a dificuldade hodierna de pensar um “eu” em relaçõ com o outro. Terceiro de três artigos, depois de De quem somos? Todos os dilemas de uma identidade em indecisa, e As aventuras de um “eu” disputado pela política e pelo nada.

Mas, em virtude do que podemos entender a diferenciação das culturas? Segundo a posição citada no artigo anterior, podemos fazer isso apenas se estivermos sustentados pelo seu caráter comum de “ficção”: set odas são enganos ou auto-enganos, então as diferenças serão variações sobre este único tema. É tão necessário encontrar uma base comum para poder reconhecer, compreender e também justificar as diferenças, que é possível encontrar uma – a única possível, a este ponto – na ilusão, nova “substância” de uma natureza humana dessubstanciada, resíduo de universalidade vista em forma negativa. Mas poderíamos perguntar: a ilusão da ficção é o ponto inicial da interpretação? Ou essa é, por sua vez, o êxito de uma interpretação pré-conceitual do fenômeno que se quer compreender? Se também renunciássemos – considerando-a pretensiosa ou violenta – à pretensão de julgar um identidade cultural como mais ou menos “verdadeira” ou “justa” em relação a outra (“ocidente” versus “oriente”, “cristianismo” versus “islã”, laicidade versus religiosidade, modernização globalizada versus tradição de valores etc.), não podemos, porém, renunciar ao reconhecimento de que é verdadeira e é justa a pergunta mesma ou a exigência estrutural que, em cada uma dessas, age a produção antropológica, mesmo se esta última, ao final, devesse resultar de uma ficção consciente. Para assumir, conscientemente, uma ficção como resposta para a própria necessidade de significado, é preciso que tal necessidade seja percebido como um dado imprescindível da nossa condição de homens. A “natureza” humana é tal que, sobre sua base, o homem pode ser chamado o animal que faz perguntas: e aqui está enraizada aquela simpatia entre as culturas e as diversas identidades que está no fundo de todas as suas possíveis diferenças.
Note-se, entre outras coisas, que a insistência sobre o fato de que o ser humano não tem a identidade de uma substância natural entre as outras, mas é muito mais um processo de autorrealização dinâmica e historicocultural, por si só não anula, de fato, nem teórica nem praticamente, a hipótese de que tal dinâmica seja movida por uma interrogação fundamental – aquela sobre o significado de si, da própria comunidade de pertença e sobre o mundo inteiro. E vice-versa, a verdade da natureza ou da condição humana constitui um nível que, longe de ser predeterminado de uma vez por todas, acontece e se produz historicamente. O perguntar dos homens concretos, de carne e osso, sempre determinado por precisas condições espaço-temporais, é o modo com o qual cada identidade faz experiência de um fenômeno comum, por mais diversas ou opostas que possam ser as tentativas de resposta. Por isso, o confronto entre as identidades e as culturas é possível apenas se estiver continuamente aberto ao confronto, a partir de cada identidade e cultura de pertença, entre as perguntas de fundo e as respostas históricas, levando em consideração, particularmente, a pertinência e a taxa de satisfação que as segundas possuem em relação às primeiras. O jogo deve sempre ser aberto, nunca definido absolutamente ou para sempre, mas sempre reafirmando o acontecer do nexo entre a pergunto de sentido e a sua produção.
Deste ponto de vista, deve ser, talvez, responsabilidade peculiar da escola, sempre mais marcadamente, permitir que se localize na própria experiência os sinais evidentes da exigência de sentido – ou seja, da pergunta pelo ser e pelo ser-feliz ou realizado – que permitam, em primeiro lugar, colocar em questão, outra vez, e verificar criticamente a congruência ou pertinência das respostas fornecidas pela própria tradição (colocar à prova a própria identidade, que por mais que seja recebida exige ser escolhida ou recusada pelo eu individual); em segundo lugar, escolher, exatamente neste nível de verificação, presente como exigência metodológica a partir de dentro de cada identidade, o princípio da compreensibilidade de todas as culturas e, portanto, de todas as diferenças. Certamente, não para reduzir forçosamente as diversidades a uma estrutura imposta artificialmente a partir do alto, mas para verificar as condições segundo as quais os homens podem se compreender (e, de fato, se compreendem) entre si e podem traduzir (e, de fato, traduzem) uma cultura em outra. Na nossa experiência aprendemos, todos os dias, que é possível que homens de culturas e identidades diferentes se entendam. Por quê? O que torna isso possível? Evidentemente deve haver, já presente, ou agindo, um fator ou fatores que o permitam. Esses, segundo a minha hipótese, consistem na pergunta pelo sentido e na exigência de verdade, justiça e bem, não compreendidos como perspectivas vagas ou como indicações de uma ulterioridade utópica, mas como funções operativas do nosso modo de estar no mundo.
3) A terceira questão diz respeito, finalmente, à ideia, hoje bastante difundida, segundo a qual, para salvar as diferenças, é preciso renunciar a toda pretensão de verdade, e que, contra toda afirmação de verdade, está implicada inevitavelmente um “monismo” cultural. Também nesse caso, age de maneira determinante o vocabulário que usamos: se a verdade coincide com algo de absoluto, de intemporal e de fixado de uma vez por todas, aquilo que, pelo contrário, é temporal, histórico, contingente inevitavelmente será a única coisa a escapar da pretensão da verdade de ser imutável. Também aqui chega, por assim dizer, às suas extremas consequências toda uma história do pensamento moderno, segundo a qual o relacionamento entre o eu e a verdade chega à sua máxima problematização. No sentido de que ou a verdade objetiva do real é vista como um valor absoluto que excede e transcende a experiência individual do eu, ou então é reduzida às certezas construídas dentro do eu mesmo. E na cultura contemporânea, esta dificuldade de relacionamento entre o eu e o verdadeiro parece ter chegado a um estado de crise não mais patológica mas fisiológica. O eu parece poder afirmar a si mesmo apenas se for às custas da renúncia do seu relacionamento constitutivo com a verdade; e, pelo contrário, afirmar a verdade parece ser possível apenas às custas de se separar da experiência subjetiva do eu. Consideradas nos seus êxitos extremos, a primeira chance é a que leva tendencialmente ao relativismo niilista, a segunda é a que anima a perspectiva do absolutismo fundamentalista: um eu sem verdade e uma verdade sem eu.
Mas, a verdade é o que se apresenta sempre na experiência como necessidade. Certamente, não quero sustentar que a verdade seja um produto cultural ou artificial das nossas expectativas, mas que a nossa pergunta pelo verdadeiro e pelo real constituem o sinal mais evidente de que estamos já em relação com ela. De onde, de fato, nasceria o nosso desejo de entender qual a relação das coisas todas conosco, com os outros, com o mundo inteiro? E note-se que, mesmo nos casos em que não quiséssemos saber e preferíssemos permanecer suspensos na incerteza ou encerrados na imaginação, nós o faríamos para nos defender de uma verdade que tememos, mas, paradoxalmente, exatamente isso atestaria que não podemos viver sem esta relação. Como escreveu, uma vez, Agostinho de Hipona, todos os homens, sem nenhuma exceção, experimentam prazer no verdadeiro, uma espécie de gosto no conhecer a verdade (gaudium de veritate), e não vale a objeção de que isto não pode ser reconhecido nos mentirosos, visto que também os que enganam os outros pelo menos não gostariam de ser enganados (cf. Confissões, X, 23.33). 
Mas, como podemos descobrir esta relação estrutural com o verdadeiro? Em que medida ele é operativo no nosso eu? Somente em uma comparação densa com os dados da realidade, seja a realidade natural ou a cultural. Somente num confronto assim, o verdadeiro – ou seja, o sentido objetivo, a ratio – pode ser descoberto e colocado à prova: não inventado, construído ou imposto por nós (que é o risco permanente da ideologia), mas acolhido e repensado como um significado trazido pela realidade mesma. Também a este propósito nos pode ajudar Agostinho, que afirma, sempre nas Confissões (X, 6.10) que a realidade nos fala sobretudo através da sua “beleza” (species), que, para o filósofo de Hipona, não é mero valor estético, mas a descoberta de uma ordem, de uma harmonia ou de um logos, ou seja, da razão profunda pela qual as coisas existem. Só que esta beleza “não fala a todos da mesma maneira”, ou melhor: todos a veem, mas nem todos a colhem. Podem colhê-la apenas aqueles que sabem fazer pergunta (homines autem possunt interrogare), ou seja que sabem perguntar com juízo. Esta iudex ratio, como Agostinho a chama, age como uma contínua comparação naqueles que “acolhem a voz recebida de fora e a confrontam com a verdade que está presente neles mesmos”.
E se uma das tarefas mais urgentes, mas também mais fascinantes, da escola fosse educar a buscar o verdadeiro, reconhecendo-o através da beleza da realidade? A experiência da beleza (do que, naturalmente, falo aqui não como objeto de uma disciplina estética específica, mas como a percepção da presença de um significado de mim e das coisas) envolve, de maneira impressionante e totalizante, o nosso eu, mas ao mesmo tempo não pode nunca ser simplesmente produzida ou planejada por nós. Acontece, surpreendendo-nos. Mas, no seu acontecer, acende a nossa verdadeira necessidade. O belo é, por assim dizer, a confirmação mais impressionante de que apenas quando se encontra uma resposta para a nossa pergunta pelo significado que tal pergunta começa, efetivamente, a ser. Talvez, seja exatamente nessa exigência de verdade e de realidade, assim como ela é despertada na experiência da beleza, que podemos encontrar um traço talvez inédito, mas certamente provocante, para enfrentar o problema da relação entre identidade e diferenças numa perspectiva intercultural. Nesta linguagem, de fato, realiza-se o incrível: que se possa não apenas tolerar o outro de nós, ou inclui-lo nos nossos esquemas, mas reconhecê-lo como aquilo do que temos necessidade para sermos verdadeiramente nós mesmos.

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 25 de outubro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Nenhum comentário: