sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A memória se torna força da esperança


Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro

Quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Hoje, gostaria de meditar convosco um Salmo que resume toda a história da salvação de que o Antigo Testamento nos dá testemunho. Trata-se de um grande hino de louvor que celebra o Senhor nas múltiplas, repetidas manifestações da Sua bondade ao longo da história dos homens; é o Salmo 136 – ou 135 segundo a tradição greco-latina.
Oração solene de ação de graças, conhecido como o “Grande Hallel”, este Salmo é tradicionalmente cantado ao final da ceia pascal hebraica e, provavelmente, foi rezado também por Jesus na última Páscoa celebrada com os discípulos; a ele, de fato, parece se referir a anotação dos Evangelistas: “Depois de ter cantado o hino, saíram para o monte das Oliveiras” (cf. Mt 26, 30; Mc 14, 26). O horizonte do louvor ilumina assim a difícil estrada do Gólgota. Todo o Salmo 136 se desenrola em forma de uma litania, marcada pela repetição antifonal “porque eterno é Seu amor”. Ao longo da composição, são enumerados os muitos prodígios de Deus na história dos homens e Suas contínuas intervenções em favor de Seu povo; e a cada proclamação da ação salvífica do Senhor a antífona responde com a motivação fundamental do louvor: o amor eterno de Deus, um amor que, segundo o termo hebraico utilizado, implica fidelidade, misericórdia, bondade, graça, ternura. É este o motivo unificante de todo o Salmo, repetido de forma sempre igual, enquanto mudam as suas manifestações pontuais e paradigmáticas: a criação, a libertação do êxodo, o dom da terra, a ajuda providente e constante do Senhor para com Seu povo e cada criatura.
Depois de um tríplice convite à ação de graças ao Deus soberano (vv. 1-3), celebra-se o Senhor como Aquele que realiza “maravilhosos prodígios” (v. 4), o primeiro dos quais é a criação: o céu, a terra, os astros (vv. 5-9). O mundo criado não é um simples cenário sobre o qual se insere a ação salvífica de Deus, mas é o início mesmo daquela ação maravilhosa. Com a criação, o Senhor se manifesta em toda a Sua bondade e beleza, compromete-se com a vida, revelando uma vontade de bem da qual brota cada um dos atos de salvação. E no nosso Salmo, ecoando o primeiro capítulo do Gênesis, o mundo criado é sintetizado no seus elementos principais, insistindo particularmente nos astros, no sol, na lua, nas estrelas, criaturas magníficas que governam o dia e a noite. Não se fala aqui da criação do ser humano, mas ele está sempre presente; o sol e a lua são para ele – para o homem – para marcar o tempo do homem, colocando-o em relação com o Criador, sobretudo através das indicações dos tempos litúrgicos.
E é exatamente a festa da Páscoa que é evocada logo depois, quando, passando para a manifestação de Deus na história, começa-se evocando o grande evento da libertação da escravidão egípcia, do êxodo, traçado a partir de seus elementos mais significativos: a libertação do Egito com a chaga dos primogênitos egípcios, a saída do Egito, a passagem pelo Mar Vermelho, o caminho no deserto até a entrada na terra prometida (vv. 10-20). Estamos no momento originário da história de Israel. Deus interveio com poder para levar o Seu povo para a liberdade; através de Moisés, Seu enviado, impôs-Se ao faraó revelando-Se em toda a Sua grandeza e, finalmente, dobrou a resistência dos egípcios com o terrível flagelo da morte dos primogênitos. Assim, Israel pôde deixar o país da escravidão, com o ouro de seus opressores (cf. Ex 12, 35-36), “com as mãos levantadas” (Ex 14, 8), no sinal exultante da vitória. Também no Mar Vermelho o Senhor agiu com potência misericordiosa. Diante de um Israel assustado com a vista dos egípcios que o perseguiam, a ponto de lamentar haver deixado o Egito (cf. Ex 14, 10-12), Deus, como diz o nosso Salmo, “dividiu em dois o mar Vermelho [...], fez passar Israel pelo meio dele [...], precipitou no mar Vermelho o faraó e seu exército” (vv. 13-15). A imagem do Mar Vermelho “dividido” em dois parece evocar a ideia do mar como um grande monstro que é cortado em dois pedaços e, assim, tornado inofensivo. O poder do Senhor vence o perigo das forças das natureza e daqueles militares: o mar, que parece impedir o caminho do povo de Deus, deixa Israel passar de pés enxutos e, em seguida, se derrama sobre os egípcios derrubando-os. “A mão poderosa e o braço forte” (cf. Dt 5, 15; Dt 7, 19; Dt 26, 8) se mostram, dessa maneira, em toda a sua força salvífica: o opressor injusto foi vencido, engolido pelas águas, enquanto que o povo de Deus “passa pelo meio” para continuar o seu caminho em direção à liberdade. 
Neste ponto, o nosso Salmo faz referência a este caminho, com uma frase brevíssima, recordando a longa peregrinação de Israel para a terra prometida: “conduziu Seu povo através do deserto, porque eterno é Seu amor” (v. 16). Estas poucas palavras encerram uma experiência de quarenta anos, um tempo decisivo para Israel que, deixando-se guiar pelo Senhor, aprende a viver de fé, na obediência e na docilidade à lei de Deus. São anos difíceis, marcados pela dureza da vida no deserto, mas também anos felizes, de confiança no Senhor, de confiança filial; é o tempo da “juventude”, como é definido pelo profeta Jeremias, falando a Israel, em nome do Senhor, com expressões cheias de ternura e de nostalgia: “Lembro-me de tua afeição quando eras jovem, de teu amor de noivado, no tempo em que me seguias ao deserto, à terra sem sementeiras” (Jr 2, 2). O Senhor, como o pastor do Salmo 23 que contemplamos numa de nossas catequeses, por quarenta anos guiou o Seu povo, o educou e amou, conduzindo-o até a terra prometida, vencendo mesmo as resistências e a hostilidade de povos inimigos que querias impedir o seu caminho de salvação (cf. vv. 17-20).
No desenrolar-se das “grandes maravilhas” que o nosso Salmo enumera, chega-se assim ao momento do dom final, a realização da promessa divina feita aos Pais: “e deu a terra deles em herança, porque eterno é Seu amor; como patrimônio de Israel, Seu servo, porque eterno é Seu amor” (vv. 21-22). Na celebração do amor eterno do Senhor, nesse momento se faz memória do dom da terra, um dom que o povo deve receber sem nunca se apossar dela, vivendo continuamente numa postura de acolhida reconhecida e grata. Israel recebe o território no qual poderá habitar como “herança”, um termo que designa de modo genérico a posse de um bem recebido de outro, um direito de propriedade que, de modo específico, faz referência ao patrimônio paterno. Uma das prerrogativas de Deus é de “doar”; e agora, no fim do caminho do êxodo, Israel, destinatário do dom, como um filho, entra no país da promessa realizada. É terminado o tempo do nomadismo, sob tendas, numa vida marcada pela precariedade. Agora tem início o tempo feliz da estabilidade, da alegria de construir as casas, de plantar as vinhas, de viver na segurança (cf. Dt 8, 7-13). Mas é também o tempo da tentação da idolatria, da contaminação com os pagãos, da autosuficiência que faz esquecer a Origem do dom. Por isso, o Salmista menciona a humilhação e os inimigos, uma realidade de morte na qual o Senhor, uma vez mais, Se revela como Salvador: “Em nossa humilhação Ele se lembrou de nós, porque eterno é Seu amor; e nos livrou de nossos inimigos, porque eterno é Seu amor” (vv. 23-24).
Neste ponto nasce a pergunta: como podemos fazer deste Salmo uma oração nossa? Como podemos nos apropriar, para a nossa oração, deste Salmo? O importante é o contexto do Salmo, apresentado no início e no fim: a criação. Retornaremos sobre este ponto: a criação, como o grande dom de Deus do qual vivemos, no qual Ele se revela na Sua bondade e grandeza. Portanto, ter presente a criação como dom de Deus é um ponto comum para todos nós. Depois, segue a história da salvação. Naturalmente, podemos dizer: esta libertação do Egito, o tempo no deserto, a entrada na Terra Santa e depois todos os outros problemas, estão muito distantes de nós, não são a nossa história. Mas temos que ficar atentos à estrutura fundamental desta oração. A estrutura fundamental é que Israel se recorda da bondade do Senhor. Nesta história há tantos vales tenebrosos, há tantas passagens de dificuldade e de morte, mas Israel se recorda que Deus era bom e que pode sobreviver neste vale tenebroso, neste vale de morte, porque se recorda. Há a memória da bondade do Senhor, do Seu poder; a Sua misericórdia vale para sempre. E isto é importante também para nós: ter uma memória da bondade do Senhor. A memória se torna força da esperança. A memória nos diz: Deus existe, Deus é bom, eterna é a Sua misericórdia. E assim a memória abre, mesmo na obscuridade de um dia, de um tempo, o caminho para o futuro: é luz e estrela que nos guia. Também nós temos uma memória do bem, do amor misericordioso, eterno de Deus. A história de Israel é uma memória também para nós, como Deus se mostrou, criou um povo para Si. Depois, Deus se fez homem, um de nós: viveu conosco, sofreu conosco, morreu por nós. Permanece conosco no Sacramento e na Palavra. É uma história, uma memória da bondade de Deus que nos assegura a Sua bondade: o Seu amor é eterno. E também, mesmo nestes dois mil anos da história da Igreja, sempre há, uma vez mais, a bondade do Senhor. Depois do período obscuro da perseguição nazista e comunista, Deus nos libertou, mostrou que é bom, que tem força, que a Sua misericórdia vale para sempre. E, como na história comum, coletiva, está presente esta memória da bondade de Deus, que nos ajuda, se torna estrela da esperança para nós, assim também cada um de nós tem a sua história pessoal de salvação, e temos realmente que estimar esta história, ter sempre presente a memória das grandes coisas que fez também na minha vida, para ter confiança: a Sua misericórdia é eterna. E se hoje eu estou na noite escura, amanhã Ele me liberta porque eterno é Seu amor.
Voltemos ao Salmo, porque, no fim, ele retorna à criação. O Senho – é assim que diz – “dá alimento a todos os seres vivos, porque eterno é Seu amor” (v. 25). A oração do Salmo se conclui com um convite ao louvor: “Louvai o Deus do céu, porque eterno é Seu amor”. O Senhor é Pai bom e providente, que dá a herança aos Seus filhos e concede a todos o alimento para viver. O Deus que criou os céus e a terra e as grandes luzes celestes, que entra na história dos homens para levar à salvação todos os Seus filhos é o Deus que enche o universo com a Sua presença de bem, cuidando da vida e dando o pão. A invisível potência do Criador e Senhor cantada no Salmo se revela na pequena visibilidade do pão que nos dá, com o qual nos faz viver. E assim este pão cotidiano simboliza e sintetiza o amor de Deus como Pai, e nos abre para a realização neotestamentária, para aquele “pão da vida”, a Eucaristia, que nos acompanha na nossa existência de crentes, antecipando a alegria definitiva do banquete messiânico no Céu.
Irmãos e irmãs, o louvor bendito do Salmo 136 nos fez repercorrer as etapas mais importantes da história da salvação, até chegar ao mistério pascal, no qual a ação salvífica de Deus chega ao seu ponto alto. Com alegria cheia de reconhecimento celebremos portanto o Criador, Salvador e Pai fiel, que “de tal modo amou o mundo, que lhe deu Seu Filho unigênito, para que todo o que nEle crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus se faz homem para dar a vida, para a salvação de cada um de nós, e Se dá como pão no mistério eucarístico para fazer-nos entrar na Sua aliança que nos torna filhos. Para isso, alcança-nos a bondade misericordiosa de Deus e a sublimidade do Seu “amor eterno”.
Quero, por isso, concluir esta catequese fazendo minhas as palavras que São João escreve na sua Primeira Carta e que devemos sempre ter presentes na nossa oração: “Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato” (1Jo 3, 1). Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 19 de outubro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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