domingo, 28 de novembro de 2010

A arte será capaz de nos dar aquela “única felicidade possível” de Elsa Morante?


Por Uberto Motta 

Excessivo e totalizante: dois adjetivos bastariam para definir o mundo narrativo de Elsa Morante (1912-1985). Uma mulher para quem escrever era a coisa mais séria da vida, como forma de participação absoluta na energia e nas cores da realidade. 
A sua maior glória repousa em quatro títulos aos quais se doou inteira e se transfundiu: Menzogna e sortilegio (1948), L’isola de Arturo (1957), La Storia (1974) e Aracoeli (1982) [dos quatro títulos, apenas A ilha de Arturo foi traduzido para o português pela editora Berlendis & Vertecch; ndt]. Falou-se de “incessante metamorfose”. Cada livre, diferente do anterior, foi cuidado e amado como se fosse o último possível, o êxito de uma concentração firme e total. Os leitores, geralmente, ficam seduzidos ou desgostosos; enquanto que os críticos, por muito tempo, olharam-na com presunção ou antipatia. E, ainda hoje, há alguma dificuldade em, de certa maneira, reconhecer sua grandeza.
No centro da sua aventura, biográfica e literária, há uma ferida. A tragédia foi dupla e concomitante. Em 1962, Elsa perdeu primeiro o seu caríssimo amigo, o jovem pintor norte-americano Bill Morrow (que morreu de repente, pulando de um arranha-céu); depois, perdeu o marido, Alberto Moravia, que a abandonou. Numa página de diário, reconhece em si toda a extensão do drama do homem e, disso, consegue retirar a força de resgate, como tensão irreprimível para a fraternidade: “Dois anos depois daquele 30 de abril. E eu continuo vivendo como se estivesse viva. Em certos momentos, eu mesma me esqueço do horror. Uma consolação chega, como se eu te encontrasse em outras coisas. Mas, o choque é advertido de novo, de repente. [...] O único remédio para chegar ao fim humanamente é não ser eu, mas todos os outros, todo o resto. Não separar. Ser todos os outros passados presentes futuros vivos e mortos. Assim, posso ser também tu. [...] Única felicidade possível: não ser si mesmo, mas todos”.
A partir desse rasgo, Morante renasceu diferente. Amadureceu e cresceu. Despertou-se nela uma consciência adormecida, e descobriu o valor do empenho generoso, do testemunho benéfico.
No dia 19 de fevereiro de 1965, no Teatro Carignano de Turim, ela proferiu uma conferência – A favor ou contra a bomba atômica. O mesmo texto foi lido em Roma, no Teatro Eliseo, e em seguida foi editado no L’Europa Letteraria [revista de crítica literária fundada por Giancarlo Vigorelli, em 1960; ndt]. A afirmação que dá início ao texto é radical: “Dir-se-ia que a humanidade contemporânea experimenta a oculta tentação de se desintegrar”. E a proliferação ameaçadora das armas expressa a vontade inconsciente contra a qual a poesia se opõe.
“A arte é o contrário da desintegração. Porque a razão própria da arte, a sua justificação, é esta: impedir a desintegração da consciência humana, no seu cotidiano, e seu uso exaustivo e alienante na relação com o mundo; restituir-lhe continuamente, na confusão irreal e fragmentária dos relacionamentos externos, a integridade do real, ou em uma palavra, a realidade. [...] A pureza da arte não consiste em evitar aqueles motes da natureza que a lei social censura como perversos ou imundos; mas em reacolhê-los espontaneamente dentro da dimensão real, onde se reconhecem naturais e, portanto, inocentes. A qualidade da arte é libertadora, e portanto, nos seus efeitos, é sempre revolucionária. Qualquer momento da experiência real e transitória se torna, na atenção poética, um momento religioso”. Por trás de semelhantes palavras, que honram quem as pensou e pronunciou, é lícito, hoje, distinguir a herança mais sincera, a lição mais resistente de Elsa Morante.
Assim, em 1974, apareceu o romance La Storia: primeiro, acolhido com clamor (e sucesso, se se prescindir dos pronunciamentos, a favor ou contra, da crítica oficial), e depois caiu no silêncio. Morante abandonou o estilo alado, complexo e aristocrático dos exórdios, e começou a perseguir um ideal novo, de “narração democrática”. Elsa escreveu “como se os personagens tivessem a pena nas mãos” (C. Cases). Nele, ela se move livremente entre os dialetos, o italiano popular e a linguagem infantil (da inocência, da interioridade e do isolamento). Desce do sublime em direção ao humilde, para exprimir sua solidariedade com os pobres, com os necessitados. Explica-se, nesta ótica, a citação evangélica adotada como epígrafe do romance. Escondeste estas coisas aos doutos e aos sábios, e as revelaste aos pequenos... porque, assim, foi do teu agrado. Foi esta, para Elsa, a única (verdadeira) consolação possível.

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 25 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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