Por Carlos Alberto Di Franco *
Acabo de ler duas instigantes obras de Zygmunt Bauman: Amor Líquido e Modernidade Líquida. Bauman, um dos mais originais e perspicazes sociólogos da atualidade, vai fundo nos paradoxos da modernidade líquida. Vivemos um tempo de incertezas, de sinais confusos, de ausência de vínculos duradouros. Mas, ao mesmo tempo, o comportamento fluido e relativista acaba, frequentemente, em arrebatos de dogmatismo ideológico. O relativismo, facilmente, transforma-se em autoritarismo.
Recentemente, a imprensa noticiou que, para evitar discriminações, o Ministério da Educação (MEC) quer renunciar ao dever de ensinar. Por exemplo, entende que pode promover o preconceito a explicação em sala de aula de que a concordância entre artigo e substantivo é uma norma da língua portuguesa. Dessa forma, o MEC aconselha a relativizar. Segundo o Ministério, a expressão "os carro" também seria correta. A sociedade, quando se deu conta do que o MEC estava propondo, foi unânime na sua indignação. Afinal, a oportunidade de aprender bem a sua língua deve ser um direito de todos.
Nesse caso, no entanto, penso que está em jogo mais do que a norma culta da língua portuguesa. Implicitamente, o MEC nos diz: na busca por um "mundo mais justo" (sem preconceitos) pode ser aconselhável dizer algumas mentiras. Na lógica ministerial, o conhecimento é munição para a discriminação.
Vislumbra-se aí uma visão de mundo na qual o critério político prevaleceria sobre a realidade das coisas, sobre a verdade. E aqui reside o ponto central, cuja discussão é incômoda para uma sociedade que não deseja utilizar o conceito "verdade". Este seria apropriado apenas para uma agenda conservadora; os contemporâneos não deveriam utilizá-lo mais.
Mas por que será que a "verdade" é tão incômoda? Porque ainda estamos imersos no sofisma moderno que confunde "ter um conhecimento certo sobre algo" com "ser dono da verdade". O engano está em equiparar "conhecimento limitado" - que é onde sempre estaremos - com "todo conhecimento é inválido".
Outro influente motivo para evitar o uso do conceito "verdade" é a aspiração por liberdade. As "verdades" tolheriam a nossa autonomia, imporiam uns limites indesejáveis; no mínimo, acabariam diminuindo a nossa liberdade de pensamento. O MEC - de fato - entende assim: numa sociedade plural, não se poderia ter apenas uma única norma culta para a língua portuguesa. Deixemos os nossos alunos "livres" para escolherem as diversas versões.
Não será que ocorre exatamente o contrário? Quem conhece bem a língua portuguesa tem a liberdade de escolher qual forma - num texto literário, por exemplo - expressa melhor a sua ideia. E pode até abrir mão da norma culta, num determinado momento. Só terá a segurança dessa escolha quem conhecer a norma culta, caso contrário, serão tiros no escuro.
Entre liberdade e verdade não vige uma relação dialética. Elas andam juntas. O que pode provocar um antagonismo com a liberdade é uma versão absolutista de verdade, encarnada pelo sujeito que entende ser o "dono da verdade". Mas a verdade não é um objeto que se possui. A verdade é o mundo, é a realidade, são os outros. É uma porta que se abre para fora, não para dentro, e por isso pode ser contemplada por todos. Ela é democrática: está acessível a todos.
Já não será hora de superarmos a disjuntiva moderna e estabelecermos uma relação amigável com a "verdade"? Não significa fazer um pacto "espiritual" com o universo ou assinar uma espécie de declaração de alienação, abdicando do uso da inteligência e da crítica. A proposta que aqui se faz nada mais é do que buscar uma relação de honestidade intelectual com a realidade e com os outros.
Penso que essa relação de honestidade intelectual está na origem da cultura ocidental, ainda lá com os gregos. É um processo de aprendizagem, que leva a reconhecer os próprios erros, a revisar as condutas e, ainda que não seja retilíneo, trouxe indubitáveis bens (ainda não plenamente alcançados, mas que indicam a meta): o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, o respeito e a valorização da mulher, a rejeição da escravidão, a democracia como expressão dessa dignidade, a tolerância, a compreensão, etc.
Aquilo de que mais nos orgulhamos não foi alcançado brigando com a "verdade", dizendo que tudo era relativo, que dava na mesma A ou B. Nesta lógica aparentemente ampla - mas que no fundo é estreita (porque não está aberta à realidade e aos outros, impera o subjetivo) -, quem ganha é o mais forte, aquele que grita mais alto. Já não existe um referencial adequado para o diálogo. Ficam as versões. Ficam os discursos. E ficamos à mercê dos Sarneys... E agora também dos Paloccis.
Só mais um último aspecto, agora do ponto de vista pedagógico. A visão do MEC sobre a educação corrobora a constatação feita pela pediatra norte-americana Meg Meeker. Ela considera que as principais dificuldades da educação dos jovens de hoje não são causadas por eles. Na visão dela, o problema não são os jovens - como muitas vezes os moralistas de plantão ou os saudosistas de outros tempos querem culpá-los.
A dra. Meg Meeker, com a experiência de mais de 20 anos atendendo adolescentes e pais no seu consultório, diz que a causa está nos próprios adultos, que diminuíram as expectativas da educação em relação às novas gerações. "Eles não conseguirão fazer isso..." Ou: "É impossível que ajam dessa forma..." Os próprios educadores nivelam por baixo - como se o comportamento ético fosse hoje em dia irrealizável - e depois se dizem decepcionados com os jovens.
Ministério da Educação: os alunos saberão fazer bom uso das regras de português. Não lhes impeça o acesso ao conhecimento e, principalmente, não lhes negue um dos principais motores para o crescimento pessoal: a confiança.
* Carlos Alberto Di Franco é doutor em comunicação, é professor de Ética e diretor do Master em Jornalismo. Texto extraído d'O Estado de São Paulo (versão online), do dia 30 de maio de 2011.
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