sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Para ser “pai” é preciso um deus: a lição dos antigos

Por Giulia Regoliosi

Lendo as obras dos grandes autores gregos – poetas e dramaturgos, narradores e oradores – um dos aspectos que aparecem de forma mais evidente é o interesse pela fecundidade. A apaidìa, a ausência de filhos por causa da esterilidade ou da perda, é uma das maiores dores. Não é por acaso que Sólon, no discurso sobre a felicidade transmitido a nós por Heródoto, coloca entre os elementos essenciais o ter filhos, e filhos de filhos, fortes, belos e devotos. Numa cultura que vê de modo nebuloso a sobrevivência depois da morte, a certeza de que algo de si sobreviva é confiada à prole, bem como a esperança de cuidados na velhice, ou de herdeiros para os próprios bens ou, se pensarmos no âmbito mitológico, para a própria dinastia. É um desejo atormentador em todas as culturas antigas, como no caso da cultura bíblica também: “Eis que sou apenas uma árvore seca”, diz Isaías, o eunuco, a quem o Senhor responde prometendo “um lugar e um nome melhor do que filhos e filhas, um nome eterno que não perecerá”; mas a Sara e Abrãao, a Ana e Elcana, a Isabel e Zacarias lhes são dados os filhos esperados.
Diante de um desejo tão amplamente testemunhado, como os personagens do mundo poético grego vivem o relacionamento pai-filho? É importante que nos perguntemos isso, porque o escritor, sobretudo o poeta épico e trágico, escreve para ser testemunha ou, mais explicitamente, para ser mestre: as suas histórias, na maior parte tiradas do patrimônio mitológico, são paradigmáticas para o público, tanto o ocasional, quanto aquele que se reunia no teatro ateniense. O quadro que nos é oferecido por eles é muito amplo, comprovando uma profunda experiência da realidade. Encontramos jovens crescidos sem pai, porque este partiu para grandes aventuras e nunca mais voltou, ou porque é esperado há muito tempo; jovens que passaram por uma difícil adolescência, divididos entre nostalgia, desejo de imitação e solidão penosa. Há pais e mães capazes de comunicar confiança, propor reconciliação, sugerir grandes ideais, sacrificar-se pelos filhos, mas também pais fechados na própria realização, ou divididos entre si, até ao ponto de utilizarem os filhos como instrumentos de vingança recíproca. Encontramos filhos desiludidos nas expectativas, incompreendidos nas escolhas, mas também devotos, dispostos ao perdão (uma exceção extraordinária no paganismo), portadores de novidades.
E se a apaidìa é um sofrimento, frequentemente não impede, porém, a fecundidade do coração. De Homero aos trágicos, encontramos uma extraordinária série de figuras parentais substitutivas: o mestre de Aquiles, condenado à esterilidades mas rico de uma grande capacidade educativa; Filocteto, o exilado amargurado que sabe penetrar no coração de um jovem ambicioso; a virgem sacerdotisa de Apolo que faz o papel de mãe, até quando o deus quer, de uma criança abandonada; e outros mestres, amigos, servos, companheiros mais velhos. Ou os avós que, tendo ficado sem filhos, permanecem firmes na educação e defesa dos netos que ficaram sós.
Qual é o papel dos deuses nesses relacionamentos? Frequentemente é ambíguo e decepcionante. Porque, quase sempre, os deuses mesmos costumam ser pais ausentes: é o caso de Zeus na relação com Hércules e seus outros filhos; ou  ainda de Zeus na relação com o pequeno filho de Dânae; ou outros casos. As mulheres amadas por um breve momento, às vezes somente para educar um filho que não é seu, têm palavras duras para “os deuses que se fazem chamar de pais e, depois, ficam apenas olhando tais desventuras”, como disse um personagem de Sófocles. E se algumas vezes os deuses intervêm,  o fazem de modo desajeitado e tardio. No entanto, onde os deuses são mais presentes, mais companheiros, mesmo o relacionamento educativo é mais fácil, como aquele entre Ulisses e Telêmaco sob a sombra de Atena.
Que interesse tudo isso pode ter para nós? Sabemos – vemos na experiência da escola e também o Papa nos lembra continuamente disso – que estamos vivendo uma emergência educativa. Parece importante, portanto, voltar-se para um mundo distante mas sempre próximo por causa da continuidade do coração humano. O desejo de fecundidade, a necessidade de figuras adultas de referência, pais e mestres, nos acomuna aos antigos: só que eles ainda estavam na espera da revelação do Pai.

REGOLIOSI, Giulia. In attesa del padre: storie di genitori e figli nella letteratura greca. Roma: Aracne Editrice, 2010

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 19 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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