segunda-feira, 19 de abril de 2010

Unidos na paixão por Cristo e pelo homem

Por Antonio Lopez*

Afastados cinco anos da eleição, a CEI (Conferência Episcopal Italiana) convida a rezar por Bento XVI. Que continua a missão de João Paulo II, seu predecessor. Mas, o que os liga em profundidade? Falamos sobre isso com Monsenhor Lorenzo Albacete e David Schindler

Cinco anos atrás, Bento XVI sucedia a João Paulo II. O que os liga em profundidade? Pedimos a Monsenhor Lorenzo Albacete, editor, ensaista e responsável eclesiástico de CL nos EUA, e ao professor David Schindler, reitor e decano do Instituto João Paulo II para o Matrimônio e a Família, que ilustrassem os principais elementos de continuidade entre os dois pontificados. Por exemplo, o modo tão particular de conceber a fé: paixão por Cristo e pela pessoa humana.

Qual é a opinião de vocês a respeito da continuidade entre aquele grande Papa e seu sucessor?
Albacete: Acredito que a maior parte das pessoas não tenha prestado muita atenção na questão da continuidade. O ensinamento cheio de autoridade de João Paulo II e a sua contribuição para a vida da Igreja, a forma que deu à Igreja, pode se dizer substancialmente esgotada? Pode-se dizer que, hoje, temos algo de novo? Pessoalmente, fui muito tocado pela continuidade. Certamente que os estilos são diferentes, mas a continuidade é impressionante. Talvez alguns não a vejam, porque não é percebida a novidade de Cristo. A Igreja fez um esforço para ultrapassar esta divisão.
Schindler: Estou de acordo sobre o fato de que a continuidade seja profunda. Antes de mais nada, como todos os grandes homens da Igreja, ambos testemunharam o Evangelho e a unidade do Evangelho. Podemos reconhecer a sua unidade no fato de Bento XVI sublinhar, várias vezes, que o problema fundamental, hoje, é o esquecimento de Deus. No centro de todos os problemas culturais ou eclesiais que se tentam enfrentar está a recuperação da memória de Deus. João Paulo II disse algo parecido com isso em "Cruzando o limiar da esperança": o século XXI será um século religioso, ou não será em nada. Penso que este seja, de fato, o fundo de unidade entre eles: a recuperação do senso religioso e a memória de Deus, tal como é concretamente revelada em Jesus Cristo.

Qual é o olhar deles sobre o mundo? O que eles pretendem quando buscam restabelecer um significado adequado da laicidade?
Schindler: Algo que me impressionou de verdade na insistência de Bento XVI sobre a laicidade - por exemplo, quando encontrou os líderes franceses - é a sua insistência sobre o fato de que temos necessidade de recuperar uma compreensão adequada do que é a laicidade. Laicidade, para a nossa cultura, significa calar a respeito de Deus, enquanto que o ponto central de Bento é a retomada do conceito de laicidade, em cujo centro está a busca de Deus, o desejo de Deus, e em segundo lugar um desejo sem descanso, que não encontra realização total senão no encontro com Deus, na forma na qual Ele se revelou na história, ou seja, em Jesus Cristo.
Albacete: Exato. Não haveria laicidade se não existisse o Deus de Cristo. O que se tem chamado de laicidade, a separação de Deus ou da dimensão espiritual, não é laicidade em nada. Uma verdadeira laicidade é possível apenas através do Deus de Jesus Cristo.

Por quê?
Albacete: Porque é Ele que leva juntos, em si, o divino e o humano, na modalidade delineada desde o Concílio da Calcedônia, em 451. Creio que esta seja uma das coisas mais importantes que emergiram no discurso feito no Collège des Bernardins: sem Cristo não há laicidade.

Vocês podem nos dizer algo a mais a respeito da insistência de Bento XVI sobre o monaquismo, e sobre o por que não se trata de uma redução da Igreja a uma forma de vida espiritual, fora do mundo?
Schindler: Para mim, o ponto é que cada dia, na sua realidade mais profunda, cada dia, em cada aspecto seu, é dies Domini. Cada dia é Dia do Senhor. A natureza do homem é litúrgica.
Albacete: Lembrem-se de como Bento XVI expressou isso naquela ocasião: o primeiro fruto desta busca é construir uma biblioteca.
Schindler: E trabalhar!
Albacete: E trabalhar... exatamente assim. Ora et labora.
Schindler: E aqui está a dignidade do que é humilde. Neste contexto, o trabalho manual tem grande dignidade. Em um certo sentido, somente um cristão pode viver seriamente o trabalho manual. Em outros termos, a encarnação é céu e terra que se conjugam. O objetivo do nosso empenho sobre a terra é realizar o céu, mesmo que não nos seja possível realizá-lo plenamente nesta vida. Em Jesus, o céu veio sobre a terra, para que a terra pudesse ir para o céu. Ora, em Jesus, nós já participamos, agora, da unidade entre céu e terra. Por isso, somente no Cristianismo, somente na revelação de Cristo, é possível que a cada tempo, lugar e espaço, seja dada a dignidade que lhe é própria. Hoje, a nossa concepção do trabalho é tão limitada que nós o compreendemos tão somente como um instrumento para adquirir algo. É, em parte, verdadeiro, mas o trabalho é uma atividade que é participação na criatividade mesma de Deus, na ação de Deus encarnado.

A concepção moderna de trabalho é fundamentada sobre a separação entre a vida enquanto tal e o que a pessoa faz no trabalho. O que há de novo na afirmação de João Paulo II e de Bento XVI acerca da unidade entre a vida na sua inteireza e o agir do homem?
Albacete: Todas as divisões como esta são apenas manifestações de uma divisão que está na origem. Trata-se da perda da experiência do Deus cristão. São maneiras diversas de expressar este dualismo.
Schindler: Acredito que seja uma questão muito ampla. O que torna possível unir o conceito de vocação e o trabalho é reconhecer que a liberdade se realiza apenas na afirmação de um "para sempre". A verdadeira liberdade é dirigida a um amor que assume a forma de uma promessa, cuja realização só é possível mediante a verificação da relação de Deus com mundo, que se manifesta na pessoa de Cristo. O fundo da questão é simplesmente reconhecer que o significado da liberdade consiste em dizer "para sempre" a Deus, tornados livres mediante Jesus Cristo, até o ponto de compreender a relação de Deus com todas as coisas, e ao serviço de todas as coisas.

Tanto João Paulo II quanto Bento XVI insistiram sobre a liberdade do homem e tentaram defendê-la. Em quase todas as suas encíclicas, João Paulo II citou a Gaudium et spes (n. 22): Cristo revela Deus ao homem e revela o homem a si mesmo. O Cristianismo, para Bento XVI, revela (sem eliminá-lo) o mistério da pessoa humana: cada pessoa é relação com o Mistério, e é livre na medida em que reconhece esta dependência e vive para um outro. Este conceito de liberdade não é um desafio aberto ao mundo contemporâneo, que identifica liberdade com "criatividade", "autonomia" e "igualdade"?
Albacete: Não há nada de errado, em princípio, nestas duas acepções... mas a liberdade não pode ser criativa sem Cristo. Porque, sem Ele, tudo perde a força, tudo passa, e a morte não é vencida. Os impérios vão e vêm, das grandes obras e dos grandes eventos se perde a lembrança.
Schindler: Ratzinger tem um modo maravilhoso de expôr ascoisas. Quando fala do sacramento diz que consiste no dar algo que não se possui. Parece-me que a chave de todo o agir humano é que ele é pré-sacramental. Em outras palavras, eu nunca sou a primeira e absoluta origem do que transmito. Se quisermos falar em termos de paternidade e filiação: queremos ser criativos, estar na origem; queremos ser pais de nossas ações, e em um certo sentido isto é verdadeiro. Mas, na medida em que somos criaturas, podemos ser verdadeiramente pais apenas dentro de uma filiação. Em um nível mais profundo, recebemos a capacidade, a energia que transmitimos, mesmo que participemos dela plenamente. Temos autonomia, mas é a autonomia própria de um dom que recebemos e do qual participamos. Ratzinger fala do sacramento exatamente nestes termos, belíssimos: eu participo de uma força, mas não sou originalmente o seu proprietário. Participo de uma força na medida em que sou seu receptor.

Os pontificados de João Paulo II e o de Bento XVI é um grande "irradiar-se de paternidade" e uma defesa da profundidade do mistério da paternidade. O que se perdeu na atual crise da paternidade?
Albacete: Para mim, não é por acaso nem fruto de uma definição cultural o fato de o nome do Deus cristão ser "Pai": cada gesto e cada palavra de Deus são reveladores, e mesmo Jesus chamava a Deus de "Pai". Isto significa que o primeiro modo no qual se manifesta a perda de orientação natural que, como homens, temos em relação ao infinito, é exatamente a perda do significado da paternidade. Participar da vida de Deus é participar da vida do Pai, é ser como que "a sombra do Pai", como na obra de Karol Wojtyla, "Raios de paternidade", centrada sobre São José, visto como a sombra do Pai. A incapacidade de compreender quão profundamente José encarne isto demonstra a fratura que se verificou.

Uma das maiores contribuições de João Paulo II foram suas catequeses de quarta-feira, nas quais apresentou uma visão do amor humano nos termos do relacionamento nupcial. Quais são os elementos mais essencialmente novidadeiros deste ensinamento?
Albacete: Gostaria de ligar isto à perda do sentido do sacramento, porque o matrimônio é o sacramento primordial. Se não tivesse existido o Pecado original, não existiriam os sacramentos, mas tão somente o matrimônio. O matrimônio revela a intenção de Deus no criar a partir do nada. Não é apenas paternidade, porque a paternidade é inseparável da maternidade e do relacionamento nupcial. Tudo isso, porém, se perdeu. João Paulo II oferece uma grandíssima ajuda para recuperar a unidade entre estes elementos que definem o amor humano. Sem esta unidade, o amor humano é como um edifício que desaba: é um 11 de setembro. Resiste por um pouco, se incendeia e você pensa que o problema é manter o fogo sob controle e, de repente, o edifício desaba.
Schindler: Concordo. Gostaria apenas de acrescentar uma coisa: parece-me que o que ambos os papas querem dizer é que há algo que diz respeito ao homem como destino de paternidade, que diz respeito à mulher como destino de maternidade, que diz respeito à criança; algo que manifesta uma característica essencial da natureza do amor humano. Na nossa cultura, tendemos a julgar que existem agentes humanos, abstratos, pelos quais acontece de serem homens e mulheres. Mas, se perdermos os caracteres distintivos do homem, perdemos uma característica essencial do amor. Se perdermos os caracteres distintivos da mulher, perdemos algo de essencial quanto ao significado do amor. E se pensarmos nas crianças como pequenos adultos que se originarão disto, perdemos algo de essencial quanto ao que respeita ao significado do amor humano. Pensando neste último aspecto, há uma beleza particular no fato de que Deus tenha revelado a Si mesmo em Cristo, na forma de uma criança. Não é uma circunstância temporal: Jesus é Filho do Pai pela eternidade. Por isto, a filiação, o ser criança, não é uma condição da qual somos destinados a sair.
Albacete: Até que não se tornem uma coisa só, vocês não irão ao encontro do próprio destino.

* Publicado em Tracce, no dia 19 de abril de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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