quinta-feira, 14 de abril de 2011

Uma aula sobre o coração e a justiça dada por Tomás de Aquino e Giussani


Por Francesco Ventorino

“Existe um bem que ficaríamos contentes com possuir porque nos é caro por si mesmo e não pelas vantagens que dele possam advir?”. A questão emerge de um dos diálogos de Platão, A República. Glauco reflete sobre o bem e sobre o mal, interrogando seu mestre Sócrates. “Tenho uma grande vontade de ouvir – acrescentou – o que é justo e injusto e qual o poder que têm, por si, sobre a alma do homem”. Porque parece que os homens fazem as leis dando “nome de legítimo e justo àquilo que é estabelecido pela lei”. Seria, portanto, esta “a origem da justiça e a sua essência”?
Eis como é colocada desde as origens do pensamento ocidental a pergunta sobre o fundamento da lei humana e sobre sua justiça. Pergunta, esta, muito atual. Pietro Barcellona, que se dedicou muito a este tema e com o qual compartilhei as reflexões que deram origem ao livro La lotta tra diritto e giustizia (A luta entre o direito e a justiça – em tradução livre –, cujo original foi publicado pela Marietti, em 2008, sem tradução para o português; ndt), já tinha, há um tempo, colocado o dedo sobre esta ferida. “Nunca, como na atual fase, se ouviu tanto a prepotente necessidade de afirmar que existem direitos do homem que os Estados e os poderes constituídos não podem violar nem sacrificar, e todavia nada permite mais que se atribua forma e realidade a estes direitos. [...] A falta de todo fundamento metafísico e de toda legitimidade transcendente torna a ordem jurídica contingente e artificial, privada de qualquer referência a uma ordem natural que, de alguma forma, reconduza à harmonia do cosmo. Toda ordem é, por sua natureza, arbitrária, sem justificação nem medida. Definitivamente consumida a ideia de contar com algumas verdades eternas e imutáveis, com alguma razão universal, não sobra outra coisa senão se confiar à frágil contingência dos acordos contratuais e dos pactos sociais, com os quais os indivíduos decidem fixar um limite aos seus ilimitados desejos” (Il declino dello Stato. Riflessioni di fine secolo sulla crisi del progetto moderno – O declínio do Estado: reflexões de fim de século sobre a crise do projeto moderno – publicado pela Dedalo, em  1998).
Tal postura mental gera todo tipo de mentira, visto que o pensamento não adere mais à verdade da realidade e as palavras são distorcidas, sustentam um projeto sobre a sociedade que não tem outro ponto de referência diferente do poder mesmo.
“Uma questão fundamental que se coloca para o sistema democrático – escreveu Bento XVI quando era ainda o cardeal Ratzinger – é se a vontade de uma maioria verdadeira e legitimamente pode tudo. É possível que ela torne legítima todas as coisas, vinculando todos, ou a razão se encontra acima da maioria, de forma que nunca seria possível se tornar realmente um direito aquilo que fosse contra a razão?” (Chiesa, ecumenismo e politica – Igreja, ecumenismo e política – publicado pela Paoline, em 1987).
No famoso diálogo que teve, em Mônaco, em 2004, com Jürgen Habermas, o mesmo Ratzinger evidenciou a urgência de uma nova fundação da ética e do direito na sociedade contemporânea: “A tarefa de colocar o poder sob o controle do direito remete, consequentemente, à questão de como nasce o direito e de como deve ser o direito para que seja instrumento da justiça e não do privilégio daqueles que detêm o poder de legislar” (Ragione e Fede in dialogo – Razão e Fé em diálogo – publicado pela Marsilio, em 2005).
Como nasce, portanto, o direito? Entre as respostas a esta pergunta, aquela dada por Tomás de Aquino não deve ser desvalorizada. Na sua Suma Teológica, ele colocou na razão do homem a medida e o critério da bondade do seu agir: “O bem humano consiste no ser conforme à razão, e o mal no ser contrário à razão” (I-II, q. 18, a. 5, c.).
É possível que se tenha a impressão de que uma assertiva do gênero prefigure aquela autonomia da razão que está na base da doutrina moral kantiana, mas se trata, na realidade, de toda uma outra perspectiva. Kant tem razão quando afirma que o princípio da moralidade reside na razão. Mas, para o Aquinate, a razão não é entendida como emancipada de todo vínculo e, portanto, como instância absoluta e independente, mas como faculdade dada ao homem para conhecer aquilo que é, e, nessa medida, participe da luz intelectual de Deus. É, portanto, num sentido bastante particular que a razão humana funda, em Tomás, a moralidade do agir do homem: funda-a na medida em que colhe, com os próprios recursos naturais, aquela lei eterna que é a ordem e a medida que a razão divina dá a todas as coisas: “Ora, é em virtude da lei eterna, que é a razão divina, que a razão humana é a regra da vontade humana, pela qual se lhe mede a bondade. E por isso, diz a Escritura (Sl 4, 6 e 7): ‘Muitos dizem: quem nos patenteará os bens? Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu rosto’, quase dizendo: a luz da razão, existente em nós, pode nos mostrar o bem e regular a vontade, na medida em que é a luz do teu rosto” (I-II, q. 19, a. 4, c.).
Tudo isso pressupõe uma confiança na razão humana, como imagem da razão divina. A razão é a exigência profunda e a capacidade de verdade e de felicidade que há no coração do homem e o critério com o qual medir os mios necessários para a sua realização.
As leis humanas podem se dizer justas, portanto, “na medida em que se uniformizam à reta razão” (I-II, q. 93, a. 3, c.). Quando elas se desviam da razão, então não têm mais a natureza de lei, mas muito mais de violência.
Agostinho, no IV livro do De civitate Dei, já havia colocada uma pergunta inquietante: “Uma vez que se tenha renunciado à justiça, o que serão os Estados senão uma grande confusão de criminosos?” (Remota itaque iustitia, quid sunt regna nisi magna latrocinia?). Não é verdadeiro, no fim das contas, que os criminosos mesmos formam pequenos Estados?  Homens comandados por um chefe e mantidos juntos por um pacto comum, partilham um roubo segundo uma lei tácita. Se este mal se alarga a um número maior de celerados, se se espalha por toda uma região, conquista cidades e subjuga povos, então assumirá mais abertamente o nome de reino: não tanto pela renúncia à maldade, mas pela tranqüila impunidade. Esta foi a resposta franca que um pirata deu a Alexandre o Grande. Parecer-lhe-ia justo, perguntou o Macedônio, infestar os mares? Por que ele continuava a causar danos? E o pirata, com temerária ousadia, respondeu: “Pelo mesmo motivo pelo qual tu infestas a terra; mas, visto que eu o faço com um barco insignificante, chamam-me malfeitor, e visto que tu o fazes com uma frota potente, chamam-te imperador”.
A lei humana é, por isso, opus rationis: merece ser reconhecida e observada na medida em que expressa uma aproximação progressiva da razão do legislador àquela ordem natural que tem seu fundamento último na razão divina. É este caminho de aproximação que explica a diversidade de opiniões entre os homens acerca de tudo aquilo que não é “justo” – ou seja, iuxta rationem – com evidência imediata.
Padre Luigi Giussani teve a inteligência para dizer isso com palavras existencialmente mais compreensíveis e eficazes. N’O senso religioso (publicado em italiano sob o título I senso religioso, pela editora Rizzoli, em 1997; ndt) conduz o leitor através de uma apaixonante análise introspectiva, que ele chama “experiência original” ou “experiência elementar”, para descobrir o que é o “coração”. Ele é como que “um complexo de exigências e de evidências com o qual o homem é lançado no confronto com tudo o que existe”. Estas exigências que emergem como evidentes para a consciência do homem, quando ele começa a enfrentar a realidade e, consequentemente, a refletir sobre si mesmo, reconduzem à ratio tomista. De fato, a razão para Tomás de Aquino – como vimos – é a exigência e a capacidade de verdade e de bem que há dentro do coração de cada homem.
A modernidade da abordagem de Giussani, que confia tudo a uma evidência interior, enquanto busca encontrar crédito no seu interlocutor, não lhe impede de sublinhar que para a nossa experiência elementar é também evidente que este “critério original”, mesmo sendo “imanente a nós”, não somos nós que no-lo damos, mas nos é “dado” junto com a nossa natureza: uma mãe esquimó, uma mãe da Terra do Fogo, uma mãe japonesa, dão à luz seres humanos que são reconhecíveis como tais, tanto por conotações exteriores como pela “marca interior”. Este critério original se revela, portanto, requintadamente pessoal e, ao mesmo tempo, universal.
A negação sistemática deste fundamento universal da verdade e da justiça expõe o homem ao totalitarismo nas suas várias formas jurídicas ou políticas. Hannah Arendt escreveu: “o chamado ideal do regime totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas o indivíduo para o qual a distinção entre realidade e ficção, entre verdadeiro e falso não existe mais” (Le origini del totalitarismo – As origens do totalitarismo – publicando na Itália pela Einaudi, em 2004; ndt). Mas a aceitação de um fundamento metajurídico do direito positivo está ligada àquela capacidade própria da razão humana de encontrar o verdadeiro e o bom nas coisas. Poucos, hoje, parecem dispostos a subscrever isso. Uma vez mais devemos dizer: é tarefa dos cristãos recordar ao homem a sua grandeza.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 14 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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