João Paulo II
Redemptor hominis
aos veneráveis Irmãos no Episcopado
aos Sacerdotes
às Famílias religiosas
aos Filhos e Filhas da Igreja
e a todos os Homens de Boa Vontade
no início do Seu Ministério Pontifical
4 de março de 1979
IV. A MISSÃO DA IGREJA E O DESTINO DO HOMEM
18. A Igreja solicita pela vocação do homem em Cristo
Esta vista de olhos, necessariamente sumária, da situação do homem no mundo contemporâneo, faz-nos voltar ainda mais os nossos pensamentos e corações para Jesus Cristo, para o mistério da Redenção, no qual o problema do homem se acha inscrito com uma especial força de verdade e de amor. Se Cristo “se uniu de certo modo a cada homem”, [115] a Igreja, penetrando no íntimo deste mistério, na sua linguagem rica e universal, está vivendo também mais profundamente a própria natureza e missão. Não é em vão que o Apóstolo fala do Corpo de Cristo, que é a Igreja. [116] Se este Corpo Místico de Cristo, depois, é Povo de Deus — como dirá por sua vez o Concílio Vaticano II, baseando-se em toda a tradição bíblica e patrística — isto quer dizer que todos os homens nele são penetrados por aquele sopro de vida que provém de Cristo. Deste modo, o voltar-se para o homem, voltar-se para os seus reais problemas, para as suas esperanças e sofrimentos, para as suas conquistas e quedas, também faz com que a mesma Igreja como corpo, como organismo e como unidade social, perceba os mesmos impulsos divinos, as luzes e as forças do Espírito que provêm de Cristo crucificado e ressuscitado; e é por isto que ela vive a sua vida. A Igreja não tem outra vida fora daquela que lhe dá o seu Esposo e Senhor. De fato, exatamente porque Cristo, no seu mistério de Redenção, se uniu a ela, a Igreja deve estar fortemente unida com cada um dos homens.
Tal união de Cristo com o homem é em si mesma um mistério, do qual nasce o “homem novo”, chamado a participar na vida de Deus, [117] criado novamente em Cristo para a plenitude da graça e da verdade. [118] A união de Cristo com o homem é a força e a fonte da força, segundo a incisiva expressão de São João no prólogo do seu Evangelho: “O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. [119] É esta força que transforma interiormente o homem, como princípio de uma vida nova que não fenece nem passa, mas dura para a vida eterna. [120] Esta vida, prometida e proporcionada a cada homem pelo Pai em Jesus Cristo, eterno e unigênito Filho, encarnado e nascido da Virgem Maria “ao chegar a plenitude dos tempos”, [121] é o complemento final da vocação do homem; é, de alguma maneira, o cumprir-se daquele “destino” que, desde toda a eternidade, Deus lhe preparou. Este “destino divino” torna-se via, por sobre todos os enigmas, as incógnitas, as tortuosidades e as curvas, do “destino humano” no mundo temporal. Se, de fato, tudo isto, não obstante toda a riqueza da vida temporal, leva por inevitável necessidade à fronteira da morte e à meta da destruição do corpo humano, apresenta-se-nos Cristo para além desta meta: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em Mim... não morrerá jamais”. [122] Em Jesus Cristo crucificado, deposto no sepulcro e depois ressuscitado, “brilha para nós a esperança da feliz ressurreição... a promessa da imortalidade futura”, [123] em direção à qual o homem caminha, através da morte do corpo, partilhando com tudo o que é criado e visível esta necessidade a que está sujeita a matéria. Nós tentamos e procuramos aprofundar cada vez mais a linguagem desta verdade que o Redentor do homem encerrou na frase: “O espírito é que vivifica, a carne para nada serve”. [124] Estas palavras, apesar das aparências, exprimem a mais alta afirmação do homem: a afirmação do corpo, que o espírito vivifica!
A Igreja vive esta realidade, vive desta verdade sobre o homem, o que lhe permite transpor as fronteiras da temporalidade e, ao mesmo tempo, pensar com particular amor e solicitude em tudo aquilo que, nas dimensões desta temporalidade, incide na vida do homem, na vida do espírito humano, onde se afirma aquela inquietude perene, expressa nas palavras de Santo Agostinho: “Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto, até que não repouse em Vós”. [125] Nesta inquietude criativa bate e pulsa aquilo que é mais profundamente humano: a busca da verdade, a insaciável necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo e a voz da consciência. A Igreja, ao procurar ver o homem como que com “os olhos do próprio Cristo”, torna-se cada vez mais cônscia de ser a guarda de um grande tesouro, que não lhe é lícito dissipar, mas que deve continuamente aumentar. Com efeito, o Senhor Jesus disse: “Quem não ajunta comigo, dispersa”. [126] Aquele tesouro da humanidade, enriquecido do inefável mistério da filiação divina, [127] da graça de “adoção como filhos” [128] no Unigênito Filho de Deus, mediante a qual dizemos a Deus “Abbá, Pai”, [129] é ao mesmo tempo uma força potente que unifica a Igreja sobretudo por dentro e que dá sentido a toda a sua atividade. Por tal força a Igreja une-se com o Espírito de Cristo, com aquele Espírito Santo que o Redentor havia prometido e que comunica continuamente, e cuja descida, revelada no dia do Pentecostes, perdura sempre. Assim, no homem revelam-se as forças do Espírito, [130] os dons do Espírito, [131] os frutos do Espírito Santo. [132] E a Igreja do nosso tempo parece repetir cada vez com maior fervor e com santa insistência: “Vinde, Espírito Santo!”. Vinde! Vinde! “Lavai o que se apresenta sórdido! Regai o que está árido! Sarai o que está ferido! Abrandai o que é rígido! Aquecei o que está frígido! Guiai o que se acha transviado!”. [133]
Esta oração ao Espírito Santo, elevada precisamente com a intenção de obter o Espírito, é a resposta a todos os “materialismos” da nossa época. São estes que fazem nascer tantas formas de insaciabilidade do coração humano. Esta súplica se faz ouvir em diversos lugares e parece que frutifica também de modos diversos. Poder-se-á dizer que, nesta súplica, a Igreja não está sozinha? Sim, pode-se dizer, porque “a necessidade” daquilo que é espiritual é exprimida também por pessoas que se encontram fora dos confins visíveis da Igreja. [134] Ou não será isto mesmo confirmado, talvez, por aquela verdade sobre a Igreja, posta em evidência com tanta perspicácia pelo recente Concílio na Constituição dogmática Lumen Gentium, naquela passagem em que ensina ser a Igreja “sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano?”. [135]
Esta invocação ao Espírito e pelo Espírito não é outra coisa senão um constante introduzir-se na plena dimensão do mistério da Redenção, no qual Cristo, unido ao Pai e com cada homem, nos comunica sem cessar esse mesmo Espírito que põe em nós os sentimentos do Filho e nos orienta para o Pai. [136] É por isso que a Igreja da nossa época — época particularmente faminta de Espírito, porque faminta de justiça, de paz, de amor, de bondade, de fortaleza, de responsabilidade e de dignidade humana — deve se concentrar e reunir-se em torno de tal mistério da Redenção, encontrando nele a luz e a força indispensáveis para a própria missão. Com efeito, se o homem — como dizíamos antes — é a via da vida cotidiana da Igreja, é preciso que a mesma Igreja esteja sempre consciente da dignidade da adoção divina que o homem alcança, em Cristo, pela graça do Espírito Santo, [137] e da sua destinação à graça e à glória. [138]
Ao refletir sempre de modo renovado sobre tudo isto, e aceitando-o com uma fé cada vez mais consciente e com um amor cada vez mais firme, a Igreja se torna simultaneamente mais idônea para aquele serviço do homem, para o qual a chama Cristo Senhor, quando diz: “O Filho do homem... veio não para ser servido, mas para servir”. [139] A Igreja exerce este seu ministério, participando na “tríplice função” que é própria do seu mesmo Mestre e Redentor. Esta doutrina, com o seu fundamento bíblico, foi posta em plena luz pelo Concílio Vaticano II, com grande vantagem para a vida da Igreja. Quando, de fato, nos tornamos conscientes dessa participação na tríplice missão de Cristo, no seu tríplice múnus — sacerdotal, profético e real [140] — simultânea e paralelamente tornamo-nos mais conscientes também daquilo que deve servir a Igreja toda, como sociedade e comunidade do Povo de Deus sobre a terra, compreendendo, além disso, qual deva ser a participação de cada um de nós nesta missão e neste serviço.
19. A Igreja responsável pela verdade
Assim, à luz da sagrada doutrina do Concílio Vaticano II, a Igreja aparece frente a nós como sujeito social da responsabilidade pela verdade divina. Ouçamos com profunda emoção o mesmo Cristo, quando diz: “A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou”. [141] Nesta afirmação do nosso Mestre, não se adverte, porventura, aquela responsabilidade pela verdade revelada, que é “propriedade” do mesmo Deus, se até Ele, o “Filho unigênito” que vive “no seio do Pai”, [142] quando a transmite, como profeta e como mestre, sente necessidade de frisar bem que age em plena fidelidade à sua divina fonte? A mesma fidelidade deve ser uma qualidade constitutiva da fé da Igreja, quer quando ela a professa, quer quando ela a ensina. A fé como específica virtude sobrenatural infundida no espírito humano, faz-nos participantes no conhecimento de Deus, em resposta à sua Palavra revelada. Por isso, se exige que a Igreja, quando professa e ensina a Fé esteja estritamente aderente à verdade divina, [143] e que a mesma Fé se traduza em comportamentos vividos de obediência harmoniosa à razão. [144] O próprio Cristo, preocupado com esta fidelidade à verdade divina, prometeu à Igreja a particular assistência do Espírito da verdade, concedeu o dom da infalibilidade [145] àqueles a quem confiou o mandato de transmitir tal verdade e de ensiná-la [146] — doutrina esta que já havia sido claramente definida pelo Concílio Vaticano I [147] e que, depois, foi repetida também pelo Concílio Vaticano II [148] — e dotou ainda todo o Povo de Deus de um particular sentido da fé. [l49]
Por consequência, tornamo-nos participantes de tal missão de Cristo profeta; e, em virtude da mesma missão e juntamente com Ele, servimos à verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta verdade implica também amá-la e procurar obter a sua mais exata compreensão, de maneira a torná-la mais próxima de nós mesmos e dos outros, com toda a sua força salvífica, com o seu esplendor e com a sua profundidade e simplicidade a um tempo. Este amor e esta aspiração por compreender a verdade devem andar juntos, como o estão a confirmar as histórias pessoais dos Santos da Igreja. Eles eram os mais iluminados pela autêntica luz que esclarece a verdade divina e que aproxima a mesma realidade de Deus, porque se acercavam desta verdade com veneração e amor: amor sobretudo para com Cristo, Palavra viva da verdade divina e, ainda, amor para com a sua expressão humana no Evangelho, na Tradição e na Teologia. De igual modo hoje são necessárias, antes de mais, tal compreensão e tal interpretação da Palavra divina; é necessária tal Teologia. A Teologia teve sempre e continua a ter uma grande importância, para que a Igreja, Povo de Deus, possa participar na missão profética de Cristo de maneira criadora e fecunda. Por isso, os teólogos, como servidores da verdade divina, dedicando os seus estudos e trabalhos a uma cada vez mais penetrante compreensão da mesma verdade, não podem nunca perder de vista o significado do seu serviço na Igreja, contido no conceito do “intellectus fidei” ou seja, da “inteligência da fé”. Este conceito funciona, por assim dizer, a um ritmo bilateral, segundo a expressão de Santo Agostinho: “intellege, ut credas - crede, ut intellegas”. [150] Depois, funciona de maneira correta quando os mesmos teólogos procuram servir o Magistério confiado na Igreja aos Bispos, unidos pelo vínculo da comunhão hierárquica com o Sucessor de Pedro, e, ainda, quando se põem ao serviço da sua solicitude no ensino e na pastoral, como também quando se põem ao serviço dos interesses apostólicos de todo o Povo de Deus.
Como em épocas precedentes, também hoje — e talvez mais ainda — os teólogos e todos os homens de ciência na Igreja são chamados a unirem a fé com a ciência e a sapiência, a fim de contribuírem para uma recíproca compenetração das mesmas, como lemos na oração litúrgica da memória de Santo Alberto Magno, Doutor da Igreja. Este interesse ampliou-se enormemente nos dias de hoje, dado o progresso da ciência humana, dos seus métodos e das suas conquistas no conhecimento do mundo e do homem. E isto diz respeito tanto às chamadas ciências exatas, quanto igualmente às ciências humanas, bem como à Filosofia, cujos ligames estreitos com a Teologia foram recordados pelo Concílio Vaticano II. [151]
Neste campo do conhecimento humano, que continuamente se alarga e a um tempo se diferencia, também a fé deve aprofundar-se constantemente, tornando manifesta a dimensão do mistério revelado e tendendo para a compreensão da verdade, que tem em Deus a única e suprema fonte. Se é lícito — e é até mesmo para desejar — que aquele grande trabalho que se está por fazer neste sentido tome em consideração um certo pluralismo de métodos, tal trabalho, todavia, não pode afastar-se da fundamental unidade no ensino da Fé e da Moral, como finalidade que lhe é própria. É indispensável, portanto, que haja uma estreita colaboração da Teologia com o Magistério. Todos os teólogos devem estar particularmente conscientes daquilo que Cristo exprimiu, quando disse: “A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou”. [152] Ninguém, por conseguinte, pode tratar a Teologia como que se ela fosse uma simples coletânea dos próprios conceitos pessoais; mas cada um deve ter a consciência de permanecer em íntima união com aquela missão de ensinar a verdade, de que é responsável a Igreja.
A participação no múnus profético do próprio Cristo plasma a vida de toda a Igreja, na sua dimensão fundamental. Uma participação particular em tal múnus compete aos Pastores da Igreja, os quais ensinam e, continuamente e de diversos modos, anunciam e transmitem a doutrina da Fé e da Moral cristãs. Este ensino, quer sob o aspecto missionário quer sob o aspecto ordinário, contribui para congregar o Povo de Deus em torno de Cristo, prepara a participação na Eucaristia e indica as vias da vida sacramental. O Sínodo dos Bispos em 1977 dedicou uma atenção especial à catequese no mundo contemporâneo; e o fruto amadurecido das suas deliberações, experiências e sugestões encontrará, dentro em breve, a sua expressão — em conformidade com a proposta dos participantes no mesmo Sínodo — num apropriado Documento pontifício. A catequese constitui, certamente, uma perene e ao mesmo tempo fundamental forma de atividade da Igreja, na qual se manifesta o seu carisma profético: testemunho e ensino andam juntos. E se bem que aqui se fale em primeiro lugar dos Sacerdotes, não se pode deixar de recordar também o grande número de Religiosos e Religiosas que se dedicam à atividade de catequese por amor do divino Mestre. E seria difícil, por fim, não mencionar tantos e tantos Leigos que, nesta mesma atividade, encontram a expressão da sua fé e da sua responsabilidade apostólica.
Além disso, é preciso procurar cada vez mais que as várias formas de catequese e os seus diversos campos — a começar daquela forma fundamental que é a catequese “familiar”, isto é, a catequese dos pais em relação aos próprios filhos — atestem a participação universal de todo o Povo de Deus no múnus profético do mesmo Cristo. É necessário que, coligada a este fato, a responsabilidade da Igreja pela verdade divina seja cada vez mais, e de diversas maneiras, compartilhada por todos. E assim, o que é que diremos aqui dos especialistas das diversas disciplinas, dos representantes das ciências naturais e das letras, dos médicos, dos juristas, dos homens da arte e da técnica, e dos que se dedicam ao ensino nos vários graus e especializações? Todos eles — como membros do Povo de Deus — têm a sua parte própria na missão profética de Cristo, no seu serviço à verdade divina, até só através do seu modo honesto de comportar-se em relação à verdade, seja qual for o campo a que ela pertença, ao mesmo tempo em que educam os outros na verdade, ou lhes ensinam a maturar no amor e na justiça.
Deste modo, portanto, o sentido de responsabilidade pela verdade é um dos fundamentais pontos de encontro da Igreja com todos e cada um dos homens; e é igualmente uma das fundamentais exigências, que determinam a vocação do homem na comunidade da Igreja. A Igreja dos nossos tempos, guiada pelo sentido de responsabilidade pela verdade, deve perseverar na fidelidade à própria natureza, à qual pertence a missão profética que provém do mesmo Cristo: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós ... Recebei o Espírito Santo”. [153]
20. Eucaristia e Penitência
No mistério da Redenção, isto é, da obra salvífica realizada por Jesus Cristo, a Igreja participa no Evangelho do seu Mestre, não apenas mediante a fidelidade à Palavra e através do serviço à verdade, mas igualmente mediante a submissão, cheia de esperança e de amor, ela participa na força da sua ação redentora, que Ele expressou e encerrou, de forma sacramental, sobretudo na Eucaristia. [154] Esta é o centro e o vértice de toda a vida sacramental, por meio da qual todos os cristãos recebem a força salvífica da Redenção, a começar do mistério do Batismo, no qual somos imersos na morte de Cristo, para nos tornarmos participantes da sua Ressurreição, [155] como ensina o Apóstolo. À luz desta doutrina, torna-se ainda mais clara a razão pela qual toda a vida sacramental da Igreja e de cada cristão alcança o seu vértice e a sua plenitude precisamente na Eucaristia. Neste Sacramento, de fato, renova-se continuamente, por vontade de Cristo, o mistério do sacrifício que Ele fez de si mesmo ao Pai sobre o altar da Cruz; sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que se tornou “obediente até à morte”, [156] com a sua doação paterna; ou seja, com o dom da vida nova imortal na ressurreição, porque o Pai é a primeira fonte e o doador da vida desde o princípio. Essa vida nova, que implica a glorificação corporal de Cristo crucificado, tornou-se sinal eficaz do novo dom outorgado à humanidade, dom que é o Espírito Santo, mediante o qual a vida divina, que o Pai tem em si e concede ao Filho ter em si mesmo, [157] é comunicada a todos os homens que estão unidos com Cristo.
A Eucaristia é o Sacramento mais perfeito desta união. Ao celebrarmos e ao mesmo tempo ao participarmos na Eucaristia, nós nos unimos a Cristo terrestre e celeste, que intercede por nós junto do Pai; [158] mas nos unimos sempre através do ato redentor do seu sacrifício, por meio do qual Ele nos remiu, de modo que fomos “comprados por um preço elevado”. [159] O “preço elevado” da nossa redenção comprova também ele o valor que o mesmo Deus atribui ao homem, comprova a nossa dignidade em Cristo. Realmente, tornando-nos “filhos de Deus”, [160] filhos de adoção, [161] à sua semelhança nós tornamo-nos ao mesmo tempo “reino de sacerdotes”, alcançamos o “sacerdócio real”, [162] isto é, participamos naquela restituição única e irreversível do homem e do mundo ao Pai, que Ele, Filho eterno [163] e ao mesmo tempo verdadeiro Homem, operou de uma vez para sempre. A Eucaristia é o Sacramento no qual se exprime mais cabalmente o nosso novo ser, e no qual o mesmo Cristo, incessantemente e sempre de maneira nova, “dá testemunho” no Espírito Santo ao nosso espírito [164] de que cada um de nós, enquanto participante no mistério da Redenção, tem acesso aos frutos da filial reconciliação com Deus, [165] tal como Ele mesmo a atuou e continua sempre a atuar no meio de nós, mediante o ministério da Igreja.
É uma verdade essencial, não só doutrinal mas também existencial, que a Eucaristia constrói a Igreja; [166] e constrói-a como autêntica comunidade do Povo de Deus, como assembleia dos fiéis, assinalada pelo mesmo caráter de unidade de que foram participantes os Apóstolos e os primeiros discípulos do Senhor. A Eucaristia constrói, renovando-a sempre, esta comunidade e unidade; constrói-a sempre e regenera-a sobre a base do sacrifício do mesmo Cristo, porque comemora a sua morte na cruz, [167] com o preço da qual fomos por Ele remidos. Por isso, na Eucaristia nós tocamos de certo modo o próprio mistério do Corpo e do Sangue do Senhor, como atestam as suas mesmas palavras no momento da instituição, em virtude da qual tais palavras se tornaram as palavras da perene celebração da Eucaristia, por parte dos chamados a este ministério na Igreja.
A Igreja vive da Eucaristia, vive da plenitude deste Sacramento, cujo maravilhoso conteúdo e significado tiveram a sua expressão no Magistério da Igreja, desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. [168] Contudo, podemos dizer com certeza que este ensino — sustentado pela perspicácia dos teólogos, pelos homens de profunda fé e de oração e pelos ascetas e místicos, com toda a sua fidelidade ao mistério eucarístico — permanece como que no limiar, sendo incapaz de captar e de traduzir em palavras aquilo que é a Eucaristia em toda a sua plenitude, aquilo que ela exprime e aquilo que nela se atua. Ela é, de fato, o Sacramento inefável! O empenho essencial e, sobretudo, a graça visível e fonte da força sobrenatural da Igreja como Povo de Deus é o perseverar e o progredir constantemente na vida eucarística e na piedade eucarística, é o desenvolvimento espiritual no clima da Eucaristia. Com maior razão, portanto, não é lícito nem no pensamento, nem na vida, nem na ação tirar a este Sacramento, verdadeiramente santíssimo, a sua plena dimensão e o seu significado essencial. Ele é ao mesmo tempo Sacramento-Sacrifício, Sacramento-Comunhão e Sacramento-Presença. Se bem que seja verdade que a Eucaristia foi sempre e deve ser ainda agora a mais profunda revelação e celebração da fraternidade humana dos discípulos e confessores de Cristo, ela não pode ser considerada simplesmente como uma “ocasião” para se manifestar tal fraternidade. No celebrar o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, é necessário respeitar a plena dimensão do mistério divino, o pleno sentido deste sinal sacramental, em que Cristo, realmente presente, é recebido, a alma é repleta de graça e é dado o penhor da glória futura. [169] Daqui deriva o dever de uma rigorosa observância das normas litúrgicas e de tudo aquilo que testemunha o culto comunitário rendido ao mesmo Deus, tanto mais que Ele, neste sinal sacramental, Se nos entrega com confiança ilimitada, como se não tivesse em consideração a nossa fraqueza humana, a nossa indignidade, os nossos hábitos, a rotina, ou até mesmo a possibilidade de ultraje. Todos na Igreja, mas principalmente os Bispos e os Sacerdotes, devem vigiar para que este Sacramento de amor esteja no centro da vida do Povo de Deus e por que, através de todas as manifestações do culto devido, se proceda de molde a pagar “amor com amor” e a fazer com que Ele se torne verdadeiramente “a vida das nossas almas”. [170] Nem poderemos, ainda, esquecer nunca as seguintes palavras de São Paulo: “Examine-se, pois, cada qual a si mesmo e, assim, coma deste pão e beba deste cálice”. [171]
Esta exortação do Apóstolo indica, pelo menos indiretamente, o estreito ligame existente entre a Eucaristia e a Penitência. Com efeito, se a primeira palavra do ensino de Cristo, a primeira frase do Evangelho-Boa Nova, foi “fazei penitência e acreditai na Boa-Nova” (metanoèite), [172] o Sacramento da Paixão, da Cruz e Ressurreição parece reforçar e consolidar, de modo absolutamente especial, tal convite às nossas almas. A Eucaristia e a Penitência tornam-se assim, num certo sentido, uma dimensão dúplice e, a um tempo, intimamente conexa, da autêntica vida segundo o espírito do Evangelho, da vida verdadeiramente cristã. Cristo, que convida para o banquete eucarístico, é sempre o mesmo Cristo que exorta à penitência, que repete o “convertei-vos”. [173] Sem este constante e sempre renovado esforço pela conversão, a participação na Eucaristia ficaria privada da sua plena eficácia redentora, falharia ou, de qualquer modo, ficaria enfraquecida nela aquela particular disponibilidade para oferecer a Deus o sacrifício espiritual, [174] no qual se exprime de modo essencial e universal a nossa participação no sacerdócio de Cristo. Em Cristo, de fato o sacerdócio está unido com o próprio sacrifício, com a sua entrega ao Pai; e tal entrega, precisamente porque é ilimitada, faz nascer em nós — homens sujeitos a multíplices limitações — a necessidade de nos voltarmos para Deus, de uma forma cada vez mais amadurecida e com uma constante conversão, cada vez mais profunda.
Nos últimos anos muito se fez para pôr em realce — em conformidade, aliás, com a mais antiga tradição da Igreja — o aspecto comunitário da penitência e, sobretudo, do sacramento da Penitência na prática da Igreja. Estas iniciativas são úteis e servirão certamente para enriquecer a prática penitencial da Igreja contemporânea. Não podemos esquecer, no entanto, que a conversão é um ato interior de uma profundidade particular, no qual o homem não pode ser substituído pelos outros, não pode fazer-se “substituir” pela comunidade. Muito embora a comunidade fraterna dos fiéis, participantes na celebração penitencial, seja muito útil para o ato da conversão pessoal, todavia, definitivamente é necessário que neste ato se pronuncie o próprio indivíduo, com toda a profundidade da sua consciência, com todo o sentido da sua culpabilidade e da sua confiança em Deus, pondo-se diante dEle, à semelhança do Salmista, para confessar: “Pequei contra vós!”. [175] A Igreja, pois, ao observar fielmente a plurissecular prática do Sacramento da Penitência — a prática da confissão individual, unida ao ato pessoal de arrependimento e ao propósito de se corrigir e de satisfazer — defende o direito particular da alma humana. É o direito a um encontro mais pessoal do homem com Cristo crucificado que perdoa, com Cristo que diz, por meio do ministro do sacramento da Reconciliação: “São-te perdoados os teus pecados”; [176] “Vai e doravante não tornes a pecar”. [177] Como é evidente, isto é ao mesmo tempo o direito do próprio Cristo em relação a todos e a cada um dos homens por Ele remidos. É o direito de encontrar-se com cada um de nós naquele momento-chave da vida humana, que é o momento da conversão e do perdão. A Igreja, ao manter o sacramento da Penitência, afirma expressamente a sua fé no mistério da Redenção, como realidade viva e vivificante, que corresponde à verdade interior do homem, corresponde à humana culpabilidade e também aos desejos da consciência humana. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. [178] O sacramento da Penitência é o meio para saciar o homem com aquela justiça que provém do mesmo Redentor.
Na Igreja que, sobretudo nos nossos tempos, se reúne especialmente em torno da Eucaristia e deseja que a autêntica comunidade eucarística se torne sinal da unidade de todos os cristãos, unidade esta que vai maturando gradualmente, deve estar viva a necessidade da penitência, quer no seu aspecto sacramental, [179] quer também no que respeita à penitência como virtude. Este segundo aspecto foi expresso por Paulo VI na Constituição Apostólica Paenitemini. [180] Uma das obrigações da Igreja é o pôr em prática a doutrina que aí se contém. Trata-se de matéria que deverá, certamente, ser ainda mais aprofundada por nós, em comum reflexão, e tornada objeto de muitas decisões ulteriores, em espírito de colegialidade pastoral, com respeito pelas diversas tradições relacionadas com este ponto e pelas diversas circunstâncias da vida dos homens do nosso tempo. Todavia, é certo que a Igreja do novo Advento, a Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igreja da Eucaristia e da Penitência. Somente com este perfil espiritual da sua vitalidade e atividade, ela é a Igreja da missão divina, a Igreja in statu missionis (em estado de missão), conforme nos foi revelado o rosto da mesma pelo Concílio Vaticano II.
21. Vocação cristã: servir e reinar
O Concílio Vaticano II, ao elaborar a partir dos próprios fundamentos a imagem da Igreja como Povo de Deus — através da indicação da tríplice missão do mesmo Cristo, participando na qual nós nos tornamos verdadeiramente Povo de Deus — sublinhou também aquela característica da vocação cristã que se pode definir “real”. Para apresentar toda a riqueza da doutrina conciliar sobre isto, seria necessário fazer aqui referência a numerosos capítulos e parágrafos da Constituição Lumen Gentium, bem como a muitos outros Documentos conciliares. No meio de toda esta riqueza, porém, há um elemento que parece emergir: a participação na missão real de Cristo, isto é, o fato de redescobrir em si e nos outros aquela particular dignidade da nossa vocação, que se pode designar por “realeza”. Tal dignidade exprime-se na disponibilidade para servir, segundo o exemplo de Cristo, o qual “não veio para ser servido, mas para servir”. [181]
Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, se pode verdadeiramente “reinar” somente “servindo”, ao mesmo tempo este “servir” exige tal maturidade espiritual, que se tem de defini-la precisamente como “reinar”. Para se poder servir os outros digna e eficazmente, é necessário saber dominar-se a si mesmo, é preciso possuir as virtudes que tornam possível tal domínio. A nossa participação na missão real de Cristo — exatamente na sua “função real” (munus) — anda intimamente ligada com toda a esfera da moral cristã e também humana.
O Concílio Vaticano II, ao apresentar o quadro completo do Povo de Deus, recordando qual o lugar que nele ocupam, não apenas os sacerdotes, mas também os leigos, e não apenas os representantes da Hierarquia, mas também as e os representantes dos Institutos de vida consagrada, não deduziu essa imagem somente de uma premissa sociológica. A Igreja, enquanto sociedade humana, pode sem dúvida alguma ser examinada e definida segundo aquelas categorias de que se servem as ciências humanas. Mas tais categorias não são suficientes. Para toda a comunidade do Povo de Deus e para cada um dos seus membros, não se trata somente de um específico “pertencer socialmente”, mas sobretudo é essencial, para cada um e para todos, uma particular “vocação”. A Igreja, realmente, enquanto Povo de Deus — segundo a doutrina acima aludida de São Paulo, recordada de modo admirável por Pio XII — é também “Corpo Místico de Cristo”. [182] O pertencer a tal “Corpo” deriva de um chamamento particular, junto com a ação salvífica da graça. Portanto, se quisermos ter presente esta comunidade do Povo de Deus, tão vasta e sumamente diferenciada, devemos antes de mais ver Cristo, que diz, de certo modo, a cada um dos membros desta mesma comunidade: “Segue-me”. [183] Esta é a comunidade dos discípulos, cada um dos quais, de maneira diversa, por vezes muito consciente e coerentemente, e por vezes pouco conscientemente e muito incoerentemente, segue Cristo. Nisto manifesta-se também o aspecto profundamente “pessoal” e a dimensão desta sociedade, a qual — não obstante todas as deficiências da vida comunitária, no sentido humano desta palavra — é uma comunidade precisamente pelo fato de que todos a constituem juntamente com o mesmo Cristo, se não por outro motivo, ao menos porque têm nas suas almas o sinal indelével de quem é cristão.
O Concílio Vaticano II aplicou uma atenção muito particular em demonstrar de que maneira esta comunidade “ontológica” dos discípulos e dos confessores se deve tornar cada vez mais, também “humanamente”, uma comunidade consciente da própria vida e atividade. As iniciativas do Concílio quanto a isto encontraram a sua continuidade em numerosas iniciativas ulteriores, de caráter sinodal, apostólico e organizativo. Devemos ter sempre presente, no entanto, a verdade de que toda e qualquer iniciativa em tanto serve para uma verdadeira renovação da Igreja e em tanto contribui para aportar a autêntica luz de Cristo, [184] em quanto se baseia sobre uma adequada consciência da vocação e da responsabilidade por esta graça singular, única e que não se pode repetir, mediante a qual cada um dos cristãos na comunidade do Povo de Deus edifica o Corpo de Cristo. Este princípio, que é a regra-chave de toda a prática cristã — prática apostólica e pastoral, e prática da vida interior e da vida social — deve ser aplicado, em proporção adequada, a todos os homens e a cada um deles. Também o Papa, assim como todos os Bispos, o devem aplicar a si mesmos. A este princípio devem igualmente ser fiéis os sacerdotes, os religiosos e as religiosas. Com base nele, ainda, devem construir a sua vida os esposos, os pais, as mulheres e os homens de condições e de profissões diversas, a começar por aqueles que ocupam na sociedade os cargos mais elevados e a acabar por aqueles que fazem os trabalhos mais simples. É este justamente o princípio daquele “serviço real”, que impõe a cada um de nós, seguindo o exemplo de Cristo, o dever de exigir de si próprio exatamente aquilo para que somos chamados, e a que — para corresponder à vocação — nós nos obrigamos pessoalmente, com a graça de Deus.
Tal fidelidade à vocação recebida de Deus, mediante Cristo, acarreta consigo aquela solidária responsabilidade pela Igreja, para a qual o Concílio Vaticano II desejou educar todos os cristãos. Na Igreja, de fato, enquanto na comunidade do Povo de Deus, guiada pela ação do Espírito Santo, cada um possui “o próprio dom”, conforme ensina São Paulo. [185] Este “dom”, porém, embora seja uma vocação pessoal e uma forma também pessoal de participação na obra salvífica da Igreja, serve igualmente para os outros e constrói a Igreja e as comunidades fraternas nas várias esferas da existência humana sobre a terra.
A fidelidade à vocação, ou seja, a perseverante disponibilidade para o “serviço real”, tem um significado particular para esta multíplice construção, sobretudo pelo que se refere às tarefas de maior compromisso, que têm maior influência na vida do nosso próximo e de toda a sociedade. Devem distinguir-se pela fidelidade à própria vocação os esposos, como resulta da natureza indissolúvel da instituição sacramental do matrimônio. Devem distinguir-se por uma análoga fidelidade à própria vocação os sacerdotes, dado o caráter indelével que o sacramento da Ordem imprime nas suas almas. Ao receber este Sacramento, nós, na Igreja Latina, consciente e livremente comprometemo-nos a viver no celibato; e por isso, cada um de nós deve fazer todo o possível, com a graça de Deus, por ser reconhecido por este dom e fiel ao vínculo assumido para sempre. E isto não diversamente dos esposos: eles devem tender, com todas as suas forças, para perseverar na união matrimonial, construindo com este testemunho de amor a comunidade familiar e educando as novas gerações de homens para serem capazes de consagrar, também eles, toda a sua vida à própria vocação, ou seja, àquele “serviço real” do qual nos foram dados o exemplo e o modelo mais belo por Jesus Cristo.
A Igreja de Cristo, que nós todos formamos, é “para os homens”, no sentido de que, baseando-nos no exemplo do mesmo Cristo [186] e colaborando com a graça que Ele nos obteve, nós podemos atingir tal “reinar”, que o mesmo é dizer, realizar uma maturada humanidade em cada um de nós. Humanidade maturada significa pleno uso do dom da liberdade, que recebemos do Criador, no momento em que Ele chamou à existência o homem feito à sua imagem e semelhança. Este dom encontra a sua plena realização na doação, sem reservas, de toda a própria pessoa humana, em espírito de amor esponsal a Cristo e, com o mesmo Cristo, a todos aqueles aos quais Ele envia homens e mulheres que a Ele são totalmente consagrados segundo os conselhos evangélicos. Este é o ideal da vida religiosa, assumido pelas Ordens e Congregações, tanto antigas como recentes, e pelos Institutos seculares.
Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a liberdade é fim para si mesma, que cada homem é livre na medida em que usa da liberdade como quer, e que para isto é necessário tender-se na vida dos indivíduos e das sociedades. Mas a liberdade, ao contrário, só é um grande dom quando dela sabemos usar conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor uso da liberdade é a caridade, que se realiza no dom e no serviço. Foi para tal liberdade “que Cristo nos libertou” [187] e nos liberta sempre. A Igreja vai haurir aqui a incessante inspiração, o estímulo e o impulso para a sua missão e para o seu serviço no meio de todos os homens. A verdade plena sobre a liberdade humana acha-se profundamente gravada no mistério da Redenção. A Igreja presta verdadeiramente um serviço à humanidade, quando tutela esta verdade, com infatigável aplicação, com amor ardente e com diligência maturada; e, ainda, quando, em toda a própria comunidade, através da fidelidade à vocação de cada um dos cristãos, a mesma Igreja a transmite e a concretiza na vida humana. Deste modo é confirmado aquilo a que já nos referimos em precedência, isto é, que o homem é e continuamente se torna a “via” da vida cotidiana da Igreja.
22. A Mãe da nossa confiança
Quando no início do novo Pontificado dirijo para o Redentor do mundo o meu pensamento e o meu coração, desejo deste modo entrar e penetrar no ritmo mais profundo da vida da Igreja. Com efeito, se a Igreja vive a sua própria vida, isso acontece porque ela a vai haurir em Cristo, o qual deseja sempre uma só coisa, isto é, que nós tenhamos a vida e a tenhamos abundantemente. [188] Aquela plenitude de vida que está nEle é ao mesmo tempo destinada ao homem. Por isso, a Igreja, ao se unir a toda a riqueza do mistério da Redenção, torna-se Igreja dos homens que vivem; e vivem, porque vivificados do interior pela ação do “Espírito da Verdade”, [189] e porque assistidos pelo amor que o Espírito Santo difunde nos nossos corações. [190] Assim, o objetivo de qualquer serviço na Igreja, seja ele apostólico, pastoral, sacerdotal ou episcopal, é o de manter este ligame dinâmico do mistério da Redenção com todos e cada um dos homens.
Se estamos conscientes deste intento a realizar, então nos parece compreender melhor o que significa dizer que a Igreja é mãe; [191] e, ainda, o que significa que a Igreja, sempre, mas de modo particular nos nossos tempos, tem necessidade de uma Mãe. Devemos uma gratidão especial aos Padres do Concílio Vaticano II, por terem expresso esta verdade na Constituição Lumen Gentium, com a rica doutrina mariológica que nela se encerra. [192] E dado que Paulo VI, inspirado por esta doutrina, proclamou a Mãe de Cristo “Mãe da Igreja”, [193] e que tal denominação teve uma ampla ressonância, seja permitido também ao seu indigno Sucessor dirigir-se a Maria como Mãe da Igreja, no final das presentes considerações, que era oportuno desenvolver no início do seu serviço pontifical.
Maria é a Mãe da Igreja, porque, em virtude da inefável eleição do mesmo Pai Eterno [194] e sob a particular ação do Espírito de Amor, [195] Ela deu a vida humana ao Filho de Deus, “do qual procedem todas as coisas e para o qual vão todas as coisas”, [196] e do qual assume a graça e a dignidade da eleição todo o Povo de Deus. O seu próprio Filho quis explicitamente estender a maternidade de sua Mãe — e estendê-la de um modo facilmente acessível a todas as almas e a todos os corações — apontando-lhe do alto da Cruz como filho o seu discípulo predileto. [197] E o Espírito Santo sugeriu-lhe que permanecesse no Cenáculo, após a Ascensão do Senhor, também Ela, recolhida na oração e na expectativa, juntamente com os Apóstolos, até ao dia do Pentecostes, quando devia visivelmente nascer a Igreja, saindo da obscuridade. [198]
E em seguida, todas as gerações de discípulos e de quantos confessam e amam Cristo — à semelhança do Apóstolo João — acolheram espiritualmente em sua casa [199] esta Mãe, que assim, desde os mesmos primórdios, isto é, a partir do momento da Anunciação, foi inserida na história da Salvação e na missão da Igreja. Nós todos, portanto, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo desejamos nos unir a Ela de modo particular. E o fazemos com total aderência à tradição antiga e, ao mesmo tempo, com pleno respeito e amor pelos membros de todas as Comunidades cristãs.
Fazemo-lo, depois, impelidos por profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade. Se, efetivamente, nesta fase difícil e cheia de responsabilidade da história da Igreja e da humanidade nós advertimos uma especial necessidade de nos dirigir a Cristo, que é o Senhor da sua Igreja e o Senhor da história do homem, em virtude do mistério da Redenção, estamos convencidos de que ninguém mais como Maria poderá introduzir-nos na dimensão divina e humana deste mistério. Ninguém como Maria foi introduzido nele pelo próprio Deus. Nisto consiste o caráter excepcional da graça da Maternidade divina. Não somente é única e algo que se não pode repetir a dignidade desta Maternidade na história do gênero humano, mas única também pela profundidade e raio de ação é a participação de Maria no plano divino da salvação do homem, através do mistério da Redenção.
Este mistério formou-se, podemos dizer, sob o coração da Virgem de Nazaré, quando Ela pronunciou o seu “fiat” (faça-se). A partir daquele momento esse coração virginal e ao mesmo tempo materno, sob a particular ação do Espírito Santo, acompanha sempre a obra do seu Filho e palpita na direção de todos aqueles que Cristo abraçou e abraça continuamente com o seu inexaurível amor. E, por isso mesmo, este coração deve ser também maternalmente inexaurível. A característica deste amor materno, que a Mãe de Deus insere no mistério da Redenção e na vida da Igreja, encontra a sua expressão na sua singular proximidade em relação ao homem e a todos as suas vicissitudes. Nisto consiste o mistério da Mãe. A Igreja, que A olha com amor e esperança muito particular, deseja apropriar-se deste mistério de maneira cada vez mais profunda. Nisto, de fato, a mesma Igreja reconhece também a via da sua vida cotidiana, que é todo o homem, todos e cada um dos homens.
O eterno amor do Pai, manifestando-se na história da humanidade através do Filho que o mesmo Pai deu “para que todo aquele que crê nEle não pereça mas tenha a vida eterna”, [200] esse amor aproxima-se de cada um de nós por meio desta Mãe e, de tal modo, adquire sinais compreensíveis e acessíveis para cada homem. Por conseguinte, Maria deve encontrar-se em todas as vias da vida cotidiana da Igreja. Mediante a sua maternal presença, a Igreja ganha certeza de que vive verdadeiramente a vida do seu Mestre e Senhor, de que vive o mistério da Redenção em toda a sua vivificante profundidade e plenitude. De igual modo, a mesma Igreja, que tem as suas raízes em numerosos e variados campos da vida de toda a humanidade contemporânea, adquire também a certeza e, dir-se-ia, a experiência de estar bem próxima do homem, de todos e de cada um dos homens, de que é a sua Igreja: Igreja do Povo de Deus.
Perante tais tarefas, que surgem ao longo das vias da Igreja, ao longo daquelas vias que o Papa Paulo VI nos indicou claramente na primeira Encíclica do seu Pontificado, nós, conscientes da absoluta necessidade de todas estas vias e, ao mesmo tempo, das dificuldades que sobre elas se amontoam, sentimos ainda mais ser-nos indispensável uma profunda ligação com Cristo. Ressoam em nós, como um eco sonoro, as palavras que Ele disse: “Sem mim, nada podeis fazer”. [201] E não só sentimos esta necessidade, mas ainda um imperativo categórico para uma grande, intensa e crescente oração de toda a Igreja. Somente a oração pode fazer com que estas grandes tarefas e dificuldades que se lhes seguem não se tornem fonte de crise, mas ocasião e como que fundamento para conquistas cada vez mais maturadas na caminhada do Povo de Deus em direção à Terra Prometida, nesta etapa da história que se vai aproximando do final do segundo Milênio.
Portanto, ao terminar esta meditação, com uma calorosa e humilde exortação à oração, desejo que se persevere nesta oração unidos com Maria, Mãe de Jesus, [202] assim como perseveraram os Apóstolos e discípulos do Senhor, após a Ascensão, no Cenáculo de Jerusalém. [203] E suplico a Maria, celeste Mãe da Igreja, sobretudo, que nesta oração do novo Advento da humanidade, Ela se digne de perseverar conosco, que formamos a Igreja, isto é, o Corpo Místico do Seu Filho unigênito. Eu espero que, graças a tal oração, nós possamos receber o Espírito Santo que desce sobre nós; [204] e, deste modo, tornar-nos testemunhas de Cristo “até às extremidades da terra”, [205] como aqueles que saíram do Cenáculo de Jerusalém no dia do Pentecostes.
Com a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 4 de Março, primeiro Domingo da Quaresma, do ano de 1979, primeiro do meu Pontificado.
* Extraído do site do Vaticano, do dia 4 de março de 1979. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.
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