sexta-feira, 25 de junho de 2010

A nossa razão? Pode descobrir o Mistério porque entende o mundo

Por Costantino Esposito

O problema da racionalidade pareceria um daqueles argumentos que não excitam mais um real interesse, visto que todos (ou quase todos) pensam tê-lo, de alguma maneira, definido e resolvido. A quem, no debate cultural e político dos nossos dias, viria ainda em mente a ideia de verificar a razoabilidade de uma posição ou de uma escolha? Ou melhor, todos (ou quase todos) parecem dar como óbvio que a razão de um argumento ou de uma perspectiva consista na sua coerência, de partida, com alguns pressupostos culturais, ideológicos, políticos, científicos, religiosos. Mas o problema da razão raramente é reaberto a partir daqueles mesmos pressupostos, os quais são assumidos como “válidos” em virtude dos “valores” que os sustentam e que eles exprimem.
Mas, dessa forma, a racionalidade acaba por ser identificada com a capacidade de obter consequências eficazes a partir de posições (e de interesses) assumidas, no mais das vezes, de maneira preconceituosa e, portanto, com a nossa habilidade de medir os efeitos a partir das causas ou (re)modelar as causas em relação aos efeitos. Em suma, a racionalidade seria um procedimento de controle das nossas estratégias cognoscitivas e morais, um instrumento nas mãos de sujeitos (individuais mas também públicos, econômicos, políticos, ideológicos etc.), os quais o utilizam segundo os conteúdos e os objetivos que estabelecem para si a cada vez. Basta pensar em como usamos de forma óbvia – isto é, sem verificar a razoabilidade ou o significado essencial – algumas palavras fundamentais nos nossos discursos públicos, tais como nascimento e morte, vida e natureza, direito e justiça, democracia e mercado,  liberalismo e igualdade, e muitas outras.
Mas é exatamente aqui que se evidencia o problema: o sujeito que detém e usa a razão como uma faculdade sua ou um “poder” seu lhe dará também a orientação que ele já antecipadamente decidiu adotar. É a vontade de que quem a usa que decide qual é a natureza da razão, revirando assim toda uma longa e gloriosa história, segundo a qual é, pelo contrário, a natureza “objetiva” da razão que decide sobre a vontade do sujeito, abrindo, diante dele, todo o horizonte da sua pergunta pelo significado e arrastando a trajetória tendencialmente infinita da sua espera por uma resposta adequada.
Com a consequência que, se a razão (como faculdade humana) ou a racionalidade (como característica dos discursos e das ações dos homens) constituem o domínio da capacidade de mensuração e da produtividade das decisões preconceituosas, elas são condenadas a deixar fora de si todo aquilo que chamamos o “sentimental” ou o “emocional”, o “vital”, ou simplesmente “natural”, tidos “obviamente” como irracionais ou, na melhor das hipóteses, como a-racional, no sentido duplo de que excedem as nossas capacidades de controle natural e não têm uma origem e um fim diferentes do mero acontecimento natural.
Mas, há outra consequência relevante nesta perspectiva da razão como procedimento estratégico decidido pelo sujeito, e é que ela se joga inteira na “delimitação” do seu campo. Certamente,  discurso dos limites da razão (Kant docet!) é absolutamente central, exatamente porque compreende de forma realista o alcance da nossa faculdade cognoscitiva, e evita que ela pretenda definir ou agarrar, de forma idolátrica, aquilo que ultrapassa seus poderes. Mas esta cautela realística, no fim, foi tornada no seu exato contrário, ou seja na convicção de que exista razoavelmente, isto é verdadeiramente, somente aquilo que consegue entrar nos esquemas a priori da nossa mente, enquanto que aquilo que os supera, mesmo que exista, não poderá nunca ser objeto de um conhecimento ou de uma escolha racional.
O problema que se acredita que foi resolvido foi, na realidade, apenas evitado: quando reconheço que a realidade me supera, que o mundo é sempre maior do que os meus esquemas mentais, que os fatores em jogo são sempre mais numerosos do que eu sou capaz de contar, que o ser tem um sentido tendencialmente infinito, realizo um ato racional ou irracional? A razão funciona apenas quando mede e predetermina o mundo, ou também age quando descobre a existência do “mistério”? E vice-versa: esta realidade misteriosa é apenas aquilo que, por definição, escapa da razão humana (pelo menos por enquanto!), ou pode se tornar, enquanto tal, o objeto de um olhar racional que reconheça o outro de si?
Exatamente por isso, é preciso reabrir – desafiando a aparência de ingenuidade ou o veredicto de impossibilidade – a questão da razão. Não se trata, todavia, de perseguir um conceito unívoco de racionalidade, no qual se possa homologar a multiplicidade de perspectivas e a pluralidade dos métodos com os quais, a cada vez, a razão se aplica nos diversos campos do saber e do agir. Porém, não se trata também de repetir o velho auspício de uma integração entre racionalidade “instrumental” da tecno-ciência e a razão “meditativa” da filosofia ou da poesia. Muito mais do que isso, se trata de verificar se pode existir uma “natureza” ou uma “constituição” da razão humana que permita a suas múltiplas e diversificadas aplicações; e também verificar se tais aplicações exaurem, em si mesmas, a função da racionalidade ou necessitam – exatamente para poderem funcionar – um horizonte maior de referência.
A hipótese que pretendo verificar é a seguinte: a razão se apresenta como a experiência de um relacionamento, como um espaço de abertura do sujeito humano (uma abertura que tem o nome de “eu”) no qual a realidade emerge como um “dado”. Antes de todo o subjetivismo e antes de todo objetivismo, os “dois” – o eu e a realidade – não apenas entram em relação entre si, como também eles mesmos são um relacionamento. Deste ponto de vista, cada um de nossos limites, a inevitável delimitação no uso da nossa razão, pode ser entendido também como um confim, uma soleira ou um lugar de abertura a uma “razão” (ou logos) maior da nossa mesma faculdade. A razão é, portanto, uma faculdade cognoscitiva e valorativa, mas também – e indissociavelmente – é um princípio de inteligibilidade, ou seja, é um sentido do mundo, diria quase uma dimensão constitutiva do real.
Tentarei documentar esta hipótese através de quatro casos que, no meu entender, são emblemáticos. Trata-se de “figuras” nas quais está em ação uma verdadeira e própria experiência de pensamento, e que podemos reter deliciosamente como “filosóficas”, ainda que não se trate de filósofos profissionais, mas de individualidades criativas que buscam dar-se conta e comunicar a razoabilidade do seu relacionamento com o ser.
O primeiro caso é o do pintor Paul Cézanne, que, trabalhando sobre nossa capacidade de “perceber” visivelmente a natureza (e de torná-la, assim, uma pintura), chega à descoberta de que o nosso olhar, a nossa visão mesma da realidade que nos circunda, constitui o modo primário no qual a realidade chega à sua mais própria “realização”. Não porque a reduzamos ao nosso modo de ver, mas porque, pelo contrário, o nosso ver coincide com o modo mais próprio de dar-se ao mundo.
O segundo caso é o do poeta e escritor Thomas S. Eliot, e diz respeito àquela estranha “modificação” da história que acontece a cada vez que é criada uma nova obra literária, graças à qual toda a tradição precedente não apenas cresce, continua ou é interrompida, mas também é completamente reformulada. O que acontece com a criação de uma nova obra de arte acontece “contemporaneamente” a todas as obras do passado, e o sentido histórico se realiza exatamente na medida em que se descobre que o passado não “é” apenas passado, mas “é” também presente.
O terceiro caso é o do compositor Igor Stravinski, com a sua teoria da música como o único domínio no qual o homem “realiza” o seu presente, visto que, enquanto em todas as suas outras expressões e atividades, ele é obrigado a sofrer o passar irrevogável do tempo, na experiência musical ele o torna, pelo contrário, “real” e “estável”, na medida em que é capaz de colher e de “construir” a ordem do presente.
O quarto caso, finalmente, é o do físico Erwin Schrödinger, com as suas reflexões sobre o relacionamento entre os objetos da natureza, conhecidos através da pesquisa científica, e a consciência do eu, isto é do autor de todo o complexo de representações que formam a cena da ciência. Enquanto, de fato, esta última tem progressivamente “objetivado” o mundo, ela se revela sempre mais incapaz de conhecer o “sujeito” de tal objetivação. E assim o eu fica como um ponto de fuga, sem o qual toda a ciência não seria possível, mas que a ciência mesma não poderá nunca reduzir totalmente às suas explicações.
Este é, portanto, o enigma fascinante da racionalidade humana: algo totalmente “nosso”, que, porém, nunca poderemos reduzir a nós mesmos. 

* Extraído de IlSussidiario.net, do dia 25 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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