quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Olhar para Cristo para compreender o sentido do viver no serviço e no dom de si

Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro

Quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Gostaria hoje de terminar as minhas catequeses sobre a oração do Saltério, meditando um dos mais famosos “Salmos reais”, um Salmo que Jesus mesmo citou e que os autores do Novo Testamento retomaram e leram amplamente em referência ao Messias, a Cristo. Trata-se do Salmo 110 segundo a tradição hebraica, 109 segundo a greco-latina; um Salmo muito amado pela Igreja antiga e pelos crentes de todos os tempos. Esta oração estava, talvez, vinculada à entronização de um rei davídico; todavia, o seu sentido vai além da específica contingência do fato histórico abrindo-se a dimensões mais amplas e se tornando assim celebração do Messias vitorioso, glorificado à direita de Deus.
O Salmo começa com uma declaração solene: “Oráculo do Senhor ao meu senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’” (v. 1).
Deus mesmo entroniza o rei na glória, fazendo-o sentar à Sua direita, um sinal de honra grandiosa e de privilégio absoluto. Desta maneira, o rei é admitido à participação da senhoria divina, da qual é mediador junto do povo. Tal senhoria do rei se concretiza também na vitória sobre os adversários, que são colocados aos seus pés por Deus mesmo; a vitória sobre os inimigos é do Senhor, mas o rei é feito participante desta vitória e o seu triunfo se torna testemunho e sinal do poder divino.
A glorificação real expressa neste início do Salmo foi assumida pelo Novo Testamento como profecia messiânica; por isso, o versículo está entre os mais usados pelos autores neotestamentários, seja como citação explícita, que como alusão. Jesus  mesmo mencionou este versículo a propósito do Messias, para mostrar que o Messias é mais do que Davi, é o Senhor de Davi (cf. Mt 22, 41-45; Mc 12, 35-37; Lc 20, 41-44). E Pedro o retoma no seu discurso no Pentecostes, anunciando que, na ressurreição de Cristo, realiza-se esta entronização do rei e que, a partir de então, Cristo está à direita do Pai, participa da Senhoria de Deus sobre o mundo (cf. At 2, 29-35). É o Cristo, de fato, o Senhor entronizado, o Filho do homem sentado à direita de Deus que vem sobre as nuvens do céu, como Jesus mesmo se define durante o processo diante do Sinédrio (cf. Mt 26, 63-64; Mc 14, 61-62; cf. também Lc 22, 66-69). É Ele o verdadeiro rei que, com a ressurreição, entrou na glória à direita do Pai (cf. Rm 8, 34; Ef 2, 5; Col 3, 1; Hb 8, 1; Hb 12, 2), superior aos anjos, sentado nos céus acima de toda potência e com todos os adversários aos seus pés, até que aquela última inimiga, a morte, seja vencida definitivamente por Ele (cf. 1Cor 15, 24-26; Ef 1, 20-23; Hb 1, 3-4.13; Hb 2, 5-8; Hb 10, 12-13; 1Pd 3, 22). E se entende imediatamente que este rei está à direita de Deus e participa da Sua Senhoria, não é um desses homens sucessores de Davi, mas somente o novo Davi, o Filho de Deus que venceu a morte e participa realmente da glória de Deus. É o nosso rei, que nos dá mesmo a vida eterna.
Entre o rei celebrado pelo nosso Salmo e Deus existe, portanto, uma relação incindível; os dois governam juntos um único governo, até o ponto que o Salmista pode afirmar que é Deus mesmo que estende o cetro do soberano dando-lhe a missão de dominar sobre seus adversários, como recita o versículo 2:
“De Sião o Senhor estende o cetro do teu poder: Domina no meio de teus inimigos!”
O exercício do poder é um encargo que o rei recebe diretamente do Senhor, uma responsabilidade que deve viver na dependência e na obediência, se tornando assim sinal, no meio do povo, da presença poderosa e providente de Deus. O domínio sobre os inimigos, a glória e a vitória são dons recebidos, que fazem do soberano um mediador do triunfo divino sobre o mal. Ele domina sobre os inimigos transformando-os, os vence com o seu amor.
Por isso, no versículo seguinte, se celebra a grandeza do rei. O versículo 3, na realidade, apresenta algumas dificuldades de interpretação. No texto original hebraico faz-se referência à convocação do exército, para a qual o povo responde generosamente, colocando-se em torno do seu soberano no dia da sua coroação. A tradução grega dos LXX, que remonta ao século III ou II a.C., faz referência, pelo contrário, à filiação divina do rei, ao seu nascimento ou geração da parte do Senhor, e é esta a escolha interpretativa de toda a tradição da Igreja, de forma que o versículo soa da seguinte forma:
“Tu és príncipe desde o dia do teu nascimento, entre santos esplendores; antes da aurora, como orvalho, eu te gerei.”
Este oráculo divino sobre o rei afirmaria, portanto, uma geração divina inundada de esplendor e de mistérios, uma origem secreta e imperscrutável, ligada à beleza arcana da aurora e à maravilha do orvalho que, na luz da primeira manhã, brilha sobre os campos e os torna fecundos. Delineia-se, assim, indissoluvelmente ligada à realidade celeste, a figura do rei que vem realmente de Deus, do Messias que leva ao povo a vida divina e é mediador de santidade e de salvação. Também aqui vemos que tudo isto não é realizado pela figura de um rei davídico, mas pelo Senhor Jesus Cristo, que realmente vem de Deus; Ele é a luz que traz a vida divina para o mundo.
Com esta imagem sugestiva e enigmática termina a primeira estrofe do Salmo, que dá lugar a outro oráculo, que abre uma nova perspectiva, na linha de uma dimensão sacerdotal ligada à realeza. Recita assim o versículo 4:
“O Senhor jurou e não se arrepende: ‘Tu és sacerdote para sempre à maneira de Melquisedec’.”
Melquisedec era o sacerdote rei de Salém que havia abençoado Abraão e oferecido pão e vinho depois da vitoriosa campanha militar conduzida pelo patriarca para salvar o neto Ló das mãos dos inimigos que o haviam capturado (cf. Gn 14). Na figura de Melquisedec, poder real e sacerdotal convergem e, nesse ponto, são proclamados pelo Senhor numa declaração que promete eternidade: o rei celebrado pelo Salmo será sacerdote para sempre, mediador da presença divina no meio do seu povo, através da bênção que vem de Deus e que, na ação litúrgica, se encontra com a resposta bendita do homem.
A Carta aos Hebreus faz uma referência explícita a este versículo (cf. Hb 5, 5-6.10; Hb 6, 19-20) e sobre ele centra todo o capítulo 7, elaborando a sua reflexão sobre o sacerdócio de Cristo. Jesus, assim nos diz a Carta aos Hebreus à luz do Salmo 110 (109), Jesus é o verdadeiro e definitivo sacerdote, que leva à plena realização os traços do sacerdócio de Melquisedec tornando-os perfeitos.
Melquisedec, como diz a Carta aos Hebreus, era “sem pai, sem mãe, sem genealogia” (Hb 7, 3a), sacerdote, portanto, não segundo as regras dinásticas do sacerdócio levítico. Ele, por isso, “permanece sacerdote para sempre” (Hb 7, 3b), prefiguração de Cristo, sumo sacerdote perfeito que “foi constituído não por prescrição de uma lei humana, mas pela Sua imortalidade” (Hb 7, 16). No Senhor Jesus ressuscitado e ascendido ao céu, onde senta à direita do Pai, realiza-se a profecia do nosso Salmo e o sacerdócio de Melquisedec é levado à perfeição, porque se tornou absoluto e eterno, se tornou uma realidade que não conhece fim (cf. Hb 7, 24). E a oferta do pão e do vinho, realizada por Melquisedec nos tempos de Abraão, encontra a sua realização no gesto eucarístico de Jesus, que no pão e no vinho oferece a Si mesmo e, vencida a morte, leva todos os crentes à vida. Sacerdote perene, “santo, inocente, imaculado” (Hb 7, 26), Ele, como diz ainda a Carta aos Hebreus, pode “levar a termo a salvação daqueles que por Ele vão a Deus, porque vive sempre para interceder em seu favor” (Hb 7, 25).
Depois deste oráculo divino do versículo 4, com seu solene juramento, a cena do Salmo muda e o poeta, dirigindo-se diretamente ao rei, proclama: “O Senhor está à tua direita!” (v. 5a). Se, no versículo 1 era o rei que se assentava à direita de Deus em sinal de sumo prestígio e de honra, agora é o Senhor que Se coloca à direita do soberano para protegê-lo com o escudo na batalha e para salvá-lo de todo perigo. O rei está protegido, Deus é o seu defensor e juntos combatem e vencem todo o mal.
Desta maneira, se abrem os versículos finais do Salmo com a visão do soberano triunfante que, apoiado pelo Senhor, tendo recebido dEle poder e glória (cf. v. 2), se opõe aos inimigos, fazendo os adversários baterem em retirada, e julgando as nações. A cena é pintada com cores fortes, a fim de significar a dramaticidade do combate e a plenitude da vitória real. O soberano, protegido pelo Senhor, abate todos os obstáculos e segue seguro em direção à vitória. Diz-nos: sim, no mundo existe tanto mal, há uma batalha permanente entre o bem e o mal, e parece que o mal seja o mais forte. Não, mais forte é o Senhor, o nosso verdadeiro rei e sacerdote Cristo, porque combate com toda a força de Deus e, não obstante todas as coisas que nos fazem duvidar do êxito positivo da história, Cristo vence e o bem vence, o amor vence e não o ódio.
É aqui que se insere a sugestiva imagem com a qual o nosso Salmo se finaliza, que é também uma palavra enigmática.
“Ao longo do caminho ele bebe da torrente, por isso levantará a cabeça.” (v. 7)
No meio da descrição da batalha, se destaca a figura do rei que, num momento de trégua e de repouso, mata a sede numa torrente d’água, encontrando nele restauro e novo vigor, de forma a poder retomar o seu caminho triunfante, com a cabeça erguida, em sinal de vitória definitiva. É óbvio que esta palavra muito enigmática era um desafio para os Padres da Igreja devido às diversas interpretações que se podiam dar. Assim, por exemplo, Santo Agostinho disse: esta torrente é o ser humano, a humanidade, e Cristo bebeu desta torrente fazendo-se homem, e assim, entrando na humanidade do ser humano, levantou Sua cabeça e, agora, é a cabeça do Corpo Místico, é o nosso chefe, é o vencedor definitivo (cf.  Enarratio in Psalmum CIX, 20: PL 36, 1462).
Caros amigos, seguindo a linha interpretativa do Novo Testamento, a tradição da Igreja teve grande consideração por este Salmo como um dos textos messiânicos mais significativos. E, de modo eminente, os Padres fizeram referência contínua a ele sempre em chave cristológica: o rei cantado pelo Salmista é, definitivamente, Cristo, o Messias que instaura o Reino de Deus e vence as potências do mundo, é o Verbo gerado pelo Pai antes de toda criatura, antes da aurora, o Filho encarnado morto e ressuscitado e sentado nos céus, o sacerdote eterno que, no mistério do pão e do vinho, doa a remissão dos pecados e a reconciliação com Deus, o rei que ergue a cabeça triunfando sobre a morte com a Sua ressurreição. Bastaria recordar, uma vez mais, um trecho do comentário de Santo Agostinho a este Salmo: “Era necessário conhecer o único Filho de Deus, que estava para vir entre os homens, para assumir o homem e para se tornar homem através da natureza assumida: Ele morreu, ressuscitou, ascendeu ao céu, está sentado à direita do Pai e cumpriu entre os povos tudo o que havia prometido... Tudo isto, portanto, deveria ser profetizado, deveria ser prenunciado, deveria ser assinalado como destinado a ocorrer, para que, acontecendo de repente, não causasse medo, mas fosse prenunciado, ou mais ainda aceito com fé, alegria e espera. No âmbito destas promessas recai este Salmo, que profetiza, em termos seguros e explícitos, o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, de quem não devemos ter a menor dúvida de que nEle seja realmente  anunciado o Cristo (cf. Enarratio in Psalmum CIX, 20: PL 36, 1447).
O evento pascal de Cristo se torna assim a realidade para a qual o Salmo nos convida a olhar, olhar para Cristo para compreender o sentido da verdadeira realeza, do viver no serviço e no dom de si, num caminho de obediência e de amor levado “até o fim” (cf. Jo 13, 1 e Jo 19, 30). Rezando com este Salmo, pedimos ao Senhor, portanto, que possamos, também nós, seguir sobre Seus caminhos, no seguimento de Cristo, o rei Messias, dispostos a subir com Ele sobre o monte da cruz para chegarmos, também com Ele, à glória, e contemplá-Lo sentado à direita do Pai, rei vitorioso e sacerdote misericordioso que doa perdão e salvação a todos os homens. E também nós, tornados, por graça de Deus, “gente escolhida, sacerdócio régio, nação santa” (cf. 1Pd 2, 9), poderemos chegar com alegria às fontes da salvação (cf. Is 12, 3) e proclamar a todo o mundo as maravilhas dAquele que nos “chamou das trevas para a Sua luz maravilhosa” (cf. 1Pd 2, 9).
Caros amigos, nestas últimas Catequeses quis vos apresentar alguns Salmos, preciosas orações que encontramos na Bíblia e que refletem as várias situações da vida e os vários estados de espírito que podemos ter para com Deus. Gostaria, agora, de renovar a todos o convite a rezar com os Salmos, habituando-se talvez a usar a Liturgia das Horas da Igreja, as Laudes pela manhã, as Vésperas à tarde, as Completas antes de dormirem. O nosso relacionamento com Deus será, com isso, enriquecido no caminho cotidiano em direção a Ele, e realizado com maior alegria e confiança. Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 16 de novembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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