sexta-feira, 18 de junho de 2010

Audiência Geral - Santo Tomás de Aquino (2)

Papa Bento XVI

Praça São Pedro
Quarta-feira, 16 de junho de 2010 

Santo Tomás de Aquino

Caros irmãos e irmãs,
Hoje, gostaria de continuar a apresentação de Santo Tomás de Aquino, um teólogo de tamanho valor que o estudo do seu pensamento foi explicitamente recomendado pelo Concílio Vaticano II em dois documentos, o decreto Optatam totius, sobre a formação para o sacerdócio, e a declaração Gravissimum educationis, que trata da educação cristã. De resto, já em 1880 o Papa Leão XIII, seu grande estimador e promotor dos estudos tomistas, quis declarar Santo Tomás Patrono das Escolas e das Universidades Católicas.
O principal motivo dessa apreciação reside não apenas no conteúdo do seu ensinamento, mas também no método adotado por ele, sobretudo a sua nova síntese e distinção entre filosofia e teologia. Os Padres da Igreja se encontravam confrontados com diversas filosofias de tipo platônico, nas quais se apresentava uma visão completa do mundo e da vida, incluindo a questão de Deus e da religião. No confronto com estas filosofias, eles mesmos tinham elaborado uma visão completa da realidade, partindo da fé e usando elementos do platonismo, para responder às questões essenciais dos homens. Esta visão, baseada na revelação bíblica e elaborada com um platonismo corrigido à luz da fé, era por eles chamada a “nossa filosofia”. A palavra “filosofia” não era, portanto, expressão de um sistema puramente racional e, como tal, distinto da fé, mas indicava uma visão complexa da realidade, construída na luz da fé, mas feita e pensada pela razão; uma visão que, certamente, ia além das capacidades próprias da razão, mas que, como tal, era também satisfatória para ela. Para Santo Tomás, o encontro com a filosofia pré-cristã de Aristóteles (que morreu por volta do ano 322 a.C.) abria uma perspectiva nova. A filosofia aristotélica era, obviamente, uma filosofia elaborada sem o conhecimento do Antigo e do Novo Testamento, uma explicação do mundo sem revelação, apenas a partir da razão. E esta racionalidade consequente era convincente. Assim, a velha forma da “nossa filosofia” dos Padres não funcionava mais. A relação entre filosofia e teologia, entre fé e razão, devia ser repensada. Existia uma “filosofia” completa e convincente em si mesma, uma racionalidade que precedia a fé, e depois a “teologia”, um pensar com a fé e na fé. A questão urgente era essa: o mundo da racionalidade, a filosofia pensada sem Cristo, e o mundo da fé são compatíveis? Ou se excluem? Não faltavam elementos que afirmavam a incompatibilidade entre os dois mundos, mas Santo Tomás estava firmemente convencido da sua compatibilidade – mais do que isso, estava convencido de que a filosofia elaborada sem o conhecimento de Cristo praticamente era como se esperasse a luz de Jesus para ser completa. Esta foi a grande “surpresa” de Santo Tomás, que determinou o seu caminho de pensador. Mostrar esta independência entre filosofia e teologia e, ao mesmo tempo, a sua recíproca relação foi a missão histórica do grande mestre. E assim se entende que, no século XIX, quando se declarava fortemente a incompatibilidade entre razão moderna e fé, Papa Leão XIII indicou Santo Tomás como guia no diálogo entre um e outra. No seu trabalho teológico, Santo Tomás supõe e concretiza esta relação. A fé consolida, integra e ilumina o patrimônio de verdade que a razão humana adquire. A confiabilidade que Santo Tomás acorda a estes dois instrumentos de conhecimento – a fé e a razão – pode ser reconduzida à convicção de que ambas provêm da única fonte de toda verdade, o Logos divino, que age tanto no âmbito da criação como no âmbito da redenção.
Junto com o acordo entre razão e fé, deve-se reconhecer, de outro lado, que elas implicam procedimentos cognoscitivos diferentes. A razão acolhe uma verdade por força de sua evidência intrínseca, mediata ou imediata; a fé, por sua vez, aceita uma verdade exclusivamente pela autoridade da Palavra de Deus que se revela. Santo Tomás, no princípio da Summa Theologiae, escreve: “A ordem das ciências é dupla; algumas procedem a partir de princípios conhecidos, através da luz natural da razão, como  matemática, a geometria e outras semelhantes; outras procedem a partir de princípios conhecidos através de uma ciência superior: como a perspectiva procede dos princípios conhecidos através da geometria e a música dos princípios conhecidos através da matemática. Deste modo, a sagrada doutrina (isto é, a Teologia) é ciência porque procede dos princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, isto é, da ciência de Deus e dos santos” (I, q. 1, a. 2).
Esta distinção assegura a autonomia tanto das ciências humanas, quanto das ciências teológicas. Isso, porém, não equivale a uma separação, mas implica muito mais uma recíproca e vantajosa colaboração. A fé, de fato, protege a razão de toda tentação de desconfiança nas próprias capacidades, a estimula a se abrir a horizontes sempre mais vastos, mantém viva nela a busca pelos fundamentos e, quando a razão mesma se aplica à esfera sobrenatural da relação entre Deus e o homem, enriquece o seu trabalho. Segundo Santo Tomás, por exemplo, a razão humana pode, sem dúvida alguma, chegar a afirmar a existência de um único Deus, mas apenas a fé, que acolhe a Revelação divina, é capaz de atingir o mistério do Amor de Deus Uno e Trino.
De outro lado, não é apenas a fé que ajuda a razão. Também a razão, com seus meios, pode fazer algo de importante para a fé, servindo a ela de três formas diferentes, conforme Santo Tomás resume no proêmio do seu comentário ao De Trinitate de Boécio: “Demonstrar os fundamentos da fé; explicar, através de similaridades, as verdades da fé; afastar as objeções que se levantam contra a fé” (q. 2, a. 2). Toda a história da teologia é, no fundo, o exercício deste empenho da inteligência, que mostra a inteligibilidade da fé, a sua articulação e harmonia interna, a sua razoabilidade e a sua capacidade de promover o bem do homem. A correção dos raciocínios teológicos e o seu significado cognoscitivo real se fundamentam no valor da linguagem teológica, que é, segundo Santo Tomás, principalmente uma linguagem analógica. A distância entre Deus, o Criador, e o ser das suas criaturas é infinita; a dessemelhança é sempre maior do que a semelhança (cf. DS 806). Não obstante isso, em toda a diferença entre Criador e criatura existe uma analogia entre o ser criado e ser do Criador que nos permite falar sobre Deus com palavras humanas.
Santo Tomás fundou a doutrina da analogia, mais do que em argumentações extravagantemente filosóficas, também no fato que, com a Revelação, Deus mesmo nos falou e nos autorizou, portanto, a falar dEle. Acredito que seja importante chamar a atenção sobre esta doutrina. Ela, de fato, nos ajuda a superar algumas objeções do ateísmo contemporâneo, que nega que a linguagem religiosa tenha significado objetivo, e sustenta, pelo contrário, que tenha apenas um valor subjetivo ou simplesmente emotivo. Esta objeção nasce do fato de o pensamento positivista estar convencido de que o homem não conhece o ser, mas apenas as funções experimentáveis da realidade. Com Santo Tomás e com a grande tradição filosófica estamos convencidos de que, na realidade, o homem não conhece apenas as funções, objeto das ciências naturais, mas conhece algo do ser mesmo – por exemplo, conhece a pessoa, o Tu do outro, e não apenas o aspecto físico e biológico do ser.
À luz deste ensinamento de Santo Tomás, a teologia afirma que, ainda que limitada, a linguagem religiosa é dotada de sentido – porque tocamos o ser –, como uma flecha que se dirige para a realidade que significa. Este acordo fundamental entre razão humana e fé cristã é reconhecido também em outro princípio basilar do pensamento do Aquinate: a Graça divina não anula, mas supõe e aperfeiçoa a natureza humana. Esta última, de fato, mesmo depois do pecado, não é completamente corrupta, mas ferida e enfraquecida. A Graça, outorgada por Deus e comunicada através do Mistério do Verbo encarnado, é um dom absolutamente gratuito com o qual a natureza é curada, potencializada e ajudada a perseguir o desejo inato no coração de cada homem e mulher: a felicidade. Todas as faculdades do ser humano são purificadas, transformadas e elevadas pela Graça divina.
Uma importante aplicação desta relação entre a natureza e a Graça se reconhece na teologia moral de Santo Tomás de Aquino, que é bastante atual. No centro do seu ensinamento a este respeito ele coloca a lei nova, que é a lei do Espírito Santo. Com um olhar profundamente evangélico, insiste sobre o fato de que esta lei é a Graça do Espírito Santo dada a todos aqueles que acreditam em Cristo. A tal Graça se une o ensinamento escrito e oral das verdades doutrinais e morais, transmitido pela Igreja. Santo Tomás, sublinhando o papel fundamental, na vida moral, da ação do Espírito Santo, da Graça, de onde brotam as virtudes teologais e morais, ajuda a compreender que todo cristão pode atingir as altas perspectivas do “Sermão da Montanha” na medida em que vive um relacionamento de fé autêntico em Cristo, se se abre à ação do seu Santo Espírito. Porém – acrescenta o Aquinate –, “mesmo que a graça seja mais eficaz do que a natureza, todavia a natureza é mais essencial para o homem” (Summa Theologiae, Ia, 1. 29, a. 3), de forma que, na perspectiva moral cristã, há um lugar para a razão que é capaz de discernir a lei moral natural. A razão pode reconhecê-la considerando o que é bem agir e o que é bem evitar para conseguir aquela felicidade que está cada um deseja, e que impõe também uma responsabilidade pelos outros, e, portanto, a busca do bem comum. Em outras palavras, as virtudes do homem, teologais e morais, estão radicadas na natureza humana. A Graça divina acompanha, sustenta e impulsiona o empenho ético mas, por si só, segundo Santo Tomás, todos os homens, crentes e não crentes, são chamados a reconhecer as exigências da natureza humana expressas na lei natural e a inspirar-se nela na formulação das leis positivas, isto é, aquelas emanadas das autoridades civis e políticas para regular a convivência humana.
Quando a lei natural e a responsabilidade que ela implica são negadas, abre-se dramaticamente o caminho ao relativismo ético no plano individual e ao totalitarismo do Estado no plano político. A defesa dos direitos universais do homem e a afirmação do valor absoluto da dignidade da pessoa postulam um fundamento. Este fundamento não seria exatamente a lei natural, com os valores não negociáveis que ela indica? O Venerável João Paulo II escrevia, na sua encíclica Evangelium vitae, palavras que ainda são de grande atualidade: “Urge, portanto, para o futuro da sociedade e para o desenvolvimento de uma democracia saudável, redescobrir a existência dos valores humanos e morais essenciais e nativos, que brotam da verdade mesma do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores, portanto, que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado nunca poderão criar, modificar ou destruir, mas deverão apenas reconhecer, respeitar e promover” (n. 71).
Para concluir, Tomás nos propõe um conceito da razão humana largo e confiante: largo porque não é limitado aos espaços da dita razão empírico-científica, mas aberto a todo o ser e, portanto, também às questões fundamentais e irrenunciáveis do viver humano; e confiante porque a razão humana, sobretudo se acolhe as inspirações da fé cristã, é promotora de uma civilização que reconhece a dignidade da pessoa, a inviolabilidade dos seus direitos e a obrigatoriedade dos seus deveres. Não surpreende que a doutrina sobre a dignidade da pessoa, fundamental para o reconhecimento da intangibilidade dos direitos do homem, tenha amadurecido em ambientes de pensamento que acolheram a herança de Santo Tomás de Aquino, que tinha a criatura humana em elevada estima. Ele a definiu, com a sua linguagem rigorosamente filosófica, como “aquilo que de mais perfeito se encontra em toda a natureza, isto é, um sujeito subsistente em uma natureza racional” (Summa Theologiae, Ia, q. 29, a. 3).
A profundidade do pensamento de Santo Tomás de Aquino emana – não nos esqueçamos disso nunca – da sua fé viva e da sua piedade fervorosa, que exprimia em orações inspiradas, como esta na qual pede a Deus: “Concede-me, te peço, uma vontade que te busque, uma sabedoria que te encontre, uma vida que te agrade, uma perseverança que te espere com confiança e uma confiança que, no fim, chegue a te possuir”.

* Extraído do Site do Vaticano. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco. 

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