quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Václav Havel: somente o maravilhamento é capaz de nos salvar de uma globalização sem alma


Por Angelo Bonaguro

Havel já havia dito isso no seu primeiro discurso de início de ano como primeiro presidente tchecoslovaco eleito democraticamente (em janeiro de 1990): vivemos numa época em que os problemas do ambiente nos dizem respeito de perto, mas “o pior é que vivemos num ambiente moralmente deteriorado”. Então, ele se referia à herança devastadora do sistema totalitário, seja do ponto de vista ecológico que ética, um sistema que tinha sido assimilado e sustentado pelas suas vítimas mesmas.
A atenção de Havel aos temas do ambiente não nasceu ontem, mas não tem nada que ver com sóis sorridentes ou com batalhas demagógicas. Havel compreende o ambiente como o conjunto de relações entre seres humanos depositários de uma cultura e a objetividade na qual se movem e da qual são responsáveis. O dramaturgo exemplificou este pensamento dando-lhe forma dramática também na peça A reabilitação (1987), onde um grupo de arquitetos encarregado de reestruturar uma velha cidade se encontra com as várias almas dos projetistas e com a vontade da população local. 
Inaugurando o encontro anual do Forum2000 (a fundação e a conferência homônima que acontece em Praga; ndr), que aconteceu no mês passado, dedicado ao ao “Mundo no qual queremos viver”, Havel denunciou o orgulho da civilização moderna que acredita que pode eliminar o senso do mistério. “Quando vou para minha casinha no campo”, disse o ex-presidente, aquilo que, até há bem pouco tempo, era claramente reconhecível como cidade, agora está perdendo os seus limites e a sua identidade, para se transformar num enorme aglomerado indistinto, sem ruas e praças bem definidas, composto por “enormes shopping centers, postos de gasolina, gigantescos estacionamentos, edifícios enormes destinados a escritórios e depósitos de todo tipo, e fileiras de casinhas que, aparentemente, são contíguas mas, ao mesmo tempo, estão desesperadamente distantes umas das outras”.
E, no meio de tudo isso, de forma desigual, alternam-se zonas de território que não são nada – nem campos, nem bosques, nem assentamentos humanos. Cada vez que se concede à cidade o direito de destruir a paisagem circunstante para, nela, criar aglomerados que tornam a vida irreconhecível, prejudica-se, ao mesmo tempo, a rede das comunidades humanas naturais e, sob a égide da homologação internacional, anulam-se as individualidades e as identidades. Ao final desse processo, “a coletividade sem medidas dos consumidores gera um novo tipo de solidão”.
A causa de tudo isso – segundo Havel – está no fato de que vivemos na primeira civilização ateia globalizada, uma civilização que perdeu os seus nexos com o infinito e com o eterno e, por isso, prefere o proveito imediato ao de longo prazo. O aspecto mais perigoso desta civilização ateia é o seu orgulho, que a torna desrespeitosa quanto ao patrimônio transmitido pela natureza e pelos nossos antepassados, e que faz com que ela se sinta pretensiosamente onisciente.
Deste modo, com o culto do proveito imediato e do progresso, “desaparece o respeito pelo mistério e pelo incomensurável, perde-se o senso do infinito e do eterno, que, até há bem pouco tempo atrás, constituíam os principais horizontes das nossas ações. Esquecemos completamente aquilo que a civilização precedente sabia: que nada é certo”.
O dramaturgo desloca o foco de suas reflexões também para a recente crise financeira, definindo-a como um sinal instrutivo para o mundo contemporâneo, um aviso contra a presunção desproporcional e o orgulho da civilização moderna: a ação humana não é totalmente previsível como acreditam muitos inventores de teorias e concepções econômicas. E o drama é que estes mesmos sabichões, ao invés de aprenderem a pequena lição de humildade que lhes poderia ter ensinado que nem tudo é automaticamente concedido, pretendem descrever com o mesmo método as causas da crise!
“Por séculos, a humanidade viveu em civilizações capazes de formar uma cultura, onde os assentamentos tinham uma ordem natural e determinada por uma sensibilidade compartilhada comunitariamente”, graças à qual o último ferreiro medieval, quando lhe pediam para forjar uma ferramenta, a produzia segundo aquilo que, hoje, chamaríamos estilo gótico, sem ter necessidade de um mestre ou de um designer que lhe ensinassem como fazer. A nossa civilização aparece muito mais como uma das tantas consequências secundárias do orgulho moderno, que acredita ter entendido tudo e, por isso, acredita poder planejar o mundo inteiro.
Segundo Havel, somente o maravilhamento e a consciência de que as coisas não são tão óbvias quanto parece é que nos pode ajudar a superar este período obscuro. Esse maravilhamento diante do mistério da criação o provoca a uma série de perguntas: qual é o significado de tudo isso que existe? É possível o não-ser? “É possível que as coisas existam para que possamos nos maravilhar, e que nós existamos para que exista alguém que se maravilhe. Mas, por que é necessário que exista alguém que se maravilha? E que alternativa pode haver à vida?”.
Um nós de interrogações que agitam ainda o ânimo desse dramaturgo que entrou na casa dos 70 anos apaixonado pela vida, que não parou ainda de procurar, e de maravilhar o seu público, mesmo aquele das multi salas, porque, há alguns meses, colocou na cabeça que vai fazer cinema...

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 3 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Um comentário:

Anônimo disse...

nós vivemos em uma época em que tudo esta efemeramente cartografado. todos os caminhos já foram trilhados e descritos, supostamente. Mas essas certezas não são tão edificantes e como há tantas por aí as pessoas perdem referências. Aí tudo converge ao ponto que define essa geração, o auto-elogio, o elogio de si mesma.