quinta-feira, 16 de abril de 2009

Cartas do P.e Aldo 23

Publico a carta que o P.e Aldo enviou no dia 30 de janeiro de 2009, alguns dias depois de enviar um vídeo que mostrava os instantes finais de Antônio, paciente de AIDS de sua clínica.
Asunción, 30 de janeiro de 2009.

Caros amigos,
Algumas pessoas me fizeram, justamente, observar se era mesmo o caso de mostrar aquele breve “vídeo” sobre a agonia do meu filho Antônio, que morreu jovem, vítima da AIDS, dizendo até o último respiro: “Jesus, José, Maria”.
Antes de mais nada, a coisa interessante é que quem fez o vídeo foi um outro filho meu – Giorgio – e companheiro de doença de Antônio. Giorgio, um engenheiro de informática, doente há anos, foi encontrado na rua, antes de estar aqui conosco.
Então, por que tudo isso?
1. A realidade é a realidade e se impõe por isso... nas diversas circunstâncias da vida: o nascer, o crescer, o estudar, o comer, o tomar banho, o se limpar, o colocar o armário em ordem, o se casar, o ter filhos, o ser padre ou consagrado, sofrer e, enfim, morrer.
A realidade é uma unidade que se exprime de modo maravilhoso a 360°. Então, ou a pessoa a vive ou não a vive. Mas, vivê-la significa ver nela a poderosa voz do Eterno: “ex uno omnia, et omnia locuntur unum”.
Vocês imaginam o que a vida seria, para mim, sem esta perspectiva? Uma paralisia. Eu seria como uma criança diante de uma vitrine cheia de brinquedos, sem saber qual pegar... ou, para dizer com Giussani, seria como uma criança diante do Meccano (jogo de montar, no estilo Lego, com peças metálicas; ndt). Para mim, dentro de toda a confusão de que é feita a realidade, está claro aquele Uno... de tal forma que não existe condição da realidade que não seja positiva, que não gere admiração, comoção. Algo muito diferente do “espetáculo” ou coisas do gênero.
2. Façamos alguns exemplos.
Ontem pela manhã, o Vice-Presidente – hoje, Presidente em exercício, já que Lugo está no Brasil, participando do Fórum Social Mundial – veio nos visitar para convitar a padre Paolino e a mim para a inauguração do Museu do Futebol, com a sua presença, a de Platter – presidente da FIFA –, de Havelange – ex-presidente da FIFA –, de Leoz (da confederação Sulamericana) e outros “divos” do futebol, como Cafu, Higuita etc. Foi uma noite esplêndia, com a “máfia” mundial do futebol. Uma hora antes de sair, na clínica, duas pessoas morreram. Assisti-os, fiquei com eles, dei um beijo em seus corpos frios e, em seguida, com Paolino, fui para a festa do futebol. Voltamos tarde da noite, depois de termos passado em um bom restaurante para comer... então, fui até a clínica para uma última olhada. Finalmente, hora de dormir... mas apenas por três horas.
Às 7h desta manhã, vieram para o café da manhã o Vice-Presidente e dois industriais vicentinos – Rino di Arzignano (o Rei do couro) e um outro empresário paraguaio. Um bom café da manhã. Falamos sobre tudo... falamos, inclusive, com o chefe da secretaria de Galan, com Bepi Saretta, ex-deputado da D.C. (Democrazia Cristiana; ndt) e com um Vice-Ministro do governo Berlusconi. Veem-se possibilidades de ajuda... de financiamento entre os dois governos. Paolino e eu – quase dois cretinos – somos o coração de tudo. Terminado o café da manhã, o Vice-Presidente vai embora e os dois empresários ficam um pouco mais para contemplar tudo. Deixo a vocês imaginar a cara deles. Vão embora também... mas, na hora do almoço, estão de volta e também o Vice-Presidente.
Vou para a clínica, fico com os dois mortos, celebro a Missa, dou neles o beijo final... e vamos para o cemitério. Os doentes que podem se mover, assistem a tudo. Lembro a eles que o fim é para todos e está próximo. Cada rosto que contemplo está cheio de letícia. Os dois caixões passam entre as crianças que estão brincando no pátio... elas param, rezam e, depois, voltam a brincar. A mesma coisa acontece com os adultos que estão no Café Literário, ou com os operários.
Mais tarde, reunimos o Conselho Administrativo, ao mesmo tempo que nos comunicam a chegada de um paciente terminal, com um câncer no rosto grande como uma abóbora e que não para de sangrar. Os médicos e os enfermeiros correm. A vida é a vida. A realidade é a realidade. Ninguém se assusta, nada de trauma ou de espetáculo. Aqui é uma festa porque a vida é assim... e é assim mesmo quando, daqui a pouco, começam as aulas na escola e as nossas crianças de 3 a 12 anos irão à clínica para visitar Victor, Cristina, Celeste, e rezar por quem morreu, tocar seu corpo e fazer o sinal da cruz.
Mas, não é só isso... todos os dias, no almoço, a nossa comunidade religiosa – P.e Paolino, Ferdinando e eu – se vê composta por uma diversidade impressionante de pessoas (normais, deprimidos, com problemas...). Tem os que falam, tem o que não falam, quem fala demais, quem nunca fala. É um circo! Mas, que belo!... Nada de burguesismo ou de pieguismo. Muito pelo contrário: imaginem quanta não deve ser a tensão ideal, a familiaridade com Cristo! Digo a eles: “mas eu fui abraçado assim por Giussani, por Carrón, pela São Carlos (refere-se à Fraternidade Missionária São Carlos Borromeu, ordem religiosa a que pertence; ndt): é a vida”. A comunidade presta contas com a realidade... certamente que tudo poderia ser mais cômodo... mas, a realidade se impõe.
O que quer dizer levar a sério o que Carrón nos tem dito, quando nos fala da realidade, da familiaridade com Cristo? Para mim, é isto.
3. Amigos, vocês entendem onde está o problema? É se somos ainda capazes de olhar para a realidade como sinal da Presença; é se a realidade nos é familiar; se as circunstâncias, quaisquer que sejam – como a crise econômica que assusta a todos –, são, para vocês, como para mim, a modalidade com a qual o Mistério se relaciona com vocês, comigo. Ou são só os aspectos feios da realidade? Por caridade! Para mim, são os aspectos belos, mesmo que dramáticos. Porque não conseguir dormir não é fácil para mim, porém mesmo esta fadiga é bela, porque me faz pedir mais. Quando não durmo bem, tudo me é terrivelmente mais difícil – suo duas vezes mais e, suado, fico muito mais nervoso. Porém, que graça! pois posso pedir o dom da paciência! Além do mais, tenho que enfrentar os “últimos” chegados que quereriam comer-me se pudessem! Em cada instante, aparece alguém que tem uma necessidade, que pede alguma coisa. Os meus nervos não são muito facilmente controláveis. Mas podem, simplesmente, se transformar em oração. E é assim que acontece.
Para terminar, amigos, a vida é a vida e se, por um equívoco, ela se mostrou para vocês em um de seus aspectos mais dramáticos e fascinantes, saibam que, para nós, para mim, é uma outra coisa: é a realidade, é a vida no seu belíssimo aspecto final, quando, finalmente, tudo se cumpre na plenitude da vida... quando a realidade aparece em todo o seu esplendor, como diz São Paulo: “a realidade é o corpo de Cristo”.
Desejo a vocês uma só coisa: que sejam realistas. E, então, mesmo a crise econômica se transformará em criatividade, em possibilidade nova de descobrir o que vocês são, o que nós somos, descobrindo o destino para o qual fomos feitos. Bendita crise, para quem ama a realidade! Uma ocasião única para nos convertermos e acreditarmos na Providência de modo mais concreto.
No fundo, não podemos deixar de seguir a Carrón que nos indica continuamente: “olhem para a realidade”, “familiaridade com Cristo”. Assim, tudo se torna missão, isto é, movimento... como, no almoço de hoje, com um grupo de empresários decididos a caminhar conosco. O movimento é todo este caminhar do eu, do início à eternidade, passando pela morte.
Com afeto
P.e Aldo.

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