sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Paideia e Universidade

Preleção do Cardeal Angelo Scola
no Dies Academicus da Pontifícia Universidade Salesiana
27 de outubro de 2009

1. Paideia e sociedade pós-moderna
Uma observação eficaz de Jacques Maritain pode nos ajudar a tornar mais preciso o título, bastante amplo, desta preleção. No seu ainda atual volume “Para uma filosofia da educação” o célebre pensador francês afirma: “A coisa mais importante na educação não é um ‘assunto’ de educação e muito menos de ensinamento...”. De fato: “a experiência, que é um fruto incomunicável do sofrimento e da memória, e através da qual se cumpre a formação do homem, não pode ser ensinada em nenhuma escola ou curso” [1].
É introduzida ex-abrupto, como categoria de sustentação do processo educativo, a complexa noção de experiência. Comecemos, então, dizendo que a escolha pelo termo paideia pretende se referir a este apaixonante paradoxo educativo na sua unidade articulada. Ensinamento e educação têm necessidade de envolvimento recíproco de vida, de experiência no sentido pleno, e todavia esta experiência não pode ser ensinada em nenhuma escola e em nenhum curso.
A observação é iluminada – levando-se em consideração a natureza desta universidade, que neste ano comemora 60 anos de fundação e 37 anos de reconhecimento como Universidade – por uma importante afirmação de Bento XVI: “Especialmente quando se trata de educar à fé, é central a figura da testemunha e o papel do testemunho. A testemunha de Cristo não transmite simplesmente informações, mas é envolvida pessoalmente com a verdade que propõe e, através da coerência da própria vida, se torna ponto de referência digno de fé. Ele não remete porém a si mesmo, mas a Alguém que é infinitamente maior que ele, em quem confiou e de quem experimentou uma bondade confiável. O autêntico educador cristão é, portanto, uma testemunha que encontra o modelo pessoal em Jesus Cristo, a testemunha do Pai que não dizia nada de si mesmo, mas falava assim como o Pai lhe havia ensinado. Este relacionamento com Cristo e com o Pai é, para cada um de nós, caros irmãos e irmãs, a condição fundamental para sermos eficazes educadores na fé” [2].
Neste lugar – compreender-se-á –, não pretendemos nos referir à paideia no sentido estrito, como modelo educativo em vigor no mundo greco-romano, porque este modelo, renascendo em contínuas transformações com o surgir de novas culturas (não excluídas aquelas culturas religiosas e aquelas referidas ao Cristianismo), subtende, pelo menos descritivamente, todos os fatores (paideia física, paideia psíquica, orientação em direção ao ethos e ao ethos dos povos) necessários para identificar a ação educativa própria, não apenas da escola e da universidade mesma, mas, mais em geral, de toda a sociedade, e diz respeito a todo o arco da existência humana.
Se com Gevaert podemos definir valor: “todo aquilo que permite dar um significado à existência humana, tudo aquilo que permite ser verdadeiramente humano... (os valores não existem sem o homem que, com eles, é capaz de conferir um significado à própria existência)” [3], podemos ver como o pós-moderno, ao rejeitar a plausibilidade de um significado global para a existência, acaba por colocar em discussão não apenas a noção de valor, mas a ideia mesma de sujeito como entidade autoconsciente e pessoal [4]. Por isso, não seria mais possível falar de uma verdadeira empreitada educativa (paideia), mas deveríamos nos limitar a falar de instrução.
Para além do debate sobre a natureza pós-secular da nossa época, é preciso levar em consideração que a pergunta sobre o “sentido” e sobre o “significado” (respectivamente nomen intentionis e nomen rei, segundo a terminologia escolástica) – e, portanto, a pergunta, em última instância, religiosa – se repropõe em nível pessoal e social, em formas inéditas, e solicita ser interpretada.
Levando em consideração o quadro traçado, estou convencido de que a noção de paideia, entendida no sentido mais amplo sugerido por Maritain, seja, também hoje, capaz de fornecer o terreno de base para garantir aquele “cuidado das gerações” que é o proprium de cada experiência educativa. E é a noção de experiência que nos permitirá isso. Para além da sua criticidade, a busca de sentido e de significado encontra um porto seguro naquilo que Karol Wojtyla, na obra “Persona e atto”, definia como experiência elementar, isto é, comum a cada membro da família humana: “No entanto, existe algo que pode ser chamado experiência do homem, na medida em que é baseado na inteira continuidade dos dados empíricos. Objeto da experiência é não apenas o momentâneo fenômeno sensível, mas também o homem mesmo, que emerge de todas as experiências e é também presente em cada uma delas [...]. O ato constitui o momento particular no qual a pessoa se revela. Isso nos permite, de modo mais adequado, analisar a essência da pessoa e compreendê-la de modo mais completo. Experimentamos o fato de que o homem é pessoa, e estamos convencidos disso porque ele realiza atos” [5].
A força daquela adversativa – “No entanto existe algo que pode ser chamado experiência do homem” – ultrapassa a complexidade na qual, hoje, se encontra a nossa sociedade, sobretudo no que diz respeito à paideia.
Poder-se-á, portanto, reformular o conceito de valor levando-se em conta a crítica que o pensamento pós-moderno faz a ela, mas evitando cair na tentação de dizer que, no fundo, não existem valores, já que cada significado desses valores nada mais é do que fruto de uma negociação ou de uma relação de força. O equívoco acerca da natureza dos valores pode ser resolvido esclarecendo-se que os valores não são objetos, nem conceitos abstratos sobre os quais nos atermos a priori, mas fazem parte do relacionamento constitutivo entre o sujeito e as pessoas, as coisas e as circunstâncias, identificando neles uma “consistência” qualitativa. Uma educação aos valores é portanto impossível se se evita a relação entre a pessoa e a comunidade – e a relação de ambas com o mistério, o “real inaferrável”, como dizia Buber –, relação dentro da qual o valor pode ser efetivamente comunicado, dando um significado e uma direção à existência [6].
Como é afirmado, agudamente, no volume organizado pelo Comitê para o projeto cultural da Conferência Episcopal Italiana, intitulado “O desafio educativo” [7], “o que dá vida e vigor ao que vale (valor) é, portanto, aquilo para o que está mirado, ou seja, a experiência que podemos fazer de valor...” [8].
2. Paideia: liberdade e realidade
Desde o início de sua existência e por toda a sua vida, o homem se encontra “jogado” em uma trama de relacionamentos decisivos (a partir daqueles com os pais, com os irmãos, com os avós e, hoje, cada vez mais frequentemente, também como os bisavós). O seu impacto com a realidade se dá a partir destas relações boas através das quais é a estrutura inteligível mesma do real a sugerir o método mais adequado para cada aventura educativa. Se é o real que se oferece ao sujeito, a tarefa do educador será introduzir o educando em uma experiência integral da realidade que, guiando-o no processo de decifração do significado da realidade. No seu oferecer-se à minha liberdade, a realidade mostra, portanto, que já possui um logos, é inteligível, como o realismo clássico afirmava. Isto pede que o eu evite elaborar, de modo abstrato (ab-[s]tractus = separado), um conhecimento do qual deverão, depois, emanar aplicações práticas. A realidade, ao se oferecer para se fazer conhecer, pede, porém, um ato de decisão do sujeito. E assim ilumina a natureza da pessoa do sujeito mesmo. De fato, é próprio do ato “o momento particular no qual a pessoa se revela” [9]. Encontramo-nos no coração daquilo que João Paulo II e von Balthasar definiam como uma “antropologia adequada”. Uma antropologia consciente do fato de que quando o homem começa a refletir sobre si e sobre o real pode fazer isso apenas de dentro do seu “ser”: “Podemos nos interrogar sobre a essência do homem apenas no ato vivo da sua existência. Não existe antropologia fora dessa dramaticidade” [10].
Esse fato mesmo tem uma consequência. Um dos traços próprios do “ser” do sujeito no mundo é a sua impossibilidade objetivo de fazer abstração completa da tradição na qual ele se encontra inserido, e que é manifestada a ele, antes de tudo, na forma do seu fazer parte de uma corrente de gerações. Longe de se constituir num obstáculo a uma efetiva educação e a um pleno desenvolvimento da razão – como o pensamento iluminista, por muito tempo, nos levou a pensar –, a tradição oferece ao educando um termo de comparação imprescindível, para ser usado no seu confronto com o real. Ela é o terreno fértil de onde germina a hipótese vital de significado, para ser verificada no curso da vida, e sem a qual um verdadeiro conhecimento não é tecnicamente possível. Enquanto lugar de prática e de experiência, segundo a feliz definição de Blondel [11], a tradição favorece, como dizia João Paulo II, a descoberta da “genealogia” da pessoa, que não é mais reduzível à sua pura “biologia”. Garante aquela experiência completa de paternidade-filiação sem a qual não a pessoa não se dá com a sua capacidade de experiência e de cultura [12].
Tendo escolhido indiretamente a insubstituível contribuição da liberdade humana, sempre situada historicamente, para a paideia, podemos legitimamente acenar para o fator “crítico” inerente a cada proposta educativa. Refiro-me à categoria do risco [13].
O risco não é irracionalidade, mas aflora na sempre possível cisão entre o juízo da razão e o ato da vontade. No encontro do seu eu todo inteiro com toda a realidade, o educando faz experiência do risco porque, mesmo percebendo a intrínseca positividade da realidade mesma, pode permanecer bloqueado na adesão a ela, até abandonar-se à tentação do ceticismo. Nesta perspectiva, o risco não é poupado nem mesmo ao educador que, no comunicar ao educando a hipótese interpretativa que ele acredita ser a mais apropriada para explicar o real, é chamado a se expor e, portanto, a se arriscar. Por esta razão, a educação tem uma natureza eminentemente dialógica. Pede sempre uma troca entre o eu (o educador que propõe e se propõe) e o tu (o educando que é introduzido à realidade total). E esta troca acontece, constitutivamente, dentro da trama de relações na qual educador e educando estão sempre inseridos. Este diálogo se realiza apenas na condição que, na contínua e densa comparação com o real, seja colocada em jogo a liberdade de ambos. Isso mostra, além do mais, a natureza “dramática” da tarefa do educador, que, frequentemente tentado a poupar o educando do negativo, pode, mesmo sem querer, chegar a impedir-lhe de ser irredutivelmente outro e, portanto, integralmente livre [14].
O risco (de educar) da posse pode ser vencido apenas por aquela que, junto com a liberdade, representa outra dimensão constitutiva de cada empreendimento educativo: o amor. O amor oferecido ao educando, e que, por sua vez, move o educando a um apaixonado confronto com o mundo que o circunda, tem dois rostos. O do educador, que oferece e comunica a si mesmo inteiro, no testemunho da verdade como hipótese vital de interpretação da realidade que ele tornou própria; e o da realidade mesma, que, demonstrando-se como dom, é, em última instância, sinal do Mistério que se revela a todos os homens. E a dinâmica com a qual a realidade se relata não esgota nunca porque, no fim, exprime o amor com o qual o amado (o homem) e o amante (o Mistério) incessantemente se interrogam.
Quando a hipótese unitária e vital de interpretação da realidade é o evento de Jesus Cristo que se comunica na traditio eucaristica da Igreja, ela aparece incindivelmente conectada à virtude cristã da caridade. São João Bosco descreveu bem qual é o fundamento da educação: “Se, por isso, sereis verdadeiros pais de vossos alunos, é preciso que tenhais também o coração deles... Lembrai-vos de que a educação é coisa do coração, e de que apenas Deus é senhor da educação, e de que nós não podemos nada se Deus não nos ensinar a arte da educação, e não nos colocar nas mãos a chave da educação” [15]. Estas palavras, em última instância, são nutridas pela relação intratrinitária entre Pai e Filho e Espírito que, pelas missões do Filho e do Espírito, assumem o rosto da singular experiência da relação de Jesus com o Pai (cf. o Evangelho de João) e com o Espírito. Eles falam da impossibilidade de ser pai e educador se, antes, não nos reconhecermos filhos. Não digo: se não nos reconhecermos “termos sido filhos”, mas exatamente “sermos filhos”, aqui e agora, daquele Pai que é a fonte de cada paternidade e que, em Cristo, “nos escolheu antes da criação do mundo [...], predestinando-nos a sermos seus filhos adotivos” [16].
3. Paideia e universidade
Indicados os traços de uma paideia como introdução de toda a pessoa à realidade total, podemos, agora, nos perguntar em que medida a universidade é capaz de responder a esta tarefa. A partir da época moderna, a universidade, no âmbito euroatlântico, pratica de fato a exclusão dos saberes ligados com todas as questões últimas, sobretudo se lidas sob a óptica da revelação cristã, porque são tidas como estranhas a um rigoroso conhecimento científico [17]. “A humanidade preferirá mais renunciar a toda pergunta filosófica do que aceitar uma filosofia que encontra a sua última resposta na revelação de Cristo” [18].
Esta pesada marginalização não se arrisca mais, como antes, a colocar em discussão a legitimidade das questões e das perguntas acerca das coisas últimas (Comte). Mais do que isso, ela nega a possibilidade de que a teologia, e mesmo a filosofia entendida no sentido pleno, possam responder a elas adequadamente. Hoje, é a tecnociência que é nomeada como especialista para dar, no lugar da teologia e da filosofia, respostas a estas perguntas. A tecnociência é, cada vez mais, considerada a única depositária da verdade, sempre falsificável (Popper), a cerca do homem e dos fatores fundamentais da sua existência: o amor, o nascimento, a morte. É evidente como entram em jogo, aqui, mudanças radicais, que têm uma estreita vinculação com a questão educativa [19].
Neste quadro de rápida e penosa transição, como pode a formação universitária ser pedagogicamente apropriada e, portanto, não decair de sua vocação mesma de uni-versitas, isto é de lugar onde os saberes são reconduzidos a um único princípio sintético de explicação da realidade? No passado, este papel de síntese cabia à teologia, cujos método e resultados cumpriam o papel de horizonte para todas as outras ciências. Na época moderna, reduzido o papel da teologia, reduzida a própria teologia ao nível de uma disciplina entre as outras e, em muitas partes, expulsa mesmo da universidade, não decai, porém, a instância de unificação do real.
Mas, hoje, o princípio que assegura a universitas como comunidade de pesquisa não é mais proveniente do acordo sobre um núcleo central de questões últimas (sempre ao mesmo tempo filosóficas e religiosas), mas se apoia sobre o consenso acerca dos procedimentos de pesquisa. A cientificidade que acomuna as disciplinas universitárias não está mais ligada diretamente ao objeto do conhecimento, isto é à verdade, mas apenas à metodologia de formulação do discurso científico mesmo. Inevitável consequência deste posicionamento é que a universidade para de ser lugar de pesquisa e de verificação de uma hipótese verdadeira última, e por isso de verdadeira paideia, para reduzir-se unicamente a um lugar de transmissão de competências que, mesmo não renunciando a dizer “algo” de sempre provisório acerca da verdade (pensemos no bios, ou na “formação do universo”), possui apenas uma utilidade instrumental. Encontramo-nos, aqui, diante de um conceito de razão estreitamente limitado, que não leva em consideração as articuladas modalidades com as quais se exercita o logos humano. Podemos, de fato, determinar, a partir do que já sustentava Aristóteles, pelo menos cinco formas, diferenciadas e irredutíveis, de racionalidade: teórico-científica (ciência), teórico-especulativa (filosofia/teologia), prático-técnica (tecnologia), prático-moral (ética) e teórico-prática expressiva (poética) [20]. Todas estas dimensões deveriam ser, harmônica e unitariamente, cultivadas pela universidade.
Certamente, no atual panorama educativo, deve-se ter na devida consideração o fato de que o sistema universitário é, por sua natureza, fundado sobre uma complexa articulação de programas curriculares específicos e de disciplinas diferenciadas. Pode, portanto, parecer pouco realista perseguir, em tempos razoáveis, a individualização de novas bases para a unidade do objeto do saber, especialmente quando é mantido o legítimo, e antes necessário, respeito pelo estatuto particular das disciplinas segundo o princípio popperiano de demarcação [21]. Todavia, a instância da superação da fragmentariedade do objeto do saber é, hoje, mais sentida e está conduzindo partidários de muitas matérias a não se limitarem à pura interdisciplinaridade.
Com maior razão porém, diante de uma tal situação, uma educação universitária adequada não poderá renunciar ao cuidado com a unidade do sujeito do saber.
Mas, sobre o que podemos fundar, hoje, a unidade do sujeito? A sabedoria pede que, sem confundir o novo com o inédito, mesmo no tempo presente, se reconheça que a unidade do sujeito se realiza a partir da assunção de uma hipótese explicativa vital do real, que consinta percebê-lo na sua totalidade e gozar dele. Não se trata de um puro exercícios intelectualista, mas de uma exigência que se impõe a cada pesquisador e a cada docente e estudante que seja lealmente empenhado com a sua matéria de pesquisa, de ensino e de estudo. Cada disciplina, de fato, contém, no fundo, uma pergunta acerca do sentido e do significado e, por isso, cedo ou tarde, suscita as irrenunciáveis questões que, desde sempre, agitam o coração do homem: quem sou eu? De onde venho? Qual o destino que me espera? Quem, no fim, me dá segurança amando-me definitivamente (além da morte mesma)?
As possibilidades que um olhar unitário sobre o real é capaz de desvendar a um intelecto comovido são bem descritas pelas palavras bastante atuais do Cardeal Newman: “Não há verdadeiro alargamento do espírito se não quando existe a possibilidade de considerar uma multiplicidade de objetos a partir de um único ponto de vista e como um todo; de outorgar a cada um o seu verdadeiro lugar num sistema universal, de compreender o valor respectivo de cada um e de estabelecer as suas relações de diferença na comparação com outros... O intelecto que possui essa iluminação autêntica não considera nunca uma porção do imenso objeto do saber sem ter presente que essa porção é apenas uma pequena parte do objeto, e sem fazer as recordações e estabelecer as relações que são necessárias. Isso permite que cada dado certo conduza a todos os outros. Busca comunicar, em cada parte, um reflexo do todo, a tal ponto que este todo se torna, no pensamento, como que uma forma que se insinua e se insere dentro das partes que o constituem e dá a cada uma o seu significado bem definido” [22].
Tal ponto de vista unitário é oferecido, segundo o Cristianismo, pelo evento de Jesus Cristo, Verbo encarnado e imagem do Deus invisível, e pela sua “pretensão” de revelar, com a sua paixão, morte e ressurreição, o enigma que o homem representa para si mesmo [23] sem, por isso, pré-decidir o drama constitutivo de cada indivíduo. Esta “hipótese” não sufoca o livre exercício da razão, antes exalta as faculdades críticas da razão, empurrando-a a um confronto de 360º com a realidade. A proposta cristã, de fato, tomada na sua objetiva integralidade, não é um salto no escuro. O homem pode, pelo contrário, verificar toda a espessura de verdade dela comparando-a com as dimensões da sua experiência elementar (trabalho, afetos, repouso), e com as irredutíveis polaridades que atravessam a unidade do próprio eu (unidade dual própria de cada ser criado, contingente): alma-corpo, homem-mulher, indivíduo-comunidade. Os medievais falavam, acerca disso, de cum-venientia, no sentido etimológico de cum-venire: corresponder à essência mais profunda, às exigências constitutivas do eu. Não nos referimos aqui, portanto, a uma conveniência utilitarista. Afirmamos, pelo contrário, aquele nível último da verdade que move a pessoa a descobrir a positividade intrínseca do real, o seu valor [24]. E no conhecimento, integralmente entendido, o homem se reconhece. Esta perspectiva que afirma a atualidade da paideia para um trabalho universitário, se assumida corretamente porque eficazmente inculturada, é totalmente compatível com os mais avançados saberes das ciências quando são rigorosamente praticados. Dizia Dom Bosco no seu escrito sobre o sistema preventivo: “Este sistema se apoia todo sobre a razão, a religião e a amabilidade”. Este olhar é exaltado pela característica ideal da universidade como communitas docentium et studentium. Certamente que o princípio unitário de interpretação do real deve viver na pessoa e se exprimir na comunicação entre docente e discente. Mas isso atinge sua máxima fecundidade se expresso no incessante e recíproco testemunho que deve circular entre todo o corpo docente e todos os estudantes. Quando a comunicação apaixonada dos primeiros encontra nos segundos não apenas ouvintes atentos, mas sujeitos empenhados numa incansável busca pela verdade, a universidade deixa de ser lugar de passagem com a finalidade apenas de obtenção de um diploma e realiza sua vocação mais autêntica.
4. Para uma universidade orientada conforme o Cristianismo
O que dissemos assume um valor particular numa instituição que, como a de vocês, junto à teologia, à filosofia, ao direito canônico, é empenhada em oferecer aos estudantes um conhecimento aprofundado em âmbitos de estudo (a pedagogia, a comunicação) cujos métodos e conteúdos se fazem sempre mais tecnicamente sofisticados. A pedagogia é exposta ao risco da remoção da experiência humana elementar; a comunicação é frequentemente concebida como “criadora” de verdade, acabando por se tornar instrumento de interesses particulares em competição entre si.
A tarefa da universidade, da universidade de vocês, é permitir aos estudantes atingir a realização de sua humanidade. Isto impõe perseguir a paideia através da pesquisa, do ensino e do estudo rigoroso das disciplinas que são cultivadas aqui. E isto através do recurso a um olhar crítico que não seja estéril objeção, mas autêntica capacidade de discernimento daquilo que é verdadeiro, uno, bom e belo. “Examinai cada coisa, retende o que é bom” (1Ts 5, 21).
Numa palavra, a universidade é tal se impele a mente, o coração e a ação dos sujeitos que a habitam à fascinante aventura (ad-ventura) de descobrir o razoável dom da verdade.

Notas
[1] J. Maritain, Per una filosofia dell’educazione, La Scuola, Brescia 2001, 86-87.
[2] Benedetto XVI, Convegno della Diocesi di Roma, 11 giugno 2007.
[3]J. Gevaert, Il problema dell’uomo. Introduzione all’antropologia filosofica, Torino 19897, 147-154.
[4] Cfr. A. Scola, Ospitare il reale. Per un’idea di università, PUL-Mursia, Roma 1999, 11-13.
[5] K. Wojtyla, Persona e atto (ed. a cura di G. Reale e T. Styczén, texto polonês, Rusconi, Milano 1999), 35; 53. A respeito, cf. A. Scola, L’esperienza elementare. La vena profonda del Magistero di Giovanni Paolo II, Marietti, Genova 2004.
[6] A. Scola, Ospitare il reale, op. cit., 11-13.
[7] La sfida educativa, Laterza, Roma-Bari 2009.
[8] Ibid., 11.
[9] K. Woityla, Persona e atto, Rusconi, Sant’Arcangelo di Romagna, 1999, 53.
[10] H. U. von Balthasar, Teodrammatica 2, Jaca Book, Milano 1978, 317.
[11] Cfr. M. Blondel, Storia e dogma, Queriniana, Brescia 1992, 103-137.
[12] Cfr. A. Scola, Genealogia della persona del figlio, in Pontificio Consiglio per la Famiglia, I figli: famiglia e società nel nuovo millennio. Atti del Congresso Teologico-Pastorale, Città del Vaticano 11-13 ottobre 2000, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2001, 95-104.
[13] Cfr. L. Giussani, Il rischio educativo, Rizzoli, Milano 2005.
[14] Cfr. A. Scola, L’avventura educativa nella società in transizione, in G. Malizia, M. Tonini, L. Valente (a cura di), Educazione e cittadinanza. Verso un nuovo modello culturale ed educativo, Franco Angeli, Milano 2008, 85-96.
[15] G. Bosco, Lettere, Elledici, Torino, 1959.
[16] Cfr. Ef 1, 4-5
[17] A. McIntyre, Enciclopedia, genealogia e tradizione. Tre versioni rivali di ricerca morale, Milano 1993, 301-327.
[18] H. U. von Balthasar, La mia opera ed Epilogo, Jaca Book, Milano 1994, 91.
[19] O Cardeal Ruini sublinhou isto por ocasião do IX Fórum do projeto cultural da CEI: “Se muda, de fato, o nosso conceito de homem, dever-se-ia mudar, com ainda maior razão, a realidade mesma do homem, em virtude das aplicações da tecnociência ao sujeito humano, dever-se-ia também mudar, necessariamente, o conceito de educação, cujo fim é exatamente a formação da pessoa humana. E isso, em vários lugares, é hipotetizado”, C. Ruini, Progetto educativo contro l’eclissi dell’uomo, in Avvenire, 28 marzo 2009.
[20] Cf. os diversos graus do saber de Maritain – Les degrés du savoir, distinguer pour unir. Desclés de Brouwer, Parigi 1991 – e as diversas formas de conhecimento segundo Lonergan – Insight. A Study of Human Understanding, University of Toronto Press, Toronto 1992.
[21] K. Popper, Conoscenza affettiva, Roma 1983, 55-56.
[22] J. H. Newman, L’idea di università, in La ricerca della verità, antologia degli scritti a cura di G. Velocci, Padova 1983, 207.
[23] Cfr. Gaudium et Spes 22: “Na realidade, somente no mistério do Verbo encarnado o mistério do homem encontra verdadeira luz. Adão, de fato, o primeiro homem, era figura daquela futuro (Rm 5, 14) e portanto de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, exatamente revelando o mistério do Pai e do seu Amor revela plentamente o homem ao homem e torna evidente para ele a sua vocação”
[24] Cfr. Scola, Ospitare il reale, op. cit. 38.
Extraído de http://www.marcianum.it/marcianum/. Traduzido por Paulo Roberto de Andrada Pacheco.

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