segunda-feira, 24 de maio de 2010

Educação superior: imperativo?

Recentemente, a revista Dicta & Contradicta, em seu blog, publicou um texto de Joel Pinheiro intitulado "Universidade para todos?". Na ocasião, escrevi um longo comentário ao texto, descrevendo uma experiência pela qual acabara de passar. Relendo o comentário, lendo algumas coisas nos últimos dias, conversando com algumas pessoas, e repensando o episódio que me levara a escrever o que escrevi, achei por bem publicá-lo aqui, com algumas ligeiras modificações/atualizações e alguns acréscimos.

Veio bem a calhar a reflexão proposta por Joel Pinheiro, especialmente levando-se em conta os espaços de trabalho com os quais estou envolvido atualmente. Valho-me não apenas de minha experiência docente em uma instituição privada de ensino superior da cidade de São Paulo, como também da minha experiência como psicólogo dentro desta mesma instituição (lidando diretamente com os problemas de ensino-aprendizagem, as relações professor-aluno, as relações instituição-clientes, e as questões vocacionais que emergem tanto antes da entrada na universidade, como depois da entrada), mas também de minha atuação junto à Associação Educar para Vida, como professor de língua portuguesa, lógica, gramática e retórica para alunos pré-universitários associados.
Em minha curta carreira como professor universitário, já passei por universidades públicas (federais e estaduais) e privadas confessionais. Há uma semana, porém, aconteceu, numa sala de aula de sétimo semestre de Pedagogia da instituição na qual trabalho atualmente, o que considero a "gota d’água" de um processo de reflexão pelo qual vinha passando há alguns meses… Há muito, vinha me perguntando e discutindo com colegas e amigos, se a universidade é mesmo para todos. Se não haveria um abismo entre o pretenso direito à educação e essa quase obrigatoriedade a uma educação de nível superior. Se a queda na qualidade em todos os níveis do que se oferece nessas instituições medíocres não seria um preço alto demais a se pagar por essa suposta democratização (que me cheira mais a uma ditadura imbecil do consenso mancomunada com uma lógica financeira perversa que prescinde de qualquer Valor em nome de dígitos depois da vírgula).
Vejamos alguns fatos: as alunas que cursam Pedagogia nesta instituição têm idades que variam entre 20 e 60 anos. A escolha pelo curso foi motivada, em sua grande maioria, pelas justificativas – bastante conhecidas de muitos – da "facilidade para encontrar um emprego público em escolas municipais e estaduais", além da de "ser um curso mais fácil". A história educativa dessas alunas – pode-se dizer sem muita chance de erro – é a história do estudante típico da maioria das universidades privadas que por aí estão: sem um emprego adequado; há anos distante dos bancos escolares; muitas vezes com apenas o ensino fundamental concluído regularmente (quando muito!); com um ensino médio feito em esquema de supletivo; passa, um belo dia, na frente de uma das tantas instituições de ensino superior que – como botecos – se espalham pela cidade, e resolve, confiado na promessa de uma melhora no nível salarial, se inscrever para um vestibular que não separa mais do que o apto do não apto a marcar com um "X" uma entre várias alternativas em uma prova absolutamente medíocre (já viram a qualidade dessas provas? não consegue vencer sequer o nível baixíssimo da qualidade das provas do ENEM), além de pretender verificar, em 10 (ou no máximo 20) linhas, a capacidade lógica argumentativa (?) do pretenso aluno, em uma redação cujo tema é incapaz sequer de verificar o nível de conhecimentos gerais do candidato... A descrição poderia ir mais longe, mas, já com esse pequeno quadro, tem-se o pano de fundo do episódio que tive que encarar na semana passada: deparei-me com uma aluna que se queixava de não ter sido aprovada num processo seletivo para estagiar – vejam bem, "estagiar"! – em uma escola privada de São Paulo; investigando o motivo da não aprovação, descobri que a aluna, na carta de apresentação (de oito linhas, manuscritas) que escreveu para a escola, conseguiu a proeza de grafar a palavra "encino" três vezes e a palavra "serviso" duas vezes, sem falar nos erros de pontuação etc. Já escutei discursos suficientes sobre a "opressão da gramática" ou sobre as relações de poder que se escondem por trás da norma culta etc. Mas, uma aluna de sétimo semestre de Pedagogia, certamente, em três anos e meio de curso, deveria ter lido uma boa centena de vezes a palavra "ensino"... não se trata pois de uma crítica que vem a corroborar o argumento da "opressão da gramática" contra o valor do desejo de se expressar, mas de se perguntar se essa aluna, alguma vez, leu a palavra que está ou estará em sua boca cotidianamente, se trata de se perguntar se podemos nos valer apenas do argumento da experiência (tão comum entre as alunas da Pedagogia: "eu tenho 30 anos de Estado"...) quando o que está em jogo é a formação (e não uso essa palavra banalmente...) das gerações que vêm por aí. Sou até mesmo capaz de dizer que escrever "encino" é, dos males, o menor… Porque a gota d’água mesmo não foi o "encino"… foi bem outra.
Depois desse aperitivo, entrei em sala e me deparei com uma algazarra digna de uma feira livre (não fosse a algazarra, a cena por si mesma descreveria o mesmo ambiente: soutiens e calcinhas espalhados nas mesas, revistas da Natura e da Avon circulando entre as mãos, maquilagens sendo exibidas aqui e ali, um grupo de "meninas" penteando outra...). Pedi licença para entrar, disse bom-dia, ajeitei-me para dar uma aula (nessa instituição, eu era - porque não sou mais - o que o professor eventual é nas escolas públicas: substituía professores que, por algum motivo, se ausentavam ou se atrasavam. Com um agravante, porém: eu era pago para enganar os alunos... segundo me informaram, a "filosofia da proposta" justificava o erro moral que a sustentava), tentei um novo bom-dia e, finalmente, notei alguns movimentos que se pareciam com movimentos de interesse por parte das alunas... até descobrir que não: não eram de interesse, mas de indiferença manifesta claramente nas caras e bocas que me foram dirigidas. Tentei, então, uma medida um pouco mais contundente: "não querem assistir à aula, mas querem ficar aqui para garantir a presença... peço, em nome ao menos da boa condução, que se assentem viradas para cá… em sinal de um mínimo de respeito... visto que, em nome dele, não me parece possível pedir muita coisa". Resultado? Mais caras feias, comentários ofendidos, zombarias e… uma gritaria que eu nunca havia visto, em toda a minha vida, dentro de uma universidade. Fui caluniado, fui agredido, fui impedido de falar... E a cena toda tomou formas inesperadas. Vou resumir toda a ópera apresentando apenas os últimos movimentos, do último ato, a partir das falas de algumas personagens: "professor, se o senhor quer a nossa atenção, não devia estar dando aula" (Ah, não! O que eu deveria estar fazendo, então?... Não souberam responder), "professor, eu tenho uma vida muito cheia – tenho família para cuidar, tenho meu trabalho, saio cedo de casa todos os dias e volto tarde… aqui é o único lugar que eu tenho para bater papo" (Ah! então você paga universidade para bater papo, assinar a lista de presença cotidianamente e pegar seu diploma no final de 4 anos? Novo silêncio), "professor, a gente está quase se formando, não dá para ficar perdendo tempo com aulas, né?" ("Perdendo tempo com aula"? O que vocês esperam desse lugar – além de ser um espaço para bater papo, assinar listas de presença e receber um papel mágico que pretensamente lhes abrirá portas? Novo silêncio), "professor, o dinheiro que eu gasto com a universidade é meu… se eu não estou interessada, é problema meu"… Uma depois da outra, frases grotescas como essas foram sendo regurgitadas daquelas gargantas. O pior de tudo isso foi ver que eu estava vislumbrando, ali, numa sala de aula de ensino superior, um retrato das salas de aula dos ensinos fundamental e médio… sem nenhuma reflexão, sem nenhum espaço para reflexão, sem nenhuma intenção de reflexão, sem nenhum respeito, sem nenhuma crítica ou autocrítica… pura reação, caótica, mecânica ("pago-e-recebo-pelo-que-pago"), histérica, digna de uma descrição dantesca dos círculos infernais. Tentar propor um olhar reflexivo sobre o que me diziam, como metralhadoras ensandecidas, parecia – olhando-me de fora e de longe – com jogar pérolas a porcos. Enojado, peguei minhas coisas, dirigi-me à porta e, num ímpeto de esperança, voltei o olhar a espera de, pelo menos, um rosto envergonhado. Não havia vergonha em nenhum rosto. Finda a vergonha, findos os valores. Findos os valores, o que resta?
Essas mulheres, daqui a seis meses, estarão dando aulas para os "nossos" filhos, com um diploma assinado pela coordenação do curso de Pedagogia dessa instituição, pelo "reitor", e com um carimbo do MEC. É a mediocridade fazendo escola!
Não, a universidade não pode ser para todos! Definitivamente… sobretudo se esse "para todos" for um imperativo!

Um comentário:

Georgia Martins disse...

E daí sempre tem alguém que responde que "o mercado vai selecionar".
Mas o grande problema é que na Pedagogia não se seleciona nada. Como a demanda é grande e o número de profissionais graduados ainda é pequeno, as escolas acabam pegando "qualquer coisa" mesmo.

Ou seja, sim, meu amigo, essas mulheres estarão SIM em sala de aula ensinando nossos filhos a escrever encino.