sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Somente o coração conhece

Por John Waters

Usualmente falamos dele como se fosse uma metáfora. Boa, no máximo, para evocar o sentimento. E desviar a razão do (verdadeiro) conhecimento. Mas, no que consiste, de fato, “aquela natureza que nos impulsiona a desejar coisas grandes”? O Meeting de Rímini tem alguma ideia a esse respeito. Eis o motivo

O coração é tratado com condescendência e liquidado como uma metáfora. Não é estranho que se encontrem rimas em canções e poesias que tentam trazer à luz o nível mais profundo da emoção humano, mas em certo sentido não acreditamos que ele seja verdadeiramente a bússola do sentir. Simplesmente sem pensar a respeito, colocamos o coração na extremidade inferior do eixo da razão, onde a cabeça reina soberana.
Quando “pensamos” no coração, pensamos em uma bomba hidráulica a que atribuímos, curiosamente, esta função emocional. Segundo essa convicção, o coração se torna um sinal gráfico, um “coração apaixonado” que evoca a paixão, a dor e a confusão de uma ligação sentimental nostalgicamente romântica.
A nossa confusa percepção do coração reflete a confusão sobre a nossa natureza. De um lado, não podemos fugir ao dado que é esse órgão indispensável, um motor que continua a bombear e a alimentar – por sua natureza – o início de todas as coisas. Mas a nossa mentalidade racionalista torna sempre mais necessário que mantenhamos vivas pelo menos duas concepções incompatíveis de coração. A ideia de que as nossas vidas emocionais estejam ligadas a algo de mais banal, um dispositivo que regula funções, parece um resíduo cultural do tempo no qual se entendia menos este “mecanismo” humano. Esperamos que, um dia – se continuarmos no caminho no qual nos encontramos –, cheguemos a uma fórmula elétrica na qual as coisas que nos incomodam (amor, medo, desejo, paixão) serão identificadas como impulsos lançados aqui e ali no circuito da máquina humana. Nesse meio tempo, continuamos seguindo em frente com as nossas pesquisas, como se eses conhecimentos já fossem adequados.
A razão – fomos nós que decidimos – é uma consultora segura e confiável, como um contabilista ou um advogado. Se olharmos bem, parece que a razão decidiu assumir esse papel por sua livre e espontânea vontade, o que soa como um conflito de interesses um pouco estranho no qual o advogado e o contabilista arriscam ser tirados fora. Mas o dado de fato é que, enquanto isso, o coração parece um pouco como um incômodo, que nos sacode de todos os lados, incapaz de se decidir.
Entre as duas orelhas. Há uma teoria segundo a qual a mente não existe ou, se existe, não se sabe onde está. Damos por óbvio que ela esteja entre as nossas orelhas, mas não sabemos ainda identificá-la com precisão. Não parece que a mente existe não espaço, como um processo químico ou mecânico. Não pode ser pesada, ouvida ou vista, e isso parece nos conduzir sempre a um ponto morto na mensuração e na objetivação. A mente só pode ser observada por dentro ou em termos de efeitos dos seus processos. Em certo sentido, a mente parece mais adaptada que o coração a se tornar metáfora, mais sujeita a ser tratada com condescendência, porque nada foi encontrado nas suas profundezas que corresponda ao seu significado em meio a um mundo de processos mecânicos.
O coração que bate a todo instante, que pulsa ano após ano, se tornou a principal vítima dessa concepção dualista. De um lado, é concebido “por dentro” como um instrumento mecânico, essencial mas de qualquer forma adequado, e de outro, é falsa e superficialmente culpado de todos aqueles comportamentos excêntricos que fazem com que as nossas mentes percam a esperança de conseguir entender aquilo que o homem realmente deseja ou de que tem necessidade. O coração é uma espécie de bode expiatório da incapacidade da razão de compreender plenamente a si mesma. Visto que a razão olha as coisas de modo determinista, ela define a si mesma e ao coração como sistemas deterministas, mas descarta os elementos que não sabe explicar, apontando o dedo contra eles de forma meio irônica. A razão culpa o coração de desviá-la.
Quem comanda? Se o coração é reduzido a uma entidade mecânica em ação, e apenas algo a que é atribuída curiosamente a culpa de todos aqueles desejos e exigências que a razão se recusa a assumir como responsabilidade sua, então, obviamente, eu uma parte do ser humano, e não a sua inteireza, que toma a decisão e a põe em prática. A razão efetuou uma “revolução” na qual o coração é conservado para tarefas funcionais e simbólicas, mas é despojado de toda autoridade nas tomadas de decisão. A ideia segundo a qual o coração é capaz de “conhecer” algo que escapa à razão é, hoje, julgada anacrônica e delirante, restos de um obscuro passado. Ainda hoje, “culpamos” o coração, brincando um pouco menos.
É uma espécie de confusão na qual não está claro “o que” ou “quem” comanda. Quem é o “quem” que decide tudo isso? Onde está a sede do conhecimento? Há um inteligência central ou algo parecido? Essa inteligência central pode, admitido que exista, ser responsável pelas coisas sensatas que fazemos e pelas que não têm sentido, pelas respostas inteligentes e pelas estúpidas, pelos comportamentos racionais ou pelos irracionais? Em outros termos, aquilo que antes era a “tempestade” do coração é apenas um modo para descrever características da razão muito mais complexas e talvez que não funcionem tão bem? E quando nos colocamos esta pergunta, o que, dentro de nós, nos permite fazê-la? A razão é capaz de objetivar o coração? A razão é capaz de objetivar a si mesma? Como conhecemos? E se conhecemos algo, qual “parte” de nós realiza tal conhecimento?
Deve existir outro modo de considerar a questão.
Se algo não volta. E de fato há: trata-se de aceitar o fato que a razão não é nossa, que o coração não é nosso, mas que ambos são dados, que ambos não são projeções do nosso interior – não o podem ser na medida em que não é possível rastrear a sua origem – mas provêm de algum outro lugar; trata-se de aceitar que o nosso modelo mecanicista da realidade – que deriva de uma concepção objetivada da racionalidade, implícita no mundo criado pelo homem – não tem sentido se aplicado ao homem mesmo. Ilusoriamente, tem um sentido parcial, nos torna capazes de alcançar um certo conhecimento de base sobre nós mesmos, ou um mediante o qual – se aceitamos nos comportar como as máquinas que criamos – nos tornamos capazes de formular uma teoria aceitável sobre a realidade e sobre nosso viver nela.
Na realidade, é isso que Dom Giussani tenta criticar quando diz, com insistência e quase com uma ponta de irritação, que nós não nos fazemos por nós mesmos; que nenhuma das explicações a que chegamos sobre a nossa origem e sobre o nosso agir “momento após momento” é totalmente persuasiva; que nenhuma “inteligência central” pode ser identificada a não ser como uma metáfora similar àquela que, na cultura moderna, a razão humana reduziu as funções extra-mecânicas atribuídas ao coração. Eu não me faço por mim mesmo; não há um “eu” que funcione dessa forma. Se procuro o “eu” como autor de si mesmo, é como se remexesse em um pacote e só encontrasse o invólucro. Obviamente, há algo dentro, um “eu” de algum gênero, que não parece ter originado a si mesmo. Somente se se considera o “eu” que bate e que pensa como a projeção de algo outro, tudo começa a adquirir um sentido. Se o ser humano é considerado apenas como um conjunto de processos mecanicistas e deterministas nos quais a razão sobressai, torna-se necessário um processo de censura para excluir a ideia de um “fantasma” que deve se encontrar no centro da máquina: o coração. Este fantasma é o verdadeiro “eu”, aquele elemento essencial e originário do coração humano, que o cirurgião não pode encontrar.
Esse “eu” não está apenas lá dentro, mas parece se associar com algo outro. No coração de cada um de nós há ainda algo que não se explica. Mais: parece que existe algo que não pode ser reduzido, nem compreendido segundo os métodos que parecem funcionar para todas as outras coisas, ou pelo menos para a maior parte das coisas que enfrentamos na nossa vida de todos os dias. Talvez poderíamos dizer que, por definição, o coração é definível como incapaz de compreender a si mesmo.
O início da humanidade. E aqui o coração s revela na sua verdadeira natureza; o lugar daquilo que no homem não pode ser reduzido do anseio por uma explicação, um desejo que parece emergir no coração mesmo. Talvez o coração não tenha mais direito do que a razão de afirmar a si mesmo como centro do ser humano. Talvez ela seja, de fato, uma metáfora. Mas se é assim, é uma metáfora para além da qual não parece que existam possibilidades ulteriores. Consequentemente, parece que o coração torna dramático o mistério do dilema central do homem, mas parece oferecer também um início de razão que se pode explorar e na qual se pode confiar. O coração é a entidade na qual a minha humanidade parece, pela primeira vez, emergir, começar, ter origem. Portanto, se se trata de uma metáfora, é através dela que descobrimos o único fundamento verdadeiramente adequado. Mas também ele, se examinarmos bem, não é capaz de dar a origem a si mesmo, à sua voz interior, ao impulso que gera o seu pulsar.
Assim sendo, há este paradoxo: aquele “eu” que se encontra no centro de todo ser humano não é uma espécie de autoridade autônoma, separada e bem localizada, mas apenas um tipo de “sociedade” entre aquilo que é evidente e algo que parece não existir. O meu “eu” sou eu – certo –, mas também algo de misteriosamente outro. Os “meus” desejos não são completamente “meus” no sentido que não são o resultado de uma equação clara entre as minhas óbvias exigências e aquilo que descobri ser as minhas possibilidades imediatas. Eles derivam também desta alteridade e isso leva àquela confusão que a razão humana chamou de irracionalidade. O coração, fonte de um desejo que me acompanha desde aquele além de onde eu vim, me fala a todo instante daquilo que eu procura de verdade, daquilo que quer verdadeiramente, daquilo que verdadeiramente é.
Um ponto de partida. Aqui, devemos parar para evitar um curto circuito. A ideia daquilo que o coração desejaria não pode, e não deve, soar como uma injunção sentimental ou moral, ou sugerir uma direção já estabelecida. Trata-se de um ponto de partida, não de uma indicação de arrependimento. Se pularmos imediatamente para as conclusões, fecharemos a discussão, criaremos um curto circuito, mortal como todas as reduções deterministas que consideramos acima. Não. Neste ponto, devemos respirar profundamente e nos prepararmos para a verdadeira viagem. O coração nos fará entender a natureza e o verdadeiro alcance do nosso desejo. A busca deve ser profunda e total. Ela começa com a verdadeira pergunta que marca, com o seu ritmo, cada dia de nossa vida.

* Extraído do site oficial da revista Tracce - Litterae Communionis. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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