quarta-feira, 20 de maio de 2009

Cartas do P.e Aldo 53




Asunción, 22 de outubro de 2008.

Caros amigos,
É preciso partir sempre da vida, da realidade e não do fato de que somos casados, consagrados, solteiros ou qualquer outro papel, porque é a vida que pede a eternidade. Quantas vezes cantamos isso em “Povera voce”... mas, é como se tudo fosse óbvio.
Hoje é um dia difícil para mim, por causa da insônia que, além de me deixar cansado, me faz suar de um modo estranho. Assim, com a temperatura de 40° e esta minha situação, deixo para vocês imaginarem o meu estado de ânimo. Mas, há 20 anos estou aprendendo a repetir para mim mesmo: “eu sou Tu que me fazes”, “mesmo os cabelos da minha cabeça estão contados”, “antes de te formar no seio de tua mãe, pronunciei o teu nome”, “tu és como a pupila dos meus olhos”. Pois bem, a revelia de quem não suporta a palavra depressão, como bom amigo, eu a desejo para vocês... assim, vocês entenderão o que quer dizer se tornar homem e não continuar sendo imbecis burgueses cheios de si mesmos... nesta situação, emotivamente negra, não é este estado de ânimo que me define, mas a certeza de que Ele me ama assim como sou.
Hoje, estou facilmente irritável e, no entanto, ninguém se dá conta disso, ninguém se dá conta de como estou cansado... mas, a paz, a alegria do coração vence tudo.
Movo-me, há tempos, somente porque Ele me move e o meu estado de ânimo é absorvido, santificado por esta certeza. De modo que, hoje, pude acolher (vejam as fotos) esta menina – Celeste é o seu nome – que já está no final da vida por culpa de uma leucemia mal-cuidada, por causa da pobreza de sua família. A mãe tem 31 anos e 8 filhos. Não sorri há tempos. A sua vida foi feita de pobreza, dor, miséria, violência. Hoje, nas condições em que eu me encontrava, a escutei. Os meus olhos vermelhos não conseguiam sustentar o seu olhar cheio de dor. “Padre, sou filha da violência como todos os meus 8 filhos. Violentada, surrada, tive que fugir das garras de um homem que me destruiu. Tive que abandonar os meus filhos nas mãos desse animal. Agora, a dor da minha filha de 12 anos me acorrentou aqui, na sua clínica... peço-lhe que me ajude. Não tenho mais lágrimas para derramar... sinto-me como uma estátua...”. Eu olhava para ela, vendo no seu rosto uma tristeza infinita como na maioria das mulheres deste país, reduzidas a animais, embrutecidas pela violência. No entanto, uma ternura e ela já era uma outra. Olho para a sua filha, já sem cabelos, fortes dores, não fala mais... me olha fixo e não sorri. Quanta dor! O meu coração, muito frequentemente, tem medo de que não resista; mas a Providência me recupera rápido.
Algumas horas antes eu havia celebrado o funeral de um “travesti”, um filho de Deus de 28 anos, morto de AIDS. Estavam presentes os outros doentes de AIDS, estes meus filhos prediletos. Na breve homelia, eu disse: “meus filhos, estamos aqui para celebrar a misericórdia de Deus. Olhem para ele, olhem para este rapaz: viveu como um animal e morreu como um santo. Vocês se lembram de como era o seu rosto quando chegou aqui... olhem, agora, para ele: é o rosto de um verdadeiro homem. É, de fato, o triunfo da misericórdia que não distingue os seres humanos entre normais, homossexuais, travestis, hermafroditas, mas que olha para cada um como filho. Amigos, vocês entendem que somos Suas criaturas? Para Deus, somos filhos, somos criaturas Suas”. Eles olhavam para mim comovidos... eles, os marginalizados; eles, os leprosos do século XXI; eles, julgados pela perversão do vício... eles que me querem bem, a quem a cada manhã eu beijo e me ajoelho diante (não me importando se deformados por feições femininas ou masculinas fingidas). Eles que me pedem para serem ouvidos em confissão, que me perguntam se o seu companheiro ou companheira com a mesma doença podem vir visitá-los. E, assim, como me dizia a irmã, aproveito para anunciar também a eles a misericórdia de Deus.
Victor, que todos conhecem, e sobre quem nasceu uma reação em cadeia em nível mundial, dividindo os que me escrevem em dois partidos: o dos que querem que ele viva, e o dos que querem que o deixemos morrer. Quanto me dói este segundo partido. Se o vissem gemer, sofrer, se dariam conta do por que Jesus morreu por mim e também por eles. Mas, por que querer eliminar a dor do mundo, quando esta, desde o pecado de Adão, é condição inevitável? É como se eu quisesse arrancar de mim a depressão, arrancar de mim as noites de insônia, arrancar de mim a ânsia. Mas, não é possível. Posso tomar – e o faço – comprimidos para ajudar a minha louca emotividade, mas não posso, não peço a Jesus que tire de mim a fadiga, porque seria repetir a Jesus o que, naquele dia, Pedro lhe disse, pedindo-lhe que não aceitasse a dor... e Jesus lhe respondeu: “afasta-te de mim, Satanás, porque pensas segundo o mundo e não segundo a vontade do meu Pai”. Claro que Victor sofre... eu o vejo sofrendo 24 horas por dia. E há os que se permitem me dizer: “deixe-o morrer”... quando não sou eu que o faz viver, mas o Mistério que o cria em cada instante. Será possível que não entendemos que a vida, não importa as condições com as quais se manifesta, é sempre a afirmação do “eu sou Tu que me fazes”? Victor tem até mesmo o pequeno tórax encurvado pela dor, pela dificuldade para respirar, pelas convulsões. Tem a cabeça, apoiada no travesseiro, cheia de feridas de decúbito... não pode se mover... mas, vocês entendem que, para cada um de nós, é Jesus? É Jesus! Victor não se reduz à sua dolorosíssima doença, porque é Cristo. E então se é Cristo, vocês entendem que é o Paraíso na terra?
Eu não consigo ficar sem contemplá-lo, porque é o meu conforto, como nesses dias em que o cansaço fica mais evidente. Olhar para ele, beijá-lo, é sentir vibrar a doce Presença de Jeuss que me faz um carinho nos momentos difíceis. Certamente que sem levar a sério a vida – como nos lembra Giussani n’O Senso Religioso, citando aquele pedaço de um diálogo entre Richard e a velha avózinha Henrie –, é impossível reconhecer nestes fatos a grande Presença, o Mistério que dá sentido e beleza a tudo... Quando se reconhece isso, podemos dizer o que, outro dia, Cristina, a jovem mãe de uma das Casinhas de Belém, com 14 crianças de 0 a 11 anos, me disse: “padre, desde quando Deus me tirou as minhas únicas duas filhas – Nageli, de seis anos e Natali, de nove anos – e me chamou para ser mãe de todas estas crianças, entendi que, para mim, ser mãe significa não possuir nunca os meus filhos. A cada instante eu as olho, eu as amo imensamente, mas sei que nunca serão minhas e que, cedo ou tarde, vão embora. Mas esta é a minha vocação. Tortura-me o coração, porém se Jesus quer isto é também verdade que me presenteou com um verdadeiro coração de mãe: fazê-los crescer e, depois, deixá-los ir embora, seguindo o desígnio bom de Deus... e eu permanecerei, sempre recomeçando de novo e rezando”. Esta é a santidade.
Obrigado a todos que são meus amigos.
P.e Aldo

Nenhum comentário: