Entrevista com Stefano Zamagni, quarta-feira, 8 de julho de 2009, publicada no Ilsussidiario.net.
Foi apresentada ontem a terceira Encíclica de Bento XVI – Caritas in veritate – que tem como subtítulo “sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. Ilsussidiario.net conversou com Stefano Zamagni, economista, sobre os principais temas enfrentados pelo documento: da divisão entre a esfera econômica e a social, ao princípio de fraternidade e de subsidiariedade, passando pelo bem comum e pela justiça. Para chegar à crise econômica, “dominada pelo ethos da eficiência”. Mas a Encíclica não contém apenas uma crítica, diz o professor; propõe soluções.
Professor, cada encíclica quer ajudar a entender os “sinais dos tempos”. Quais são os desafios de hoje aos quais a Caritas in veritate quer dar uma resposta?
Eu diria logo que esta é uma encíclica muito inovadora, porque não se limita, como você mesmo disse, a uma leitura dos sinais dos tempos, mas vai além: indica quais são as linhas através das quais devemos nos mover se quisermos resolver os problemas que são denunciados. Rerum novarum e Centesimus annus foram encíclicas que ficaram na defensiva: a Igreja exprimia perplexidade e dúvidas, e convidava os homens de bom vontade a corrigir os erros do sistema. Mas esta me parece mais propositiva.
Qual é, segundo o senhor, o verdadeiro centro da Encíclica?
A crítica e o convite a superar a dicotomia entre a esfera do econômico e a esfera do social, característica dos dois sistemas doutrinários ideológicos que dominaram o século XX: o anarco-liberalismo e o socialismo. Para ambos, o econômico, repudiado ou aceitado, era a esfera “malvada”, consistente na maximização do proveito em detrimento dos direitos dos outros. Oposto a este aspecto estava o social, como âmbito daqueles que tentavam contrabalançar o que de doentio e perverso acontecia no plano econômico.
Para o senhor, esta é uma divisão que deu certo?
Certamente. Veio disso a idéia do welfare state: o Estado intervém na sociedade para redistribuir os bens derivados dos erros do mercado.
E os católicos?
O papel dos católicos, imerso no âmbito social, sempre foi visto como um corretivo. Na Caritas in veritate o Papa diz não a esta posição, porque os elementos da sociabilidade, como solidariedade e fraternidade, devem “entrar” na economia e não ficar fora. Trata-se da superação da lógica dos dois tempos: antes se faz o dinheiro e depois se pensa na distribuição. É uma lógica errada, porque quando começa a redistribuição pode ser muito tarde. E se eu, para obter aquela riqueza, ofendo a dignidiade das pessoas, toda redistribuição se torna tardia porque a dignidade não pode ser compensada.
O princípio da fraternidade na Encíclica assume um papel central. Por quê?
Porque a sociedade fraterna é também solidária, mas o contrário não é verdadeiro. Peguemos uma sociedade de socialismo real: é solidária, mas não é fraterna. A fraternidade é o princípio de organização social que consente aos iguais de serem diferentes. Deve-se poder ser livre de manifestar, na esfera econômica, a própria crença em certos valores ou em uma visão da sociedade. Sem que isso seja objetivo do Estado.
O conceito de justiça, enfrentado desde a introdução, está ligado ao conceito de desenvolvimento da pessoa?
Sim. Existe um conceito forte de justiça que vai além do mero respeito às leis, e que diz respeito ao consentir a cada um, e a cada grupo social, o direito de exprimir o próprio potencial e os próprios recursos. E é por isso que o Papa justifica o princípio de subsidiariedade. Porque se se pergunta: “como é possível, concretamente, realizar a sociedade fraterna?”, a resposta é: “aplicando o princípio de subsidiariedade. Uma solidariedade sem subsidiariedade, completa o Papa, decai em assistencialismo e, portanto, em dogmatismo estado-cêntrico.
Na Encíclica, a subsidiariedade é compreendida para além dos limites do Estado. Por quê?
Hoje, o princípio de subsidiariedade não pode mais ser limitado apenas ao âmbito nacional, mas deve ser aplicado em nível global. Eis porque o Papa fala de um governo global de tipo subsidiário. Global, mas de tipo poliárquico: baseado em uma pluralidade dos centros de poder, porque o poder não pode estar nas mãos de uma única pessoa, mesmo que ela fosse a pessoa mais iluminada. E a modalidade através da qual se deve aplicar as regras deve ser subsidiária.
Qual é a “resposta” da Caritas in veritate para a crise econômica?
A crise é filha de dois erros ideológios que dominaram os últimos trinta anos. O primeiro é o ethos da eficiência: a ideia segundo a qual os direitos da pessoa devem ser calados se ela não é eficiente, se não “vale” segundo os critérios ditados pelo princípio da eficiência. Hoje, a ideologia da eficiência reina soberana e é brandida como espada para legitimar o status de tantas desigualdades: se você é mais pobre que eu é porque não vale nada. Os empresários superpagos, pelo contrário, eram tão eficientes que fizeram os bancos falirem.
Portanto, a crise tem suas raízes mais em um problema humano que estritamente técnico?
Mas, o ethos da eficiência é exatamente este: o mito que se afirma quando a centralidade da pessoa é negada. Outro erro é a ideologia da empresa como mercadoria: uma mercadoria como todas as outras, que pode ser comprada e vendida segundo as conveniências do momento. Mas esta é uma novidade absoluta, porque, por séculos, a empresa era vista, pelo contrário, como uma instituição destinada a durar no tempo.
Sem falar nas consequências para os trabalhadores...
Mais do que de trabalhadores, falaria da perda global de sentido do capital humano; que não pode ter significado apenas na medida em que aumenta o preço de mercado da empresa. Fazendo assim, as relações são eliminadas, isto é, o fato de que a pessoa humana é o verdadeiro fundamento da atividade da empresa.
A crise colocou em discussão outra vez os fundamentos do mercado. Qual é o principal fator que permite que o mercado funcione?
Objetivar o bem comum. Nisto, a Encíclica retoma a linha de pensamento da economia civil. Pessoalmente, fiquei muito feliz, porque a Encíclica está de acordo com minha linha de pensamento, e isso eu não esperava. Enquanto que a economia capitalista tem como objetivo a maximização do proveito, a economica civil objetiva a maximização do bem comum. O seu bem deve estar de acordo com o meu bem, que, portanto, não pode prescindir do seu e daquele do outro. O conceito de bem comum – outro fundamento da Encíclica – é anti-individualista, porque reconhece a dinâmica relacional própria da pessoa. Neste ponto, vem à tona toda a riqueza da posição católica.
Por quê?
Porque o bem comum não é sacrifício, mas harmonia de interesses: eu devo fazer o meu interesse, mas não contra o seu. É o conceito que estão difundindo, há anos, as Economias de Comunhão do movimento dos Focolares e a Companhia das Obras. Nas suas atividades, veiculam concretamente a ideia de que a empresa, para ajudar os outros, não deve estar fora do mercado e se fechar em si mesma: deve se fazer útil, permitindo a outros de também se fazer.
Faço uma objeção tipicamente laicista. Na Encíclica está escrito que “a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende intrometer-se na política dos Estados”. Mas, então, eu pergunto para o senhor, porque fala disso?
A Igreja não se preocupa com uma fórmula política ou social, mas com o bem do homem. Quando vê que ele está em perigo por causa das instituições e dos comportamentos egoístas e perversos, intervém para corrigir e ensinar. Além do mais, a tradução em iniciativas concretas é deixada aos homens que vivem na sociedade. De form que não há nenhuma invasão de campo por parte da Igreja.
O senhor fez parte do grupo de trabalho que redigiu o documento. Ouvimos dizer que teve uma gestação longa e trabalhosa. Foi mesmo assim?
Não diria. Basta pensar que a Centesimus Annus teve uma gestação de cinco anos, de 1986 a 1991, enquanto que a Caritas in veritate durou apenas dois anos e meio. A elaboração do texto final ficou maior do que o previsto, e foi determinada uma certa espera porque alguém que deveria ter respeitado a obrigação de silêncio não se comportou do modo correto.
A explosão da crise econômica impôs alguma revisão profunda?
A crise foi um evento contingente que alongou os trabalhos por quatro ou cinco meses, porque o texto já estava pronto em setembro do ano passado. Entre setembro e a data de publicação, inicialmente prevista para 8 de dezembro, ocorreu a crise e, então, pensamos em uma pesquisa complementar para levar em conta aquele aspecto novo. Em alguns casos, foram apresentados pontos alternativos para o Papa: a começar pelo título, por exemplo. Alguns queriam “Caritas in veritate”, outros “Veritas in caritate”. Neste caso, foi Bento XVI que tirou fora as reservas, descartando uma posição platônica, para sublinhar o primado do bem sobre o verdadeiro.
* Traduzida por Paulo R. A. Pacheco.
Foi apresentada ontem a terceira Encíclica de Bento XVI – Caritas in veritate – que tem como subtítulo “sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. Ilsussidiario.net conversou com Stefano Zamagni, economista, sobre os principais temas enfrentados pelo documento: da divisão entre a esfera econômica e a social, ao princípio de fraternidade e de subsidiariedade, passando pelo bem comum e pela justiça. Para chegar à crise econômica, “dominada pelo ethos da eficiência”. Mas a Encíclica não contém apenas uma crítica, diz o professor; propõe soluções.
Professor, cada encíclica quer ajudar a entender os “sinais dos tempos”. Quais são os desafios de hoje aos quais a Caritas in veritate quer dar uma resposta?
Eu diria logo que esta é uma encíclica muito inovadora, porque não se limita, como você mesmo disse, a uma leitura dos sinais dos tempos, mas vai além: indica quais são as linhas através das quais devemos nos mover se quisermos resolver os problemas que são denunciados. Rerum novarum e Centesimus annus foram encíclicas que ficaram na defensiva: a Igreja exprimia perplexidade e dúvidas, e convidava os homens de bom vontade a corrigir os erros do sistema. Mas esta me parece mais propositiva.
Qual é, segundo o senhor, o verdadeiro centro da Encíclica?
A crítica e o convite a superar a dicotomia entre a esfera do econômico e a esfera do social, característica dos dois sistemas doutrinários ideológicos que dominaram o século XX: o anarco-liberalismo e o socialismo. Para ambos, o econômico, repudiado ou aceitado, era a esfera “malvada”, consistente na maximização do proveito em detrimento dos direitos dos outros. Oposto a este aspecto estava o social, como âmbito daqueles que tentavam contrabalançar o que de doentio e perverso acontecia no plano econômico.
Para o senhor, esta é uma divisão que deu certo?
Certamente. Veio disso a idéia do welfare state: o Estado intervém na sociedade para redistribuir os bens derivados dos erros do mercado.
E os católicos?
O papel dos católicos, imerso no âmbito social, sempre foi visto como um corretivo. Na Caritas in veritate o Papa diz não a esta posição, porque os elementos da sociabilidade, como solidariedade e fraternidade, devem “entrar” na economia e não ficar fora. Trata-se da superação da lógica dos dois tempos: antes se faz o dinheiro e depois se pensa na distribuição. É uma lógica errada, porque quando começa a redistribuição pode ser muito tarde. E se eu, para obter aquela riqueza, ofendo a dignidiade das pessoas, toda redistribuição se torna tardia porque a dignidade não pode ser compensada.
O princípio da fraternidade na Encíclica assume um papel central. Por quê?
Porque a sociedade fraterna é também solidária, mas o contrário não é verdadeiro. Peguemos uma sociedade de socialismo real: é solidária, mas não é fraterna. A fraternidade é o princípio de organização social que consente aos iguais de serem diferentes. Deve-se poder ser livre de manifestar, na esfera econômica, a própria crença em certos valores ou em uma visão da sociedade. Sem que isso seja objetivo do Estado.
O conceito de justiça, enfrentado desde a introdução, está ligado ao conceito de desenvolvimento da pessoa?
Sim. Existe um conceito forte de justiça que vai além do mero respeito às leis, e que diz respeito ao consentir a cada um, e a cada grupo social, o direito de exprimir o próprio potencial e os próprios recursos. E é por isso que o Papa justifica o princípio de subsidiariedade. Porque se se pergunta: “como é possível, concretamente, realizar a sociedade fraterna?”, a resposta é: “aplicando o princípio de subsidiariedade. Uma solidariedade sem subsidiariedade, completa o Papa, decai em assistencialismo e, portanto, em dogmatismo estado-cêntrico.
Na Encíclica, a subsidiariedade é compreendida para além dos limites do Estado. Por quê?
Hoje, o princípio de subsidiariedade não pode mais ser limitado apenas ao âmbito nacional, mas deve ser aplicado em nível global. Eis porque o Papa fala de um governo global de tipo subsidiário. Global, mas de tipo poliárquico: baseado em uma pluralidade dos centros de poder, porque o poder não pode estar nas mãos de uma única pessoa, mesmo que ela fosse a pessoa mais iluminada. E a modalidade através da qual se deve aplicar as regras deve ser subsidiária.
Qual é a “resposta” da Caritas in veritate para a crise econômica?
A crise é filha de dois erros ideológios que dominaram os últimos trinta anos. O primeiro é o ethos da eficiência: a ideia segundo a qual os direitos da pessoa devem ser calados se ela não é eficiente, se não “vale” segundo os critérios ditados pelo princípio da eficiência. Hoje, a ideologia da eficiência reina soberana e é brandida como espada para legitimar o status de tantas desigualdades: se você é mais pobre que eu é porque não vale nada. Os empresários superpagos, pelo contrário, eram tão eficientes que fizeram os bancos falirem.
Portanto, a crise tem suas raízes mais em um problema humano que estritamente técnico?
Mas, o ethos da eficiência é exatamente este: o mito que se afirma quando a centralidade da pessoa é negada. Outro erro é a ideologia da empresa como mercadoria: uma mercadoria como todas as outras, que pode ser comprada e vendida segundo as conveniências do momento. Mas esta é uma novidade absoluta, porque, por séculos, a empresa era vista, pelo contrário, como uma instituição destinada a durar no tempo.
Sem falar nas consequências para os trabalhadores...
Mais do que de trabalhadores, falaria da perda global de sentido do capital humano; que não pode ter significado apenas na medida em que aumenta o preço de mercado da empresa. Fazendo assim, as relações são eliminadas, isto é, o fato de que a pessoa humana é o verdadeiro fundamento da atividade da empresa.
A crise colocou em discussão outra vez os fundamentos do mercado. Qual é o principal fator que permite que o mercado funcione?
Objetivar o bem comum. Nisto, a Encíclica retoma a linha de pensamento da economia civil. Pessoalmente, fiquei muito feliz, porque a Encíclica está de acordo com minha linha de pensamento, e isso eu não esperava. Enquanto que a economia capitalista tem como objetivo a maximização do proveito, a economica civil objetiva a maximização do bem comum. O seu bem deve estar de acordo com o meu bem, que, portanto, não pode prescindir do seu e daquele do outro. O conceito de bem comum – outro fundamento da Encíclica – é anti-individualista, porque reconhece a dinâmica relacional própria da pessoa. Neste ponto, vem à tona toda a riqueza da posição católica.
Por quê?
Porque o bem comum não é sacrifício, mas harmonia de interesses: eu devo fazer o meu interesse, mas não contra o seu. É o conceito que estão difundindo, há anos, as Economias de Comunhão do movimento dos Focolares e a Companhia das Obras. Nas suas atividades, veiculam concretamente a ideia de que a empresa, para ajudar os outros, não deve estar fora do mercado e se fechar em si mesma: deve se fazer útil, permitindo a outros de também se fazer.
Faço uma objeção tipicamente laicista. Na Encíclica está escrito que “a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende intrometer-se na política dos Estados”. Mas, então, eu pergunto para o senhor, porque fala disso?
A Igreja não se preocupa com uma fórmula política ou social, mas com o bem do homem. Quando vê que ele está em perigo por causa das instituições e dos comportamentos egoístas e perversos, intervém para corrigir e ensinar. Além do mais, a tradução em iniciativas concretas é deixada aos homens que vivem na sociedade. De form que não há nenhuma invasão de campo por parte da Igreja.
O senhor fez parte do grupo de trabalho que redigiu o documento. Ouvimos dizer que teve uma gestação longa e trabalhosa. Foi mesmo assim?
Não diria. Basta pensar que a Centesimus Annus teve uma gestação de cinco anos, de 1986 a 1991, enquanto que a Caritas in veritate durou apenas dois anos e meio. A elaboração do texto final ficou maior do que o previsto, e foi determinada uma certa espera porque alguém que deveria ter respeitado a obrigação de silêncio não se comportou do modo correto.
A explosão da crise econômica impôs alguma revisão profunda?
A crise foi um evento contingente que alongou os trabalhos por quatro ou cinco meses, porque o texto já estava pronto em setembro do ano passado. Entre setembro e a data de publicação, inicialmente prevista para 8 de dezembro, ocorreu a crise e, então, pensamos em uma pesquisa complementar para levar em conta aquele aspecto novo. Em alguns casos, foram apresentados pontos alternativos para o Papa: a começar pelo título, por exemplo. Alguns queriam “Caritas in veritate”, outros “Veritas in caritate”. Neste caso, foi Bento XVI que tirou fora as reservas, descartando uma posição platônica, para sublinhar o primado do bem sobre o verdadeiro.
* Traduzida por Paulo R. A. Pacheco.
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