quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Cartas do P.e Aldo 98


Asunción, 06 de agosto de 2009.

Caros amigos,
hoje foi um dia difícil, no qual, de forma muito potente, me passaram pela cabeça e pelo coração as palavras de Carrón, nos Exercícios: “Cada circunstância é positiva”, “Cristo está presente, mas falta-nos o humano” e “eu sou Tu que me fazes” e “mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”.
1. Sepultei Patrícia, de 20 anos, no meu cemitério. Como sempre, além dos coveiros, estavam Irmã Sônia – o anjo da clínica –, a sacristã Alba e Laura, uma psicóloga de Milão... além do motorista da ambulância, Matias. Que dor colocá-la debaixo da terra, na espera da Ressurreição. Mas, também na certeza de que ela, a mulher de rua, agora está lá em cima olhando para mim. Um funeral, como sempre quando morre um dos meus filhos, essencial, mesmo no número de pessoas que me acompanham. E mesmo assim uma coisa humana, bela, porque é o paizinho que acompanha os próprios filhos no lugar onde os surpreenderá a Ressurreição.
2. Enquanto volto para casa do cemitério, me ligam da clínica: Paulo, o rapaz de 21 anos com aquele tumor de 6kg nas costas, morreu. Que golpe! Um outro filho jovem! Só me resta pedir, suplicar: “eu sou Tu que me fazes”. Existe Cristo porque a minha humanidade ferve de desejo pela vida. Corro para a clínica: ele está ali na sua cela... está ainda quente. Beijo-o. Agradeço a ele: nunca eu o ouvi se lamentando, em todos esses meses. Conviveu com uma parte de si já apodrecida. Carrego um pequeno remorso: não lhe trouxe o sorvete que havia prometido. O meu Paulo queria sempre tomar sorvete. Desta vez, será Jesus que lhe vai dar. Dois filhos mortos... no mesmo dia. Revivo quase a cada dia a cena de Marta com Jesus, quando este lhe pregunta: “Tu crês isto?”. E eu: “Senhor, eu creio”. Tudo depende da minha resposta que é somente minha, como a dor.
3. Maria, minha pequena filha de 13 anos, viveu dois momentos difíceis: o exame de AIDS e a visita ginecológica para saber se está grávida. O que ela contou das violências sexuais sofridas é indescritível. Faz-me muito mal. Como é possível que alguém se torne pior do que uma besta? Mas é inútil nos escandalizarmos. “Se eu não fosse Teu, ó meu Cristo, seria uma criatura finita” e pior do que aqueles que abusaram dela com o beneplácito da mãe biológica. Olho para Maria e penso nos seus sofrimentos. Ela é um anjo de dor, eles são anjos de dor... se eu não tivesse encontrado Jesus, ou se Jesus não tivesse me encontrado e não tivesse movido a minha liberdade. Abraço Maria e ela se perde entre meus braços com a ternura de uma filha. Ela, como todos os meus 24 filhos, é fruto de violências terríveis. Eles estão todos aqui por ordem judicial e eu sou o tutor deles. Vão de dois meses de idade a 13 anos. Um dia, me perguntaram: “por que estes teus filhos são assim felizes, quando têm nas costas cenas de terror, violências sexuais etc.?”. A resposta é simples, e é Carrón que me ensina todos os dias: os meus filhos estão dentro do relacionamento que, instante depois de instante, me define – “eu sou Tu que me fazes” –, de forma que gozam do reflexo da minha febre de vida. A educação acontece apenas num relacionamento. Então, o relacionamento com eles é o acontecer do fato de que “eu sou Tu que me fazes” agora... e então, na paciência, reflorescem ou são condenados ao determinismo do passado. O problema sou eu e quem vive comigo esta aventura. O coração que carrego, que carregamos, tem a certeza, a experiência de que eu sou feito agrao, de que eu estou dentro de um relacionamento original, que vem antes de mim. É esta posição a origem da felicidade dos meus filhos. Eles são a reverberação, agora, do “eu sou Tu que me fazes”, do “os meus cabelos estão contados”. Maria, quando eu abraço, é vencida pela minha certeza, pela minha experiência humana do Mistério, de forma que as violências sofridas permanecem, mas não como fatores determinantes nela. Determinante é o meu relacionamento humano, cheio desta certeza que a faz respirar entre os meus braços e em cada instante do dia. Como eu gostaria que vocês entendessem isso... mas é o que eu vivo – o segredo da educação –, é o meu relacionamento definido por esta amizade original com o Mistério! A cada manhã eu vou pegá-los e os levo para a escola. Beijo-os um por um, depois enfrento a disputa deles para pegarem a minha mão. Têm necessidade de me tocar, porque se dão conta de que as minhas mãos são definidas por esta grande Presença. É um tocar-me que os deixa livres, ou seja, que indica para eles a realidade. Olho para os meus bebês e penso nas centenas de famílias jovens, fastidiosas no seu relacionamento com os filhos pequenos e mesmo os já grandinhos, onde se vê que o relacionamento é cheio de posse, onde os filhos são uma compensação afetiva, um entulho para preencher as frustrações, e o relacionamento é assim quando não vivemos aquilo que Carrón nos disse. Enfim, desde que comecei a cuidar desses 24 filhos, há um ano e meio atrás, eu toco com a mão o fato de que não existe nenhuma violência que, no tempo, possa impedir a liberdade de crescer. Mas, tudo se joga num relacionamento vibrante, para mim... tudo se joga no fato de que “eu, agora, sou querido”, “sou feito” e de que o passado foi assumido e redimido por esta certeza mais verdadeira do que o fato de que eu exista. É mesmo bonito ver os meus filhos felizes. Mas felizes mesmo, apaixonados e com uma ternura enorma pela vida. E tudo isso vivido dentro de um relacionamento carregado de Infinito, dentro de uma humanidade na qual Cristo é evidente. Por exemplo, o pequeno Marcos, de quatro anos, chegou sexta-feira passada. Quando nasceu, sua mãe tinha 13 anos de idade. Ela o deixou comigo e foi embora. Domingo, pela manhã, ele veio à Missa com os outros 23. Assim que entrou na Igreja e me viu no altar, gritou, para o desconcerto de todos: “Papai! Papai! Aquele ali é o meu papai!”. Fico comovido e entendo ainda mais que, naquele grito, está presente todo o Marcos, o Marcos de hoje e o de amanhã. E, desde aquele dia, ele, mesmo ele, é um menino que sorri e pinta o sete com todo mundo.
Ciao
Padre Aldo

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