sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Deus precisa dos homens


por Luigi Giussani

Vocês fazem bem em bater palmas, porque eu acredito naquilo que digo. “O maior perigo a que possa temer a humanidade – disse Teilhard de Chardin – não é uma catástrofe que venha de fora, não é nem a fome nem a peste, é, pelo contrário, esta doença espiritual, a mais terrível porque é o mais diretamente humano dos flagelos, que é a perda do gosto de viver”.
Quando eu disse essa frase, me veio imediatamente ao coração e à memória como deve ter nascido historicamente o interesse por Cristo. As pessoas poderiam ir escutá-Lo se perguntando: “O que é isso que ele diz? Fala da Trindade, de Deus Pai, fala do inferno da alma, da responsabilidade do homem”. Porém, poderiam também se fazer uma outra pergunta, que encontrava resposta no próprio coração, sem que fossem conscientes: “Esta pessoa, por que diz essas coisas?”. E imediatamente, quem tivesse formulado esta pergunta, teria escutado em si mesmo essa resposta: “Porque ama o homem”. Pegou uma criança, aproximou-a de si e disse: “Maldito aquele que torce um único fio de cabelo do menor dos meus filhos” e não falava de torcer fisicamente um fio de cabelo, porque nisso todos têm um pouco de recato; falava de fazer mal a uma criança em termos morais, lá onde ninguém presta atenção ou tem precaução; falava de um respeito absoluto por este serzinho indefeso. Ou então, para no caminho, passa um funeral, uma mulher soluça atrás de um féretro e Ele pergunta: “O que aconteceu?”, “É uma viúva. Morreu-lhe o filho único”. Dá um passo a frente e diz: “Mulher, não chores”. Ou ainda: “O que importa se tu tens tudo aquilo que queres e depois perdes a ti mesmo?”. O que um homem dará em troca de si? Assim, surgiu no mundo o sentido do respeito, da veneração, do apego, do amor, da confiança, da responsabilidade com relação à pessoa.
A pessoa: o amor ao homem. De outra forma não é possível compreender o Cristianismo. Mas, talvez, nós mesmos não o compreendamos, mesmo tentando vivê-lo, porque não participamos desta sua origem. O Cristianismo não nasceu para fundar uma religião, nasceu como paixão pelo homem. Então, se compreende que, se Cristo falava do Pai, se falava da criança, se olhava com especial atenção para o doente, para o pobre, era porque pobre, criança ou doente eram, entre todos, os mais indefesos, aqueles que menos poderiam ter conseguido se impor por si mesmos; exatamente por isso Ele sublinhava a presença desses, porque o valor deles era independente da sua capacidade de poder ou de servir ao poder. O homem, o filho de mulher, o homem concreto, como sempre insiste João Paulo II, não o homem à la Feuerbach ou à la Marx, eu, tu, o homem filho de sua mãe e de seu pai: e o amor ao homem, a veneração pelo homem, a ternura pelo homem, a paixão pelo homem, a estima absoluta pelo homem.
A frase de Teilhard de Chardin me fez lembrar do Evangelho: “Eu vos disse essas coisas para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena”. Alegria: a voz do cristão é a única que pode usar a palavra alegria sem ser obrigada a esquecer ou renegar qualquer coisa. Jesus o disse em termos bíblicos: “O anjo delas (o anjo das crianças) vê a face do meu Pai”. O homem é grande porque é relação com o Infinito, mas uma relação tal que se pode definir com um paradoxo: Deus precisa dos homens. Deus. Mas, quem não tem medo de usar estas palavras, quaisquer que sejam as imagens que tenha? Eu tenho muito e, de fato, as uso muito raramente.
Este “insondável mistério”, como dizia Einstein, três dias antes de morrer, ao grande matemática Francesco Severi, “que subjaz toda pesquisa”, esta “sombra que não se pode destacar de nós”, dizia Whithead, esta implicação última da razão, entendida como consciência da realidade segundo a totalidade dos seus fatores. “Toda a lei da existência humana está tão somente nisto: que o homem possa se inclinar diante do infinitamente grande”, dizia Dostoievski. Exatamente por isso, de todos os modos que se conceba, este infinitamente grande está ligado à nossa existência. Com um termo dramático, a Bíblia fala de “aliança”, um contrato substancial, essencial e existencial: a aliança da criação. Este infinitamente grande é ligado à nossa existência por aquele maravilhamento que assegura a emoção da novidade, sem a qual a vida seria tédio mortal, pelo qual Deus se impõe a nós como atração imperativa do real, do ser; por aquela emoção da razão pela qual Deus aparece como a consistência que nos mantém sobre o abismo do nada; por aquela dependência inevitável dos acontecimentos, pela qual Deus nos determina como Destino.
Mas então, se Deus é ligado a nós, podemos falar disso? Deve-se falar disso, no sentido de que não é possível não falar disso, de qualquer modo como se o conceba. Só existe uma maneira de não falar disso: não pensar. “Fechado entre coisas mortais mesmo o céu estrelado acabará. Porque grito a Deus?”. É a pergunta apaixonada de Ungaretti. Pergunta que Rainer Maria Rilke explicitou assim: “Apaga-me os olhos, ainda posso ver-te. Tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te, e sem pés posso ainda ir para ti, e sem boca posso ainda invocar-te. Quebra-me os ossos, e posso apertar-te com o coração como com a mão, tapa-me o coração, e o cérebro baterá, e se me deitares fogo ao cérebro, hei-de continuar a trazer-te no sangue”. Por isto, por esta implicação fisiológica, com temor e tremor, repito: Deus precisa dos homens. Assim nos foi revelado.
O belo título do esquecido filme de Delannoy é certamente um paradoxo, mas é verdadeiro: Deus se fez necessitado do homem pelo modo como agiu. Só podemos nos exprimir com estas fórmulas: ter necessidade sem que fosse preciso ter necessidade é amor. O amor na sua pureza, para todos vivido como nostalgia sobretudo quando não é vivido como experiência, o amor na sua gratuidade absoluta. Deus se fez necessitado do homem porque o criou livre, fez o homem participar desta Sua suprema capacidade de posse de si, e, em segundo lugar, porque se fez homem, se fez história! Péguy, no Mistério dos Santos Inocentes, escreveu: “Perguntem a um pai se o melhor momento não é quando os seus filhos começam a amá-lo como homens, ele mesmo, como um homem, livremente, gratuitamente. Perguntem isso a um pai cujos filhos estejam crescendo. Perguntem a um pai se não existe uma hora secreta, um momento secreto, e se não é quando os seus filhos começam a se tornar homens, livres, e ele mesmo tratado como um homem, livre! Amam-no como um homem, livre, perguntem isso a um pai cujos filhos estão crescendo. Perguntem àquele pai se não existe uma eleição entre todas, e se não é quando a submissão precisamente acaba, e quando os seus filhos, tornados homens, o amam, o tratam por assim dizer como conhecidos, de homem para homem, livremente, gratuitamente, o estima assim. Perguntem àquele pai se não se ele não sabe que nada vale mais do o olhar de um homem que encontra um olhar de homem. Ora, eu sou o pai dos homens, disse Deus, e conheço a condição do homem, fui eu quem a fez, não peço muito a eles, só lhes peço o coração, quando tenho o coração acho que já é suficiente, não sou difícil. Todas as submissões de escravos do mundo não valem um belo olhar de um homem livre, ou mais: todas as submissões de escravos do mundo me repugnam e eu daria tudo por um belo olhar de homem livre, por uma bela obediência e ternura e devoção de homem livre, por um olhar de São Luiz IX e também por um olhar de Joinville, porque Joinville é menos santos, mas não é menos livre, e não é menos cristão e não é menos gratuito, e meu filho morreu também por Joinville. Por esta liberdade, por esta gratuidade sacrifiquei tudo, disse Deus, pelo gosto que tenho de ser amado por homens livres, livremente, gratuitamente, por verdadeiros homens, viris, adultos, firmes, nobres, ternos mas de uma ternura firme. Para obter esta liberdade, esta gratuidade, sacrifiquei tudo, para criar esta liberdade, esta gratuidade, para fazer agir esta liberdade, esta gratuidade, para ensinar ao homem a liberdade...”.
Mas, esta capacidade enérgica de aderir ao ser, na qual está a liberdade, tem em si um mecanismo tremendo, como um mistério, Péguy diz “mistério dos mistérios”. A liberdade se realiza como escolha, como opção. Diria Althusser, naquele seu terrível juízo: “A diferença entre o crer na existência de Deus e o marxismo não está em uma razão, é uma pura opção”. Escolha do quê? Aceitar o não aceitar o Ser. Esta é uma escolha que se repropõe a cada dia, porque nós, a cada manhã, nos levantamos e nos colocamos diante da realidade com o olhar escancarado, aberto, ingênuo de uma criança, pronto para dizer pão ao pão, vinho ao vinho. “Seja o vosso dizer sim, não; toda outra palavra vem da mentira”. Ou então, nos levantamos com os cotovelos cobrindo o rosto, cautelosos, para nos defendermos da realidade (aceitar ou não o Ser, a própria mãe ou Deus é o mesmo, a posição é idêntica), ajuntando pretextos também contra a evidência, naturalmente. E se se ajuntam pretextos, então não é apenas negação, mas é mentira. As razões, os pretextos fundamentais, são a dor, em todos os sentidos, mesmo a dor do se sentir por baixo, ou a pretensão, a vontade de afirmação do homem, não de si, atenção, não do próprio eu, mas do homem, atenção outra vez, do homem à la Feuerbach.
Talvez o exemplo mais impressionante da primeira razão, a dor do homem, é uma famosa poesia de Montale que me permito citar: “Talvez, uma manhã, andando sob o ar árido, virando-me, verei acontecer o milagre; o nada atrás de mim, o vazio às minhas costas com um terror de bêbado. Depois, como que sobre uma tela, se encherá de árvores, casas, colinas, para o engano habitual, mas será muito tarde. E eu irei embora calado, entre as pessoas que não olham para trás, com o meu segredo”. Quando li esta poesia de Montale, de repente, entendi; porque esta é a posição na qual se acende a intuição e a experiência mística, esta percepção imediata do nada das coisas, da inconsistência de tudo, do efêmero, é também o início da experiência do Ser que dá consistência e sustenta tudo. “Rerum Deus tenax vigor”, “Ó, Senhor, consistência tenaz de todas as coisas”: aqui, pelo contrário, da mesma idêntica experiência, tem-se o nihilismo: é uma pura opção. Justamente Péguy fala do “mistério dos mistérios”, da liberdade.
Sem dúvida, de um ponto de vista abstrato, Montale não explica uma coisa (o erro é sempre constrangido a esquecer ou a renegar algo): porque as coisas são, efêmeras (o ilusório é já uma avaliação) mas são. Enquanto que um belo exemplo da afirmação de si (mas na afirmaçaõ de si é afirmação da liberdade do homem) é um conhecido trecho de Nietzsche: “Um dia, o viandante fechou a porta atrás de si e chorou. Depois, disse: ‘Este ardente desejo do verdadeiro, do real, do não aparente, do certo... como o odeio!’”. Toda a imponência do mistério do real, se o homem não o reconhece, é como nada. O vazio atrás de mim. É como um nada, não porque não exista, mas porque não é reconhecido. E, nesse sentido, Tischner, comentando as poesias do Papa Wojtyla, disse que “para o Papa Wojtyla, o homem permite a Deus ser um Deus”.
Deus, para ser reconhecido como Deus, deve, de certa maneira, esperar esta escolha, mas a negação só pode corresponder a uma última postura de ira, sutil e clamorosa; a uma afirmação irada, surda, ou potente. Nesta ira o acento não está sobre a afirmação de si, da própria humanidade pessoal, mas sobre a recusa de algo que é dado. É a recusa ao ato de um Outro, recusa da própria condição humana enquanto dada, recusa da própria natureza, recusa de uma gratuidade originária. Estranhamente, o acento não é sobre o orgulho, sobre a vontade de afirmaçaõ de si, porque o homem, na concretude da sua pessoa, se dissolve. “Quem não crê mais em Deus – dizia Claudel nas suas grandes Odes –, não crê mais no ser, e quem odeia o ser odeia a própria existência”.
Como eu gostei de ter lido em Um homem, de Oriana Fallaci, esta observação: “A amarga descoberta de que Deus não existe, matou a palavra destino”. Mas, negar o destino é arrogância; afirmar que nós somos os únicos artífices da nossa existência é loucura, a loucura com a qual Sartre dizia: “As minhas mãos?! O que são as minhas mãos? A distância incomensurável que me divide do mundo dos objetos e me separa dele para sempre”. Quanto mais você aperta e segura, mais você é condenado a perceber, a experimentar uma distância: nenhum nexo é possível. É o eu que se dissolve, centro de relações e de abraço, de afirmação e de colaboração.
Por isso, a dissolução chega até o ponto em que Moravia, em O tédio, fala da “absurdidade de uma realidade insuficiente, ou seja incapaz de me persuadir da própria efetiva existência”. Que terrível morte da razão medida de todas as coisas, que não aceitou ser consciência admirada e maravilhada de uma realidade não sua, que se torna sua na medida da sua obediência, do seu olhar que grita, deseja, escancarado em uma aceitação contínua. Existe, porém, uma alternativa à negação de Deus, existe uma alternativa à recusa de uma responsabilidade diante do pedido, da necessidade expressa por Deus de nós.
No mistério da liberdade, a alternativa ao esquecimento e à negação de Deus, diz o profeta Jeremias, “é prostrar-se diante do trabalho das próprias mãos”. Mas, na sociedade atual, por causa do mecanismo potente no qual tudo é articulado e organizado, é inevitável que este prostrar-se diante do trabalho das próprias mãos se torne prostrar-se diante do poder: quanto menos somos conscientes disso, tanto mais somos assujeitados. “Conseguiu-se fazer como que os homens entendessem – disse Milosz, o grande Nobel pela poesia 1984 – que se vive apenas pela graça dos poderosos. Pense, portanto, em beber café e caçar borboletas. Quem ama a res publica terá a mão cortada”. O mal, que a filosofia e a literatura definem e descrevem, se reflete em nós, nas mil ações de cada dia. Totalmente ou em parte, nossas ações são arrancadas do desígnio do mistério, da ordem de tudo, por causa da recusa da gratuidade.
Esta negatividade, esta incapacidade de perfeição é o acontecimento existencial mais trágico para o homem consciente de si. Sempre recordo aos meus amigos mais jovens a expressão literalmente mais trágica desta consciência, o final do Brand, de Ibsen, quando aquele que por toda a vida procurou o instante perfeito, o ato inteiramente humano, de pé diante de sua cabana, enquanto o estrondo da avalanche que o atropelará está se aproximando, grita: “Responde-me, ó Deus, no momento em que a morte me atropela: pode toda a vontade de um homem obter um só ato perfeito?”. Um só ato humano? Por isso, eu lembro com emoção, e também com uma paradoxal gratidão, as palavras de uma pessoa que estimo profundamente, a propósito do pecado: “O pecado talvez seja eu”. A afirmação parece se transformar completamente: o homem tem, portanto, necessidade de Deus para ser homem? Como resposta Deus se faz homem, se envolve. Certo, quem tem muito senso dramático da vida, é muito próximo do Cristianismo, para ele é muito mais fácil entender o Cristianismo. Como resposta Deus se faz homem, se envolve com o homem como companheiro real de caminho, totalmente familiar, inicia um diálogo imediato sem longos, solitários e ambíguos espaços interpretativos. Assim, Deus se faz necessitado dos homens, exatamente como homem. E é neste ponto que a opção se joga de modo mais drástico e se torna drama histórico e tragédia do pensamento.
Em nome da autonomia da verdade humana, em nome do seu modo de conceber o último, aquilo a que damos o nome de Deus, porque é inevitável a implicação do último no dinamismo da razão, o homem afasta com violência, até ao tédio, esta presença amorosa que tem necessidade do homem, mas lhe pede de amá-lo com toda a mente, com todo o coração, com todas as forças, como diz o Evangelho. Assim, da honestidade dos fariseus, à recusa do jovem rico, ao escândalo de Judas, a abolição de Cristo da memória que decide e guia a vida individual e social, se torna pecado social. Uma obviedade da cultura dominante: Cristo é um grande homem, desde que seja abolido, como Cristo, da memória. Tal abolição se torna renúncia à categoria suprema da razão, a categoria da possibilidade. É absurdo, é inconcebível, é impossível.
Lembro-me, em O fim de caso, de Graham Greene, que o protagonista, livre pensador, vai à noite na casa de seu amigo cuja mulher havia morrido e encontra o confessor da mulher, um padrezinho magrelo, pequeno, frágil, que ele tenta confundir através de uma série de invectivas contra a imagem religiosa cristã da vida e do homem. E aquele pobre padrezinho, aproveitando uma pausa do artista, “livre pensador”, exclama timidamente: “Mas, me parece que eu sou mais livre pensador do que o senhor; porque é pensamento mais livre admitir todas as possibilidades do que excluir alguma”. É da abolição da memória de Cristo como Deus-homem que se torna possível a lucidez histérica com a qual tanta cultura moderna renega Deus; mas Nietzsche dizia: “Se arrancamos Cristo, devemos arrancar Deus”. Mas, Cristo é um empenho do mistério, irreversível, com o tempo humano; a Bíblia o chama “Aliança Eterna”. Deus é fiel a si mesmo, Cristo é o revelar-se da natureza do mistério para o homem. O que é o mistério para o homem? Misericórdia. A gratuidade inicial, original, pela qual o homem é, se revela de forma realizada no seu coração, na sua profundidade afetiva. É misericórdia.
A resposta negativa do homem não resolve a grande questão de amor: Cristo se implica na totalidade da existencialidade mesma do homem, na totalidade da minha existência. A ideia de que, para o Cristianismo, a salvação, isto é o sentido positivo do mundo, é ligado a um ponto infinitesimal que é o “sim” de uma garota de 15, 16 ou 17 anos no máximo, que vive em um vilarejo perdido da Palestina, bastaria para me fazer entender o divino. Assim, do outro lado, um homem é beijado, naquela noite, e exclama: “Amigo, por que veio? Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”. Envolvido com a existencialidade humana, com o jogo da sua liberdade, segundo os movimentos normais, cotidianos dela, implicado na totalidade da existência como homem, Cristo se faz necessitado das concretas, visíveis coisas que o homem usa: a água do Batismo, o óleo da Crisma, o vinho e o pão da Eucaristia, a palavra da Confissão; o gesto, onde quer que seja. Mas a realidade histórica total da qual Cristo tem necessidade para cumprir a sua presença no caminho do homem em direção ao destino é a unidade entre todos aqueles que o Pai lhe deu.
O capítulo 17 de São João diz: “A unidade de todos aqueles a quem foi dado conhecê-Lo”. Início da unidade total da humanidade, é a unidade entre aqueles que o Pai lhe deu, a Comunidade Eclesial, “este ambiente da existência redimida do homem”, como nos disse João Paulo II, no dia 29 de setembro, a Comunidade Eclesial, existência redimida portanto não perfeita... ambiente fascinante, onde cada homem encontra a resposta à pergunta sobre o significado para a sua vida, isto é Cristo centro do cosmos e da história. Porque não existe nenhum fascínio na vida maior do que o esplendor claro do significado. Porque o fascínio é a atração do verdadeiro, “pulchrum splendor veri”, dizia São Tomás.
Assim, em um certo sentido, o início cristão não é o início de uma religião e nem mesmo de uma ética, mas de uma estética. A ética acontecerá, como consequência, a partir de um amor despertado, e o amor é despertado pela beleza, que é a atração própria da verdade. Comunidade Eclesial: onde todos os temperamentos, todas as histórias, todos os movimentos, as associações, brotam do único pedido por aquele significado e junto, sem nenhuma possibilidade de domínio, completando-se e ajudando-se um ao outro como grande e apaixonada companhia, fluem em direção à única foz; o testemunho a todo o mundo humano de Cristo morto e ressuscitado. Mas esta Comunidade Eclesial é um povo, ou, como dizia Paulo VI (no dia 25 de julho de 1975), “uma entidade étnica sui generis”, um povo de homens: Deus não precisa de santos, precisa de homens.
Assim Eliot descreve o caminho desta povo, no VII Coro da Rocha: “A partir daquele momento pareceu como se os homens devessem proceder da luz à luz, na luz do Verbo através da paixão, do sacrifício, salvos a despeito do seu ser negativo, bestiais como sempre, carnais, egoístas como sempre, interessados, obtusos como sempre foram, e no entanto sempre em luta, sempre reafirmando, sempre retomando a sua marcha na vida iluminada pela luz, muitas vezes parando, perdendo tempo, desviando-se, atrasando-se, voltando atrás, porém nunca segundo um outro caminho”. Este Cristo introduziu na nossa vida, fazendo-se companheiro nosso, a dignidade, a liberdade como tensão ao infinito; se o homem é relação com o infinito, a única dinâmica digna é a tensão ao infinito. Como uma criança que, nascida, deve aprender a caminhar, e cai mil vezes, e recomeça mil vezes, mas tudo nela é tensão ao caminho e à vida.
Eliot prossegue: “Mas, parece que algo aconteceu, que não tinha acontecido antes, apesar de não se saber quando, ou por que, ou como, ou onde. Os homens abandonaram a Deus não po outros deuses, dizem, mas por Deus algum, e isto nunca tinha acontecido antes; que os homens negassem os deuses e adorassem como deuses a razão ou o dinheiro, o poder ou o que chamam vida, raça, dialética. A Igreja repudiada, a torre abatida, os sinos revirados, o que podemos fazer? Deserto e vazio, deserto e vazio, porque deserto e vazio é o mundo lá onde não há busca de um significado, e trevas sobre a face do abismo. É a Igreja que abandonou a humanidade, ou a humanidade que abandonou a Igreja? Todos os dois. Quando a Igreja não é mais considerada, e nem mesmo combatida, e os homens esqueceram todos os deuses, menos a Usúra, a Luxúria e o Poder”.
O Deus do homem é o que o homem é; o que o homem é, é o seu Deus. Mas o homem não é luxúria, dinheiro e poder. Estes dinamismos pretendem continuamente definir o homem e o homem pode se tornar algo como esses dinamismos, sobretudo teoricamente, escravo, prisioneiro; mas o homem é definido por algo mais, onde o cálculo é transformado. Não obstante tudo, não obstante o homem seja atravessado continuamente pela fome e pela sede de luxúria, de dinheiro e de poder, afirmar este mais, tender em direção a este mais, viver esta luta e, na própria fragilidade, mendigar como pobres no meio da rua, é o modo humano de viver a gratuidade, de viver a própria verdadeira natureza, imagem de Deus, de viver aquele relacionamento com o infinito, criador por graça. Tal capacidade de gratuidade, este salto para além do cálculo, em direção ao infinitamente grande, é o teste da vida. “Vim para que tenham vida e a tenham em abundância”, uma vida que não seja forçada a esquecer ou renegar nada.
Permitam-me citar este trecho do Diário, de Kierkegaard: “O relacionamento de negatividade polêmica que o paganismo colocava entre a ideia de uma vida futura e a existência presente, se vê também na obrigação que as almas tinham de, chegadas aos Campos Elíseos, beber a água do rio Lete”. Para entrar no paraíso deles, os pagãos acreditavam que as almas devessem antes beber a água do rio Lete, que na raiz grega quer dizer “esquecer”: para ser feliz no além, era preciso esquecer tudo. Mas esta é a norma para toda a ideologia, teorizada ou implicada no modo de viver. O Cristianismo, pelo contrário, ensina que devemos prestar conta, que há um valor eterno até mesmo uma palavra dita por brincadeira. Isto significa, entre outras coisas, a presença total do nosso passado, mesmo que um outro Lete, a misericórdia, nos tira a dor lancinante: é a transformação profunda, a conversão profunda do meu mal mesmo.
O Evangelho diz: “Mesmo os cabelos da tua cabeça são numerados”. Uma vida que se torna si mesma, isto é sempre mais vida, como dizia Santo Agostinho: “A vida não deve passar, literalmente, da juventude à velhice, mas é a juventude que deve crescer sempre mais”. Isto que Santo Agostinho afirmava por experiência pessoal é testemunhado por uma belíssima poesia de uma grande poetisa, mesmo que esquecida, de 70 anos, Ada Negri – Juventude: “Não te perdi, permaneceste no fundo do ser, és tu, mas uma outra és, sem folhas e flores, sem o riso que tinhas no tempo que não volta, sem aquele canto; uma outra és, mais bela. Amas, e não exiges seres amada, a cada flor que desabrocha ou fruto que amadurece ou criança que nasce, ao Deus dos campos e das estirpes dás graças de coração; não amas a flor porque a colhes e cheiras, mas porque é; não mas o fruto porque o mordes, mas porque é; não amas a criança porque é tua, mas porque é”.
Esta é a gratuidade tornada vida cotidiana, que reverberação no olhar de quem vive próximo!, que reverberação no pensamento e no trabalho para as pessoas desconhecidas que vivam distante!, que reverberação de missão! No fundo, o Cristianismo realiza a imagem queVictor Hugo, num belíssimo trecho do seu A Contemplação, com o título O Eremita, descreve. Ele imagina este eremita que se levanta de manhã cedo, no alvorecer, e tenta, à luz da vela, começar a ler e meditar o seu texto. Na medida em que lê, o sol se levanta e cresce e, assim, ao mesmo tempo, na sua alma se faz a luz, não da juventude à velhice; é a juventude que deve crescer sempre. “Não confiem no amor”, é a última recordação de Paul Valery aos seus amigos. “Não cremos no amor”, é a mensagem de João. “Sei bem que Deus não me ama, como poderia me amar? E todavia, no fundo de mim, algo, um ponto de mim, não pode me impedir de pensar, tremendo de medo, que talvez, apesar de tudo, me ama”, do primeiro caderno de Simone Weil.
Isto é aquilo sobre o que não se pode atestar a nossa humanidade, pelo pouco de pureza que mantenha. Há um único verdadeiro delito, o esquecimento de Deus que precisou de nós, que precisa de nós. “Sinto que o meu navio – disse um bom poeta espanhol, Juan Ramón Jiménez – bateu, lá no fundo, em algo grande”. O nosso navio que está navegando pelo Oceano da vida bateu, lá no fundo, em algo grande: Deus presente. E nada acontece. Nada, paz, ondas. Tudo como antes, tudo já aconteceu e estamos já tranquilos no diferente, já nos resignamos? Eu desejo, para mim e para vocês, que nunca estejamos tranquilos, nunca mais tranquilos.

* Extraído do site Il Sussidiario.net. É transcrição da colocação de dom Luigi Giussani no Meeting de Rímini, do ano de 1985. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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