Há alguns dias atrás, conversando com a Renata, nos perguntávamos se ainda tínhamos um texto que havíamos lido na época da faculdade... tratava-se de um texto datilografado que era a transcrição de uma conferência proferida pela falecida professora Sônia Viegas. Conversa vai, conversa vem, resolvemos procurar o texto no meio dos papéis velhos... e eis que topamos com ele. É realmente uma pérola que precisava ser resgatada! Decidi, então, transcrever o texto, corrigir alguns erros de datilografia e publicá-lo aqui, para o deleite dos muitos que frequentemente andam por aqui e daqueles que, por acaso, passarem.
Por Sônia Viegas
... eu acho que é um tema belíssimo. E, apesar de não ter nenhuma especialidade no assunto, vou tentar desenvolver em torno dessa relação – trabalho e vida – que envolve as coisas mais essenciais da relação do homem com os outros homens, da relação do homem com a realidade, com o ambiente. (corte)
... essa etimologia da palavra. E fiquei um pouco espantada mesmo. Ela tem uma raiz que significa fixar, enterrar no solo, afundar. (corte)
... já de uma derivação dessa raiz, que é a palavra “palus”, que significa pau, ou palha. E trabalho seria “tripallium”, que é, originariamente, um instrumento de tortura formado de três paus.
No século XII, a palavra significava precisamente tormento, sofrimento. No século XIII, ela ganhou uma nova acepção, muito próxima: dispositivo para imobilizar os grandes animais. Então, seria uma espécie de canga. Inclusive, a palavra canga é usada como metáfora de trabalho.
Fiquei impressionada, porque tantas e tantas são as acepções que a palavra trabalho foi tomando, e acepções tão ricas e tão positivas e, etimologicamente, o que caracteriza a palavra é exatamente o sentido negativo, o sentido de não realização, de uma coisa imposta.
Então, fiquei pensando, por exemplo, no texto bíblico, quando a questão do trabalho aparece. E que aparece também, pelo menos manifestamente, com sentido de castigo, de condenação, quando Adão cai em pecado, transgride a lei divina e, junto com Eva é expulso do Paraíso e é condenado ao trabalho, ou seja, a ganhar a vida com o suor do seu rosto.
Pelo menos a gente aprende a religião, lê o catecismo, desde criança, e a significação que é passada é a de uma coisa penosa, de uma coisa forçada, como se o ideal para o ser humano fosse o não-trabalho, ou seja, o Paraíso. Essa seria a perspectiva da palavra, do conceito que puxa a sua significação para um aspecto negativo.
Mas, na verdade, existe outra palavra que nos ajuda a pensar a questão do trabalho no sentido positivo, ou seja, não no sentido de exaustão de forças, mas no sentido de construção do ser, que é a palavra “labor”. A palavra labor está ligada, exatamente na sua origem latina, às atividades agrícolas, à lavra, à laboração no campo. Quer dizer, trabalhar significa cultivar. Então, trabalhar, enquanto cultivar, é uma palavra que nos remete diretamente ao sentido da palavra cultura. Cultivar é fazer cultura. A cultura é cultivada, é fruto de um processo de enriquecimento, de um processo de transformação.
Então, temos de um lado o sentido negativo, de tormento, de tortura mesmo, de imobilidade, de condenação. E, de outro lado, temos um sentido altamente positivo, que nos liga à palavra labor, lavra, elaboração, laborar, laborioso – um esforço laborioso. É uma palavra extremamente sugestiva e que nos convida a imagens de crescimento e não a imagens de degeneração ou exaustão. Temos então esses dois aspectos.
Acho que não podemos deixar passar de liso o que a linguagem nos mostra, o que a língua nos mostra e o que a própria filologia, a própria etimologia da língua nos mostra. Ou seja, que talvez a nossa cultura tenha se apropriado mais do sentido negativo da palavra. E que a gente tenha que resgatar, dentro de condições especiais, ou seja, com um esforço de sensibilidade, de reflexão especial, o sentido positivo.
Acredito que isto devesse estar na cabeça de vocês quando me pediram este tema, porque vocês são educadores, são pessoas assistentes, ou seja, são pessoas voltadas para o bem social, o bem-estar social, e devem viver na pele a contradição desses dois sentidos, sobretudo trabalhando na instituição em que trabalham.
Acho que chegam até vocês as pessoas que foram acidentadas pelo trabalho, as pessoas que foram fisicamente maltratadas pelo trabalho. E a instituição toda visa, exatamente, a um curvar-se incessante, de alguma maneira e com toda precariedade que a gente sabe que existe numa instituição de bem-estar social no Brasil. Mas de qualquer maneira ela está inteiramente curvada sobre o sentido positivo da palavra e vivendo toda a injunção do sentido negativo.
Acredito que vocês tenham uma consciência muito profunda dessa contradição, dessa dualidade. E que não tenha sido à toa, mas que tenha sido com base em uma experiência já adensada, que vocês me pediram esse tema. É o tema com que vocês lidam.
E acho que temos que pensá-lo nas duas óticas, nos dois lados: por que será que o trabalho tornou-se esse sentido negativo? Será que o sentido negativo que a sociedade capitalista carrega, de trabalho como sendo alguma coisa que priva o tempo de lazer, que tira o tempo do lazer, será que esse sentido negativo, anti-vida, quer dizer, colocar no trabalho o sentido de a pessoa não viver; a pessoa fala assim: “pronto, agora posso viver, não tenho mais que trabalhar”. Será que esse sentido é o mesmo que está na Bíblia?
Acredito que não, porque a linguagem da Bíblia é uma linguagem mito-poética, é uma linguagem simbólica. Quando ela fala da dureza do trabalho, fala da dureza de se ter que se fazer, de se ter que se construir dia a dia, numa sobrevivência num só sentido material e espiritual: do mesmo pão que eu como, tiro a fisionomia e a imagem do meu ser.
Então, essa imagem dessa dureza é um risco, é o incômodo de ser livre, ou seja, de poder ultrapassar uma legalidade que me coloca no cerne da natureza; o preço incômodo disso é a liberdade. E a maneira de construir essa liberdade é o risco incessante de ser, ou seja, é o trabalho cotidiano.
Então, o sentido bíblico não é, necessariamente, o sentido negativo. O sentido negativo que conhecemos, dentro de uma sociedade civil, dentro de um modelo de desigualdade, dentro de uma sociedade burocratizada, calcada pela divisão do trabalho, é o sentido que já foi amplamente analisado, desde o século passado, por Karl Marx. Ou seja, é o trabalho alienado.
Esse sim, é um trabalho anti-vida. É um trabalho que, quando muito, pode ser dito ocupação, mas não pode ser dito elaboração, ou seja, não pode ser dito construção do ser da pessoa. A construção do ser da pessoa, por mais incômoda, por mais angustiante que seja, produz um intensíssimo prazer.
Eu posso sair esgotada de uma aula, às vezes até emocionalmente, mas o prazer que sinto é muito grande. O prazer, por exemplo, de estar aqui falando com vocês supera qualquer cansaço, qualquer esgotamento, no sentido de exaustão, de degenerescência.
Quanto mais me coloco, mais eu recebo, porque mais retorno tenho, então, mais enriquecida saio. E o outro sentido, o negativo, é o empobrecimento, no sentido de uma força que vai se esvaindo e você não vê, ou não tem o retorno dela no seu ser.
Esse sentido é um sentido muito específico da sociedade civil, de uma sociedade que trabalha em cima da divisão do trabalho, ou seja, que opera produtivamente em cima da divisão do trabalho e que faz do trabalho uma força ou um fenômeno desvinculado do ser que trabalha.
O que se assiste hoje é exatamente o contrário do que se vê no texto bíblico. Nesse texto, o que Deus, Iahweh, fazia com Adão era incorporar, colocar dentro da sua condição de existência, intrínseca à sua existência, o ato do trabalho. E o que a sociedade civil, a sociedade de pura ficção faz, é separar o sujeito do trabalho, fazer com que ele e seu próprio trabalho sejam coisas distintas.
E é exatamente nesse seccionamento que o trabalho se torna alguma coisa de fora que incide sobre a pessoa, ou seja, uma canga, um instrumento de tortura, uma coisa alheia, uma coisa em que a pessoa não se encontra. Ou, em suma, um trabalho alienado, alienante.
Marx fala: “o produto do trabalho é trabalho incorporado em objeto”. Dentro dessa relação alienada, o trabalho fica incorporado ao objeto e se converte em coisa fisica. Ou seja, ele se objetiva, se objetifica, se torna uma coisa, se reifica. Então, o sujeito que fez aquilo não consegue se enxergar, se ver.
A razão fundamental porque uma pessoa atua na natureza, ligada diretamente à sobrevivência básica, é a modelagem de seu rosto. Ela está buscando o objeto, esculpir a sua imagem. Quando trabalho um objeto, faço do meu trabalho uma coisa altamente simbólica. Eu cubro, incorporo à dimensão física da natureza uma dimensão simbólica, que é exatamente a forma e toda a sugestão e significação que esta forma atinge.
E essa forma, que é uma possibilidade incessante de novas significações, porque vai ser objeto do meu diálogo com os outros homens e objeto do meu diálogo comigo mesmo, objeto do meu diálogo com meu passado e objeto da minha possibilidade de me projetar na frente, ela vai ser então um centro de significações incessantes, de novas significações. É essa dimensão simbólica que confere ao mundo bruto que eu estranho, que me choca, que me restringe à minha imagem. Mas não uma imagem imperialisticamente colocada no mundo, mas uma imagem que acabo de improvisar lá, para que possa me reconhecer fora de mim e me tornar maior do que eu mesmo. É uma coisa realmente fundamental.
Agora, imaginem que, no trabalho alienado, o objeto parece que é uma esponja que bebe a significação. Então, ela absorve e torna pedra, torna coisa todo o gesto que faço. Então não consigo me enxergar no meu trabalho. Em vez de me encontrar nele, me perco nele.
Aí fala Marx: “objetificação significa perda, e o trabalhador se perverte”. Perverte por quê? Porque de agente ele se torna paciente. De elemento ativo ele se torna o passivo. E quando ele se apropria do objeto para tentar se encontrar lá, se aliena nessa apropriação, se perde também, se aliena de si mesmo nessa apropriação.
Então, ele vai ter que apropriar, apropriar, apropriar e vai se alienar de duas maneiras: ou se alienar na posse incessante, na posse compulsiva, ou seja, em um desdobramento infinito das próprias necessidades e dos meios de satisfação dessas necessidades que, contraditoriamente, garantem a produtividade social também ao infinito, porque torna a sociedade altamente produtiva; ou, de outro lado, vai se perder na impossibilidade de apropriar, na indigência, na penúria de não ter objeto, não poder ter o pão, não poder ter a cama, não poder ter a casa, não poder, não poder, não poder. De qualquer maneira, é uma situação pervertida que vale pelo seu contrário e não pela sua intenção.
“Quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho” diz Marx, “tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criados em face dele mesmo”. O mundo de objetos fica poderoso e ele cada vez mais pobre. Tanto no que se refere à sua vida interior quanto no que se refere à sua auto-estima. Sua vida interior se torna cada vez mais pobre e ele cada vez se pertence menos a si mesmo.
E a relação com a natureza? A relação com a natureza também vai ficar comprometida com isso. Por quê? Porque, não podendo esculpir a sua imagem e não podendo se apropriar dos objetos e se encontrar nos objetos, porque o puro ter não dá para ele essa identidade, a liberdade desse sujeito, desse trabalhador se reduzirá, diz Marx, “a exercer as funções animais: beber, comer e procriar”.
Vocês poderiam argumentar, e o próprio Marx argumenta, o homem não consegue exercer, no nível puramente animal, nem a função de beber, nem a função de comer, nem a função de procriar. Mas acontece que o homem, alienado de si e despojado da sua imagem, realiza abstratamente essas funções. Então, ele come como um animal, bebe como um animal e procria como um animal.
É claro que aí existe uma visão pejorativa do animal, porque ele come muito pior do que o animal, exatamente por não ser animal. Ou seja, o animal come abstratamente, para matar a fome, enquanto que o ser humano, no pleno uso de suas potencialidades espirituais, jamais come apenas para matar a fome. Um ser humano, no pleno uso de suas potencialidades espirituais pode ser o mais primitivo dos homens, que no ato, no exercício mais imediato da satisfação da necessidade básica está simbolizando, ou seja, está incorporando conteúdo espiritual.
E sabemos disso porque o recém-nascido reproduz isso; o recém-nascido recebe, simultaneamente, os conteúdos internos do seu ser, que vai se formando junto com as primeiras sugadas que dá no seio materno.
Dizer que ele realiza abstratamente é dizer que realiza a coisa de uma forma desvinculada desse seio afetivo, desse tecido afetivo que é o único possível para que o homem possa ter uma relação plena com essa exterioridade que é a natureza, e que é o seu meio de subsistência, é o seu meio provedor, é a sua grande diferença, e é o palco, o cenário onde ele vai buscar se encontrar, buscar a sua imagem, para poder dialogar ou comunicar essa imagem com os outros homens e encontrar os outros homens nessa imagem que ele projeta de si mesmo.
Vocês já devem ter experimentado isto. Um desenho que a gente faz, uma modelagem que a gente faz, uma música que a gente toca, e que a gente se colocou. A gente olha para o outro para ver se o outro nos reconheceu lá e olha para o outro de alegria e satisfação porque acabamos de reconhecer o outro lá também. É uma possibilidade de comunicação que surge exatamente disso.
O trabalho alienado seria esse trabalho que se caracteriza por essa perversão do sentido da criação humana. O trabalho, no sentido pleno estaria ligado à construção do ser do homem, como eu disse, ou seja, à criação, à criatividade. Trabalho é “poiesis”, é poesia. Poiesis é um termo que é usado tanto para a natureza quanto para o ser humano.
A natureza, para o grego é “poiética”, ou seja, é produtiva, ela produz, é abundante. Vocês já viram como as unhas-de-vaca e as azaléias estão, na cidade, explodindo, em pleno inverno? A beleza? Isso é poesia. Isso é poiesis. A natureza não mede, é absolutamente generosa. Tem outra também, não sei se é ipê, os ipês roxos, os ipês rosas. Estamos em pleno inverno com os ipês roxos, rosas, azaléias e unhas-de-vaca explodindo por todos os cantos da cidade. Realmente é uma poiesis. Então, a poiesis existe no nível da natureza, mas também no nível do ser humano. O que é poiesis no nivel da natureza? É produção de vida. A natureza, em mim, é poiética, é poética. Se ela não estiver doente, produz vida, muita vida.
E o que posso estabelecer como analogia para a poiesis humana? O que a poiesis humana vai produzir para fazer jus a essa poiesis natural, a essa poesia natural? Como vou ser poeta, no sentido humano da palavra, para estar à altura da poesia da natureza? O que vou fazer? Vou produzir significações, vou produzir significados, linguagem. E produzo linguagem com toda a expressão do meu ser. Quanto mais conseguir me colocar no mundo e conseguir estabelecer, nessa colocação, uma linha que permita um encontro, uma confraternização com os outros homens, seja através do meu imaginário pregresso, da minha memória, da memória do meu povo, do imaginário do meu povo, que eu canto, ou através das obras que faço, ou das coisas que transmito, seja de que maneira for que cada homem faça este trabalho de significação, ele está criando. Está criando fora dele e, quanto mais cria fora dele, mais constrói dentro dele próprio.
Aí, acontece com ele um fenômeno no nível do simbólico muito análogo ao que acontece no nível da vida natural: quanto mais uma planta, por exemplo, desabrocha, quanto mais mudas você tira dela, mais bonita ela fica. Quer dizer, quanto mais o homem coloca de si no mundo, mais conteúdo interior ele vai adquirindo.
E é exatamente esse o sentido vinculado à vida. Trabalho é a forma humana de fazer jus à vida, é a forma humana de produzir, não no sentido de criar objetos reificados, simplesmente, mas no sentido de criar significações. Significações que se desdobram indefinidamente. Há uma reverberação infinita das significações humanas, e isso é belíssimo.
Por quê? Porque, a partir do momento em que alguma coisa é feita, você não controla mais, não detém mais. Porque aquilo, naquele momento, teve um significado para você, a pessoa que olha já vê outra coisa. Daí a dez anos, seu filho mais novo descobre aquilo e já dá outra significação; a outra geração que vem dá outra significação. E a gente escava as grutas pré-históricas e descobre coisas que estão lá há milênios e milênios; e as significações não cessam de acontecer.
Essas significações não visam apenas a desenterrar um significado primeiro, mas a fazer com que ele reverbere, com que ele dê linha à espinha dorsal da nossa história, a continuidade do nosso ser através do tempo e faz com que a gente se identifique nessa linha evolutiva da humanidade e que a gente se sinta justificado no mundo.
É essa a condição do trabalho. O trabalho equivale, na vida humana, ao que a vida faz na natureza. Então, é realmente a melhor ligação, a melhor conexão possível. Não podia existir outra mais perfeita do que a que vocês pensaram para mim. E não podia existir tema mais bonito do que o que vocês me deram: trabalho e vida.
Agora vamos tentar pensar um pouco isso.
Por que será que o homem tem que trabalhar? O animal está envolvido com o processo vital de uma maneira imediata. Se eu perguntar para vocês: a abelha trabalha? O que vocês responderiam? Ela trabalha? Só antropomorficamente, faz mel, gostoso, é uma operária, uma mão de obra gratuita. A formiga, tão laboriosa, será que ela trabalha? Podemos empregar esse termo metaforicamente, mas na verdade, nem a formiga trabalha e nem a abelha trabalha. Agora, podemos colocar esses animais, antropomorficamente, a trabalhar para nós. Põe uma canga no boi, faz com que ele se torne uma força de trabalho. Pode obrigar a abelha a ficar produzindo indefinidamente o mel e tira o excedente. Ou, talvez pela própria lei da natureza já haja esse excedente para que outros animais possam, em uma economia de trocas da própria natureza, se beneficiar com esse excedente, entre eles até o homem.
Mas o sentido de trabalho não existe aí. Porque o que a abelha faz, o que a formiga faz, é uma coisa instintiva, ou seja, é uma continuação, um prolongamento do seu próprio ser. O seu ser não se acrescenta, o seu ser se desdobra.
Dá para ver a diferença? O trabalho acrescenta o que sou ao que não sou, acrescenta o que não sou ao que sou. Ele dá uma dimensão virtual para o meu ser. Enquanto que a atividade puramente instintual é um desdobramento... (corte).
... grande essência, a essência nuclear do trabalho é a novidade. Por isso que ele é, fundamentalmente, criativo. É por isso que a repetição, por exemplo, esse ensino escolar repetitivo, é uma perversão no sentido do trabalho, do labor humano.
A natureza desdobra algo que já existe e tem seus ciclos, a sua regularidade, os seus determinismos. E é dentro desses ciclos e desses determinismos que ela se improvisa e que vai, na individualidade, na especificidade de cada aqui e de cada agora, de cada nascer do sol e de cada flor que desponta, de cada animal que nasce, é que ela vai improvisar a sua criação. Mas tudo dentro desse ritual, dessa dimensão cíclica.
O homem não. O trabalho dele o coloca diante do desconhecido que ele é. Ele tem que se reinventar a cada instante, ele tem que se improvisar.
Aí é que vem a grande judiação de uma sociedade meramente produtiva. Ela retira exatamente isso da condição do trabalho, porque vai imprimir ao trabalho uma segunda natureza, ou seja, os grandes ciclos burocráticos da produtividade. Então, o trabalho, em vez de obedecer ao tempo da criação vai obedecer ao tempo da produção ou ao tempo de consumo. Ele vai ser amarrado por uma segunda natureza, ou seja, uma natureza forjada de acordo com uma determinação da vida que ultrapassa qualquer exigência de formação da humanidade do homem. Isso é uma pena, porque o trabalho vai perder exatamente a sua essência.
Então, ele é criativo, é construtivo. Então, está intimamente ligado não apenas à essa sobrevivência básica – a matar a fome, o frio, a sede –, mas também está ligado à construção do universo interior, à formação de conteúdos interiores, como eu disse, e que chamamos de memória. O trabalho é responsável pela consolidação da memória.
Vocês já repararam como a nossa memória social é pior que memória de galinha? Que a sociedade capitalista, a sociedade de consumo, a sociedade pós-industrial tem pouquíssima memória? Ela tem muitas formas de registro, muitas, sofisticadíssimas. Tem tudo computadorizado, ela pode registrar todos os acontecimentos, microfilmar, colocar na memória do computador. Isso não significa memória no sentido criativo da palavra.
A única coisa que pode nos proporcionar memória é a elaboração do nosso ser, é a construção do nosso ser. É isso: você trabalha uma relação, cada sorriso no rosto da pessoa desta relação tem uma história, toda a sua vida pregressa está estampada naquele olhar, naquele sorriso. Você tem memória ali.
A memória está intimamente associada ou vinculada à dimensão do trabalho. O trabalho cria a memória. Sem esse sentido pleno de trabalho, esse sentido criativo de trabalho, dificilmente você teria condição de consolidar a memória.
Então, memória seria o quê? O que estou chamando de memória? Mais do que simplesmente registro, acontecimentos, acumulação. A memória seria uma aprendizagem. E que aprendizagem? Em que sentido ela seria aprendizagem? Como vou dizer que é uma aprendizagem? Porque exatamente a cada momento eu me surpreendo, a cada momento tenho que me reconhecer. Cada momento meu me obriga a uma reavaliação de todos os momentos anteriores. Então, ele estabelece uma conexão, um pacto, um vínculo indelével, indestrutível com tudo que fui.
Se me repito, saio fora da temporalidade interna da minha consciência, fico subjugada à temporalidade externa dos acontecimentos, só, mais nada. Então, não há porque eu ter memória, basta que eu registre as coisas no calendário, na agenda e ponto final.
É interessante isso, como é importante a memória, porque é a partir da memória, da possibilidade de resgatar as coisas, de reinventar as coisas, de reavaliar os acontecimentos e de compreender o passado infinitas vezes, que é magnífico isso. Só para fazer isso vale a pena viver.
Você poder olhar o passado e dizer: “gente, mas aquele dia, puxa vida; eu não tinha percebido isso. Mas é bom demais”. Mas, por que não percebi antes? Porque não estava preparada. Uai?! Mas não estava preparada – vivi o acontecimento? Pois é, por incrível que pareça, agora estou preparada para perceber, captar uma essência desse acontecimento que estava lá, virtualmente me esperando como uma semente guardada nas areias do deserto, esperando o momento das chuvas para poder transbordar, desabrochar. Estava guardado lá aquele sentido virtual, lá no passado.
Lá? Onde está meu passado? Lá? Num lugar? Numa caixa? Aqui. O meu passado está aqui na minha possibilidade de re-significá-lo. Por isso o fato de conservar a memória está intimamente vinculado à minha possibilidade de renovar meu passado.
Depois de ter vivido “n” experiências em seguida àquela, retorno àquela com um olhar que me permite descobrir alguma coisa nela que não tinha visto. E essa coisa nela, que não tinha visto é a razão de ser do meu presente e é a riqueza do meu presente. É o meu ser hoje. O meu ser hoje é poder compreender o meu passado assim, assado, dessa maneira, de outra maneira.
Então, o trabalho, a elaboração, está vinculado a essa produção de memória, a essa produção do que estou chamando de vida interior.
(Pergunta inaudível)... quando você fala exercício da memória, você quer dizer a capacidade de memorizar, de guardar coisas, de registrar coisas?
Mas você está falando de decorar?
Tem um filósofo que faz uma distinção entre a memória como repetição, registro, e a memória como lembrança, como rememoração, reminiscência. Cada um tem um exercício diferente. A repetição é um exercício de automatismo. Você pode exercitar a sua memória como registro e pode conseguir coisas incríveis. Você pode guardar uma série de coisas na cabeça, você pode fazer esse exercício. Mas ele leva a quê? A nada.
Acho que ele leva (inaudível)...
Nesse sentido sim. Mas, inclusive, inútil hoje, porque você tem instrumentos muito mais adequados. Você obriga o menino a decorar um monte de datas. Para quê? Dá um computador para ele que põe na memória do computador e, quando ele precisar, vai lá. Para que ficar torturando o menino para decorar aquela quantidade de coisas?
Inclusive, é também uma deturpação do próprio sentido de decorar. Saber de cor é saber de coração. “Cor” é coração em latim. Vocês vejam como a gente faz com as palavras.
Agora, tem outro exercício. O outro exercício é o da atenção. Aí, é diferente; é o exercício da atenção. Tem gente distraída que não se lembra de nada, mas dá vontade de bater; não se lembra de nada não é porque não tem uma cabeça capaz de guardar, é porque não tem atenção. Uma pessoa que não tem atenção é uma pessoa que está dispersa. É uma pessoa que não se concentra, que não se reúne, que não recolhe, é uma pessoa que não trabalha, cisca. Ela cisca. Ela fica ali..., o tempo todo. Faz coisas e coisas, mas não faz nada especificamente que mostre.
O exercício da atenção é um exercício de sensibilidade e afeto, de amor. Você presta atenção quando você ama. E o sintoma de que você ama é que você sente prazer em perceber, em encontrar. Então, é um exercício extremamente significante. Ninguém, em sã consciência, abre mão desse exercício. Deve ter alguma coisa...
(Comentário inaudível da platéia). Vem daí. O que o artista faz? Ele presta atenção nas coisas e depois faz sua própria improvisação.
Em sã consciência uma pessoa não abre mão desse exercício, porque ele é muito gratificante. Você prestar atenção, atentar nas coisas e perceber as diferenças, as nuances. Um bom jardineiro presta atenção nas nuances, nos matizes das flores. O horticultor dedicado vai saber: “engraçado, a folha do agrião, esse ano, ficou mais larga; o verde está diferente, está mais sedoso”. Ele vai perceber os menores nuances e vai significá-los, vai entender o que está acontecendo, qual a história que está por trás daquilo.
É um exercício de amor. É um exercício gratificante, de compreensão e de nutrição espiritual. Você se nutre, se interioriza, você ganha uma intimidade com você mesmo, ganha um conteúdo interno.
Então, esse exercício da memória não passa por ficar ali, se forçando a decorar. As coisas são guardadas porque são significativas. Por isso, elas são guardadas dentro da sua cabeça.
Falar assim: “engraçado, aquele dia que fizemos aquele piquenique, não consigo esquecer aquela cena na beira do rio”. Por quê? Porque ela é exatamente significativa, por isso não esqueço essa cena. Quem esquece uma coisa significativa? Pode esquecer temporariamente.
Então, não se trata da memória acumulativa, se trata do exercício da atenção. Aí é que vem a questão da criatividade que você colocou muito bem, que vai desenvolver essa minha possibilidade de ver as coisas sob varias ópticas, vários ângulos, de várias maneiras.
Outra questão ligada a trabalho: eu tinha uma amiga, queridíssima – infelizmente morreu – que tinha um complexo danado, se sentia culpada porque não trabalhava. Ela tinha um meio de subsistência, uma pensão que dava para ela viver, ela ficava incomodada. Achava ótimo, mas se sentia culpada. E eu trabalhando feito uma desventurada, aí é que ela ficava mais culpada ainda. A gente sentava para conversar e ela falava assim: “Sônia, mas eu penso, sento na minha cadeira de balanço e penso. Acho que faço uma coisa importante. Será que sou desocupada? Será que sou improdutiva, à-toa?”. Eu falava: “não, é diferente. Existe uma diferença entre improdutividade e ócio; você é uma pessoa ociosa”. E ela ficou felicíssima. “Está ótimo, então não preciso me preocupar mais.” Não, não precisa se preocupar mais não, boba, aproveita que você está ociosa, e aproveita bastante.
É diferente. Realmente se faz uma diferença – a sociedade de consumo, sobretudo, a sociedade calcada na produtividade –, entre trabalho e inatividade. O trabalho é produtivo, a inatividade é improdutiva. A sociedade tem que ter reservas para a manutenção de uma improdutividade incontornável e é, geralmente, impiedosa com a improdutividade em geral.
Impiedosa com os velhos. Impiedosíssima com os velhos. Exatamente. E, no entanto, o velho, numa sociedade calcada, por exemplo, no poder da memória, pode não estar fazendo coisas, mas está trabalhando intensamente. Ele é altamente laborioso, porque está produzindo incessantemente a memória da coletividade, sem a qual a coletividade não vive. Então, ele é valorizado.
(Pergunta inaudível)...
Acho que é um exemplo muito interessante este que você está colocando, porque acho que o Japão é realmente uma civilização, uma cultura contraditória, desconcertante. Porque ela tem as duas características muito fortes. Ela é uma sociedade altamente tecnológica, está num nível altíssimo. Inclusive as previsões futuras colocam o Japão como a potência que vai dominar o mundo. E, ao mesmo tempo, é uma cultura calcada na tradição.
Agora, acho que as duas coisas não estão organicamente ligadas. É como se fossem dois níveis de realidade, mas fortíssimos.
E você tem razão. Tudo que é criativo na cultura japonesa – que não é simplesmente a produção mecânica, a produção do engenho, da técnica – tem uma carga imensa da memória ancestral, milenar. Você pega a arte japonesa, inclusive a arte contemporânea, os pintores contemporâneos; você pega as músicas japonesas; o filme japonês é belíssimo; é um negócio de uma força, de uma intensidade! A língua é trabalhada também com intensidade.
Então, realmente, você tem razão, é isso mesmo. Mas é uma coisa meio desconcertante, é uma contradição. Não sei como ela vai se resolver. Porque são duas coisas muito difíceis de serem conciliadas, porque os modelos, os padrões de existência são outros. E o padrão urbano do Japão e o padrão pós-industrial. Não é o padrão da tradição. Não sei como fica.
Mas, voltando à questão do ócio... a sociedade divide o que é ativo e inativo. Essa divisão do ativo e do inativo é típica de uma compreensão já deturpada do trabalho. É como se o trabalho fosse só a atividade. Não tivesse o momento da meditação, o momento da introspecção, o momento da parada, da ruptura, da lacuna.
Assim como as significações valem tanto pelo que se diz quanto pelo que não se diz, assim como a poesia fala pelas entrelinhas, a atividade se complementa visceralmente com a inatividade, com o ócio, ou seja, com uma disponibilidade, como se fosse com bolsões, com aberturas que ela vai criando dentro dela para não se tornar uma compulsividade desenfreada, que é mais ou menos o que a gente vê.
(Comentário inaudível)...
Engrenar como? Explica o que você esta perguntando?
(Pergunta inaudível)...
Você perguntou: uma pessoa que traz, registrado no seu corpo, uma memória penosa do seu próprio trabalho, será que ela pode resgatar uma memória restauradora, recuperadora do seu ser? Quer dizer, simultaneamente a uma recuperação física, ela pode resgatar uma recuperação simbólica do seu trabalho? É isso?
É. Acho que aí a questão é um pouco difícil, Rosa, porque, para resgatar uma coisa, é necessário que ela tenha existido. Você não pode inventar o que não existiu. E muitas vezes, aquele que vem até vocês é um sujeito que foi acidentado por um trabalho mecanizado, automatizado, compulsivo, alienante, e não por um trabalho criador.
É um momento até de parada.
(Comentário inaudível)...
É. Talvez funcionar nesse sentido de criação de um espaço. Mas, isso implica também uma tramitação social, institucional. Não é uma coisa que você possa fazer no nível da sua relação individualizada com a pessoa, com o acidentado. É uma coisa que a instituição tem que assumir também. Essa possibilidade dele voltar e encontrar ali uma gratificação, ou seja, uma indenização humana.
Se ele não pode resgatar o outro lado da moeda, quem sabe ele pode ser indenizado? Mas não no sentido indenizado materialmente apenas. Porque ele deveria ser indenizado materialmente. Ele deveria ser, e muito bem indenizado. O mutilado pelo trabalho deveria ser muitíssimo bem indenizado. Em país desenvolvido, ele é.
Agora, além disso, como ele vai ser indenizado espiritualmente? Abrindo uma comporta de gratificação que possa dar para ele, num outro nível, uma coisa que ele perdeu no nível de cá. Porque é muito terrível.
Acho que o mutilado por um trabalho maquinal, por mais inconsciente ou por mais inocente que ele esteja, por mais crítico que seja, deve dar uma sensação de pobreza mesmo, de exaustão interna. Deve ser muito difícil. Psicologicamente muito difícil. Acredito que deva ser tão ou mais que o mutilado de guerra.
Acho que o trabalho que vocês desenvolvem com essas pessoas, pensando nesses aspectos, ganha uma dimensão gravíssima, muito importante. Mas não saberia te responder como fazer isso dentro da instituição que a gente tem, que se aproveita de uma greve, por exemplo, para fazer economia. Aproveita-se de uma greve do INPS para fazer economia nos cofres públicos. Realmente é difícil responder a isso.
(Comentário inaudível)
Revolta é um sentimento positivo de afirmação de vida que, se puder ser trabalhado, ou seja, se puder ser transformado com uma relação com o mundo...
(Comentário inaudível)
Desligado por quê? Porque, se ligado, dói demais... desligam-no.
Mas, estava falando que, na verdade, se você considera o sentido criativo de trabalho, o ócio esta dentro. O ócio é uma disposição. A gente usa a palavra disposta, fala assim: “arrumei uma pessoa para fazer o serviço; ela e disposta, você precisava ver”. Quer dizer, disponível. A disponibilidade faz parte do menor entusiasmo que você tem do trabalho. E o ócio é precisamente isso: essa disponibilidade.
Você pode ter a disponibilidade meramente manual e pode ter uma disponibilidade inteira. Quando você está engajada numa coisa, você é inteiramente disponível. Quando não está, não precisa pelejar que dali não sai.
Seria preciso fazer uma realimentação. É necessário para você realimentar as energias, é necessário para você fruir, é necessário para você contemplar.
Leiam o texto bíblico: Deus trabalhou sete dias. Ele para toda hora. Vocês já repararam como Ele para? Toda hora, Ele para, descansa um pouquinho, olha as coisas. Ele descansa mesmo para valer no sétimo, mas Ele dá umas paradas, olha, fala que está bom. Fala: “está bom”. Continua. Daí a pouco, olha de novo, vê que está bom; “é, ficou bom”. Continua.
Você tem que fruir, você tem que se encontrar naquilo que você faz. Se não, não dá. É o ócio. Essa realimentação, essa fruição, esse prazer de retirar prazer do trabalho.
(Comentário inaudível). O prazer? O ócio.
Claro, se amadurecer é aumentar os canais de fruição do viver, é claro que tem que aumentar com a idade. Uma das vantagens de ficar mais velho é poder sentir mais prazer nas coisas.
Então, é interessante que, ideologicamente há uma dicotomia. O trabalho está vinculado a quê? A dever. E prazer está vinculado a quê? A não trabalho, a lazer, a ficar à-toa, a não fazer, a não agir, à inatividade. Lazer é fruição. E o lazer está intimamente associado ao operar, ao agir, ao atuar, ao dinamismo. Não tem que estar separado. O que separa é uma dicotomia ideológica, ou seja, tendenciosa, que atende aos interesses que não são os interesses de quem está vivendo a separação.
Vejam como a coisa vai mais fundo: ligar o trabalho ao dever é ligar o trabalho à culpa, à culpabilidade. Então, o trabalho vira castigo. Eu trabalho porque sou culpado e tenho que ser castigado para depois que ficar bem castigado, aí morro e vou para o céu. Aí, fico à-toa, olhando, olhando. Aí, não vai é saber ficar à-toa: como faz? Pois é, como faz? Aí, vai ser o inferno. Ficar à-toa. É igual marido, domingo, dentro de casa, andando para baixo e para cima. Nós, lá no céu, à-toa, aquele inferno, não tem nada para fazer. Então, essa ligação é uma ligação ideológica.
* Conferência pronunciada aos profissionais do Centro de Reabilitação Profissional do INSS. Belo Horizonte, 12 de julho de 1989. Revisada por Paulo R. A. Pacheco.
2 comentários:
Excelente texto! Tb estava procurando por ele... que bom encontrá-lo aqui. Obrigada.
Obrigada. Quero mais! O mundo pra mim se divide entre as pessoas que conheceram Sônia e as outras... Se alguém mais tiver áudio me ofereço pra transcrever. Abraços Moema (nave599@hotmail.com)
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