domingo, 11 de julho de 2010

Educação: sabedoria humana e sabedoria de Deus

Pelo Cardeal Jean-Louis Tauran

Publicamos a conferência que o cardeal presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso proferiu no dia 21 de junho passado, por ocasião da reunião, em Beirute, do Comitê científico internacional Oasis. A conferência, dedicada ao tema "Cristãos e muçulmanos diante do desafio da educação", está, ainda hoje, disponível na newsletter da fundação Oasis (www.oasiscenter.eu).

Immanuel Kant afirmava que o homem se torna homem apenas através da educação. Ensinar significa transmitir um saber, uma arte, uma técnica, uma série de habilidades diversas. Educar significa empenhar-se no garantir o desenvolvimento de todas as faculdades (físicas, intelectuais e morais) da pessoa. Ensinar, portanto, é sempre educar, mas educar não equivale automaticamente a ensinar! O que é essencial na educação é tornar cada indivíduo capaz de enfrentar, em particular através da cultura, sozinho ou com outros, os desafios que a sua existência pessoal ou coletiva lhes propuserem.
O artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos do Homem fala de um "direito à instrução". Tal direito é mencionado também nos artigos 10, 13 e 14 do Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais. Estes artigos reconhecem os seguintes princípios: a família como "elemento natural e fundamental da sociedade" ao qual cabe o provimento da "manutenção e da educação dos filhos que dela dependem" (artigo 10); o objetivo da educação é o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do seu senso de dignidade, e o reforço do respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (artigo 13); é tarefa da educação tornar cada um capaz de assumir um papel útil em uma sociedade livre e "favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e os grupos raciais, étnicos ou religiosos", contribuindo assim para a paz (artigo 13).
As mesmas ideias estão contidas na Convenção sobre direitos da infância (artigos 23, 28, 29, 40). Se educar é transmitir valores e saberes, o seu vínculo com a religião é evidente e absolutamente natural. De fato, também as religiões ensinam, educam, transmitem: dogmas, livros sagrados, liturgia. Geralmente, elas chamam a atenção ao respeito da pessoa humana, ao respeito dos seus bens (materiais ou morais), além da proteção da natureza... Mesmo se nos dias de  hoje os valores das religiões não são sempre considerados como valores fundamentais, eles inspiram muitos projetos de sociedade, e os crentes, mesmo nos lugares em que são minoria, constituem, porém, minorias que agem e que contam.

Religiões e modernidade
Diria que, hoje, nos encontramos diante de duas crises fundamentais. Uma é a crise da inteligência. Estamos super informados, mas sabemos raciocinar? O rumor, a mobilidade, a selva de mensagens virtuais nos submetem a um verdadeiro e próprio estresse. Muitos encontram dificuldades para organizar os seus conhecimentos. Domina a regra do "tudo e já", a tal ponto que aquilo que se chamava "vida interior" se tornou uma raridade.
A segunda é a crise da transmissão geracional. Os valores familiares, morais e religiosos não são patrimônio óbvio. A ignorância em matéria religiosa cresce na sociedade ocidental. À força de dar ouvidos à famosa pichação nos muros da Sorbonne, em maio de 1968, "Proibido proibir" -, transformamos a nossa terra em uma jangada à deriva. Em uma fase na qual o nosso mundo se apresenta como um espaço globalizado e todas as culturas, nas quais em todos os cantos se encontram os traços do elemento religioso, são colocadas em discussão, não se pode deixar de lado aquela chave de leitura que é constituída da religião: sem ela não é possível compreender a consciência, a história, a fraternidade. Hoje, encontramos muitos jovens que são herdeiros sem herança e construtores sem projeto. Por isso, há quem volte a perorar pela causa do ensino da temática religiosa na escola. 

O retorno
Sob a pressão destas duas crises, assistimos a um retorno do religioso (não falo de um retorno do cristianismo). No Ocidente, os muçulmanos reclamam para si lugares de culto e visibilidade. Atos de violência e homicídios perpetrados em nome de convicções religiosas torna as religiões terríveis. Interrogamo-nos a este respeito. Quer-se saber. Tanto mais que a globalização favorece o diálogo inter-religioso. Algumas iniciativas concretas destruíram os estereótipos: penso na Festa da Anunciação que cai no dia 25 de março de cada ano, como festa nacional, aqui, no Líbano, ou na formação (não religiosa) dos imames da França, garantida pelo Instituto Católico de paris.
Daqui a algumas décadas é provável que o homem dominará a matéria inerte (o globo terrestre, para não falar dos espaços siderais). Sabemos que o domínio da matéria viva progride dia após dia. Mas quando tudo tiver sido explicado, restará ainda por saber quem é, de fato, o homem. Quando dispusermos de todos os instrumentos mais sofisticados, colocar-se-á ainda o problema de seu uso. E depois há ainda o mal e a morte. Todos nos colocamos, cedo ou tarde, sem falta, o problema do sentido e, cedo ou tarde, o "sagrado" se impõe como componente essencial da alma humana.

Os cristãos e a educação
As primeiras escolas monásticas que apareceram no continente europeu foram inspiradas em Platão e Aristóteles, para propor uma educação intelectual e uma formação moral que se fecundassem mutuamente.
Através da elaboração dos conceitos de dever e sacrifício, temperados pelo amor divino (Bergson) e pela conversão do coração, os cristãos foram conduzidos a se ocuparem da liberdade. Assim, a tensão entre liberdade, razão e verdade se colocou no centro da vida intelectual da Idade Média. Dialética e disputatio constituíam o núcleo vital da universitas medieval. Foram os clérigos da Idade Média que difundiram uma educação voltada para a totalidade da pessoa: para eles, não se tratava tanto de aprender uma profissão, mas de formar pessoas capazes de autonomia e de espírito crítico.
A educação cristã também quis ser enciclopédica (totalidade do saber humano). Os mosteiros ordenaram hierarquicamente tudo aquilo que se conhecia das coisas divinas e humanas (mais tarde, Descartes formulará a imagem da árvore do saber). Tudo isso constituía uma preparação para acolher a Revelação do Verbo e da verdade na História. Os cristãos sempre cultivaram a ambição de conciliar razão e fé: "compreender para crer e crer para compreender" (Santo Agostinho).

Muçulmanos e educação
Parece-me que se pode dizer que, para o Islã, a educação consista em uma modelação da alma que deve realizar-se desde a mais tenra idade. São transmitidos valores fundamentais para a criança: a fé e o conhecimento contidos no Corão. Quando a sua alma estiver de tal forma preenchida, não haverá mais espaço para a falsidade. É o papel assinalado à razão, o seu espaço, que diferencia a concepção cristã da educação da muçulmana.

A vida interior
Qual é, portanto, o papel específico das religiões na educação? Transmitir o gosto da vida interior. No fundo, todas as religiões dizem que "o homem não vive somente de pão". Trata-se de desenvolver a capacidade, que há em cada um, de refletir, de organizar o próprio pensamento, de raciocinar (de se servir da razão para conhecer e julgar). "Toda a infelicidade do homem deriva de uma só coisa: o não saber estar tranquilo em um quarto", já escrevia o meu compatriota Pascal. Promover, além do mais, a consciência da própria identidade: o homem é a única criatura que interroga e se interroga. A única que busca "o sentido do sentido" (segundo a fórmula de Ricoeur). O homem se revela a si mesmo como um mistério, o mistério daquilo que ele é, das suas potencialidades, do seu lugar no universo e é, por isso, seu revelar-se a si mesmo como mistério, que a dimensão religiosa aparece inevitavelmente no horizonte.
As religiões favorecem uma pedagogia do encontro. Ajudam a viver a diferença no respeito. Afirmando a minha identidade, descubro que a pessoa que está diante de mim possui igualmente uma identidade, muito diferente da minha. Elas facilitam a aceitação da pluralidade, sustentando, no quadro da família, a mistura das gerações, e promovendo na escola a atenção aos ensinamentos da história e, portanto, às contribuições das diversas civilizações.
Para terminar, as religiões contribuem para a garantia do respeito da pessoa humana e dos seus direitos. Cada um de nós é único, cada um é sagrado. Por isso, ouvimos, aprendemos a exprimir as respectivas identidades não com os punhos e as armas mas com argumentos racionais e razoáveis.

Um desafio comum
Consideremos a juventude no seu conjunto. No âmbito cristão: nas sociedades ocidentais, os jovens frequentemente vivem o cristianismo como uma forma de deísmo mas recentemente aquelas que são chamadas "as novas comunidades" têm dado vida a forma de espiritualidade que produzem uma prática cristã mais motivada e mais missionária, e o afirmar-se de um desejo de receber uma formação doutrinal completa.
No âmbito muçulmano: não se pode não ficar tocado com a visibilidade da prática religiosa, com o modo no qual a religião impregna todas as dimensões da vida de um muçulmano, comunitária e pessoal. Todavia, sublinha-se o fato de o clima de indiferença produzir, entre os muçulmanos jovens, algumas consequências: o secularismo do ambiente pode impulsionar a uma afirmação da identidade religiosa agressiva; o mesmo secularismo pode conduzir ao abandono de todas as práticas religiosas.
É desejável que constatações deste gênero induzam cristãos e muçulmanos a rivalizarem em iniciativas: no nível das elites, estimulando o desejo de se conhecer e se reconhecer. Visto que o diálogo não pode se fundar nas ambiguidades, a educação mostra aqui a sua função fundamental. Os jovens de hoje (cristãos e muçulmanos) deveriam dialogar num plano de igualdade. Por isso, deveria ter as mesmas possibilidades de aceder ao ensino das religiões assim como deveriam conhecer a religião dos outros (é este o problema da religião na escola). As autoridades religiosas deveria ser melhor informadas sobre as outras religiões, de forma a abater os temores e promover um enriquecimento recíproco, compartilhando o melhor das várias tradições espirituais. Não se trata de fazer concessões no terreno da verdade, mas conhecer aquilo que temos em comum. Este conhecimento profundo do outro pode acontecer em vários campos, como o da literatura e da música, para chegar a um aprofundamento da cultural bíblica, corânica, teológica.
Desta maneira, o encontro cuja finalidade é o diálogo permite agir juntos pelo bem comum. Todos juntos podemos agir pelo bem da família, da escola, da Universidade, da empresa.
Não deveria ser impossível, a partir de hoje, que os chefes religiosos cristãos e muçulmanos sensibilizem os legisladores e os professores acerca da oportunidade de fixar regras de conduta como: o respeito pela pessoa que busca a verdade diante do enigma do humano; o senso crítico que permite escolher entre o verdadeiro e o falso; o ensino de uma filosofia humanista que consinta em dar respostas humanas às perguntas relativas ao homem, ao mundo, a Deus; a valorização e a difusão das grandes tradições culturais abertas para a transcendência, que exprimem a nossa aspiração pela liberdade e pela verdade.
Todos juntos, cristãos e muçulmanos (mas eu diria: todos os crentes), temos a possibilidade de compartilhar convicções que tiramos dos nossos respectivos patrimônios espirituais e culturais: a solidariedade que induz a se empenhar a favor dos pobres e dos excluídos; a responsabilidade que nos adverte a não esquecer que responderemos diante de Deus por aquilo que tivermos feito ou omitido fazer pela justiça e pela paz; a liberdade que pressupõe uma consciência firme e uma fé iluminada (fé e razão!); a espiritualidade que chama a atenção para a dimensão religiosa da pessoa humana e ilumina por si a aventura humana; a sede de conhecimentos que torna atentos àquilo que o homem, dotado como é de uma consciência e de uma inteligência, realiza (de bem e de mal); a pluralidade que nos solicita a nos considerarmos diferentes mas iguais, recusando todas as formas de exclusão, particularmente aquelas que invocam, para se justificarem, uma religião ou uma convicção. Podemos fazer todas estas afirmações porque cremos que o homem e a mulher, em todos tempo e em todas as circunstâncias, tenham uma dignidade inalienável e tenham direito à liberdade, ao respeito da sua pessoa e também a uma existência decente.

O patrimônio do homem
A educação no sentido mais amplo da palavra não pode ser avara quanto à dimensão religiosa da pessoa humana. O ensinamento científico e técnico nas últimas décadas se desenvolveu de maneira exponencial assim como as matérias ditas humanistas (filosofia, história, literatura) se tornaram marginais na transmissão cultural. Mas os povos da terra acumularam, por milênios, um patrimônio artístico e literário que é comum a toda a humanidade e que sempre exprimiu crenças religiosas (não existe civilização que não tenha voltado suas atenções para a presença do religioso).
Nós, os cristãos, sabemos que Deus quis fazer-Se conhecer pelo homem em Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Mas, sabemos também que Deus age no coração dos crentes de outras religiões, como o é em cada pessoa humana. Eis porque todos juntos, no respeito às nossas especificidades e nossos itinerários, temos o dever de purificar a nossa memória, não para impor mas para indicar o sentido a ser atribuído para a aventura humana. O homem, encarregado a gestão do planeta, o homem capaz das maiores descobertas, este homem "carnal" é também o mesmo homem que se organiza para levar socorro a todas as vítimas de todas as violências e das catástrofes naturais. Mesmo no meio de todas as contradições da história, o homem é capaz de generosidade! Cristãos e muçulmanos, unamos os nossos esforços para que, no futuro, nunca faltem aqueles homens e aquelas mulheres que, graças a sua coragem, a sua doçura, a sua perseverança, sejam capazes de purificar a sua memória e o seu coração, de modo a agir para que a sabedoria humana se encontre com a sabedoria de Deus. E se fosse essa a educação?

* Texto extraído do L'Osservatore Romano, do dia 07 de julho de 2010 (p. 6). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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