Por Luca Montecchi
A tradição dos estudos sobre a linguagem que se constituiu na Europa centro-ocidental desde o século XVII, com o seu racionalismo analítico aplicado ao estudo da gramática – conhecido como “logicismo” –, não prestou um grande serviço para a educação, especialmente a linguística, das crianças e dos jovens. A famosa, ou famigerada, “análise” gramatical, lógica, do período, imperou nas escolas francesas e, depois, nas alemãs e italianas, até há bem pouco tempo, impondo aos estudantes a ideia de que apenas depois da pontual decomposição dos elementos constituintes de uma frase, isto é apensa depois da análise cuidadosa, é que se pode dar a síntese – que equivale à compreensão lógica de um inteiro reconstruído depois da desconstrução.
Ninguém aqui quer duvidar do aspecto instrutivo e, até mesmo, formativo da prática analítica: ela induz ao discernimento, ao respeito (lógico) das diferenças, às gradações e às hierarquias dos planos; não é amiga, porém, da unidade sólida, do desenvolvimento de uma representação visual das coisas e das ideias, confinada ao restrito olimpo da mente culta não por causa da experiência sensível. Mas – e isso é o que mais conta –, a síntese nunca é o produto da análise, pelo contrário: esta é subordinada àquela, visto que o acontecimento do conhecimento, na medida em que é gradual, é sempre sintético, em virtude da natureza de sinal da realidade tanto física quanto imaterial.
Que a realidade seja sinal não é uma proposição abstrata ou um a priori da mente crédula: é razoável evidência que se atesta exatamente nos particulares. O particular, de fato, não exaure, por sua natureza, a necessidade de interesse e de significado que exprime, mas precisa de um significado ulterior a que, na verdade, se refere. É a mesma experiência que nos ensina a colocar as coisas em relação entre si, a estabelecer nexos, analogias, descobrir vínculos secretos (porém, nunca arbitrários ou mágicos) entre os objetos e as dimensões da vida, já que o homem não suporta a fragmentaridade como condição lógica e existencial permanente. E é sempre a experiência quem confirma que o detalhe, a especificidade, a analiticidade de tantos conteúdos didáticos é recebida tanto melhor quanto mais se mostra o nexo com tudo: a sua funcionalidade em relação ao todo e, ainda mais, a sua relevância e profundidade.
Uma longa premissa para declarar com quais olhos (e sem quais óculos) saboreei a lectio com a qual me comparei. O profundo, o imaginativo, o multiforme Pável Florenski é, como sempre, agudo ao empregar e calibrar os termos, mostrando a continuidade apenas parcial entre a lectio medieval e a “aula” [em italiano, se diz lezione, de forma que fica muito mais evidente a comparação que o autor quer fazer entre a "lectio" medieval, ou seja, a forma de se pensar a aula na Idade Média e a "lição" moderna, ou a forma como se pensa a aula contemporaneamente; ndt]. E sobretudo é genial quando declara, sem reticências ou rodeios que a aula – típica do gênero didático-literário – é um “ato de criação que se manifesta em todos os detalhes da... estrutura”. Com o que o linguista, cientista e teólogo ortodoxo declara precisamente que as palavras, que são parte mesmas do mundo real, têm um corpo (e uma alma) a descobrir, um peso semântico que nos constitui modificando a nossa autoconsciência e aprofundando a nossa capacidade de ação incidente (mas não subversiva) sobre o mundo.
Ao mesmo tempo, talvez em virtude da sua forma mentis de observador curioso e de mestre e, ainda mais, de crente que não encontra solução de continuidade entre fé e ciência, Florenski revela a grande distância que o separa do racionalismo linguístico francês ou do positivismo da filologia alemã, como também da nascente e afortunada teoria lingüística geral de Saussure, que olhava para a língua como se olha para um “sistema” puro de sinais impessoais, um código fechado que contém todos os potenciais significados das proposições humanas.
A posição assumida por Florenski é ao mesmo tempo antiga – clássica e medieval – e avançada: é a ideia de texto como lugar de possíveis significados que o autor executa numa relação ativa e interpretativa com a realidade. É a ideia de “ação lingüística”, que, movida por uma intenção amiga e curiosa ou problemática e interrogativa quanto ao outro de si, faz-se logos, discurso razoável que tem como objetivo dar-se conta e permitir dar-se conta da descoberta daquilo que existe. Se a realidade é criada, o texto é o ato – linguístico – que coopera com a criação, é invenção que revela o sentido das coisas, é, finalmente, participação para a comunidade dos homens da novidade entrevista.
Um texto é, porém, irredutível a “documento”, é muito mais um crisol de nós, de referências, de inferências, de imprevistos. É também o êxito documental de um processo lógico e afetivo e, ao mesmo tempo, o processo mesmo, no qual intervêm acontecimentos externos à mente do autor que interpelam a sua liberdade ou, se se quer, interpelam a sua capacidade hermenêutica. Não é por acaso que o relacionamento entre “o livro de texto e a aula” é exemplificado pela proporção análoga que se institui entre “o mecanismo e o organismo”: exato como um relógio ou um computador, o primeiro dos dois termos responde a um plano geral estabelecido pelo pensamento; a aula, pelo contrário, livre das fórmulas racionais fechadas, “como o ser vivo, desenvolve os próprios órgãos, respondendo, a cada vez, às exigências que se manifestam ao longo do tempo”.
O recurso insistente de Florenski a imagens representativas para restituir ao leitor a ideia o mais livre possível de aula – uma conversa, um passeio, livre da obsessão da meta programada – revela muitas coisas: 1) um genuíno e incansável desejo de indagar, de inspecionar o mundo com seu mistério incessante, sem outras restrições senão à negação da evidência ontológica e à manipulação da pessoa; 2) o seu (de Florenski) ser, de fato, além, bem além das barreiras epistemológicas que separam as “duas culturas”: um apenas, infinito e próximo, é o mistério da natureza, de tal forma que o olho do matemático e o olho do poeta se fundem num mesmo olhar; 3) uma vivacidade (enérgeia) do conhecer não apenas dentro do homem, mas compartilhada com todos aqueles que concorrem conosco na busca pela verdade ou, ainda melhor, no surpreendê-la nos detalhes que, continuamente, caem sob nossos sentidos, “como o vento que nunca para”.
Estamos nas antípodas do paradigma kantiano de ciência denunciado pelo filósofo francês Fabrice Hadjadj em A terra, estrada para o céu: “A ciência se reduz a uma fantasia, e a sua validade se mede através da coerência interna do seu discurso ou através da sua eficácia técnica. Não existe mais nenhuma verdade, já que é impossível se referir a uma realidade externa, mas apenas a uma multiplicidade de perspectivas, de solilóquios isolados, onde as palavras não desvelam e, pelo contrário, envolvem as coisas como um sudário nos carros fúnebres que são os nossos crânios”. Uma ciência assim não pode ser atraente para um jovem que deseja saber como as coisas são de verdade.
De minha parte, como professor e diretor já há bastante tempo, não posso não me identificar com a visão “larga” que Florenski dá acerca da aula, que eu definiria como “percurso da razão compartilhada”, atribuindo a “raciocinar” a acepção original de conversar, ou seja de se mover junto com outra pessoa para encontrar um acordo. Dito de outra forma, não existe pensamento puro, cindido da palavra comunicada, trocada, com meus semelhantes, para buscar encontrar o sentido das coisas que consistem, prescindindo da minha vontade: verum e verbum são parentes próximos. A aula entendida como um texto vivo, aliás aquilo que substancialmente “se faz texto”, também ilumina de sentido o asséptico (permitam-me o trocadilho) livro de texto. Com dois esclarecimentos.
O primeiro: numa boa aula, cujo primeiro objetivo é fazer com que a audiência entenda do que se trata, não tem nada de aleatório nem de casual, nem mesmo quando o professor faz uma pausa e se prolonga ou retrocede ou abre digressões (e o fará com o devido tato), levado a incutir aquela energia cognoscitiva que o apaixona. Enfim, há, no docente, ou melhor, no mestre a diligência a afinar nos alunos aquilo a que eu chamaria de “inteligência do olhar”, que é o motor extraordinário da inteligência tout court – e tal moto perpetuo, na medida em que é esperado e solicitado, é a cada vez, para mim que ensino, um êxito surpreendente e um excedente às minhas expectativas. Sob esse ponto de vista, a aula é um texto mais rico do que um manual de escola – que, necessariamente, é depurado de todo elemento que desvie do rigoroso procedimento argumentativo –, porque realiza, através do corpo e da voz, a solda entre o intelecto e o afeto que chega ao coração, isto é, à pessoa inteira. Na educação, o sentido convencionado conferido ao célebre adágio verba volant, scripta manent, é virado pelo avesso.
Segundo esclarecimento. Nada de mais verdadeiro do que aquilo que Florenski disse acerca do efeito produzido por uma aula ou por um ciclo de aulas, ou seja o formar-se de uma autêntica mentalidade científica ou, como mais corretamente escreve o autor, “iniciar a audiência no processo do trabalho científico, introduzi-la à criação científica”. E tal resultado se obtém sem falta, quando o mestre, uma vez tendo conseguido fazer compreender a correspondência entre a coisa e o eu do aluno – o que se chama interesse –, pode, com a leveza e a liberdade contemplativa do viandante que caminha por bosques em busca de cogumelos, se debruçar sobre particulares e sobre os contornos dos objeto estudado, seja ela material (um mineral) ou invisível (um problema de direito público), confirmando-se a eficácia da sabedoria pedagógica que, desde a Idade Média, revelou: non multa (studere) sed multum – não tantas coisas, mas por muito tempo e intensamente.
Lembro-me bem de ter dado uma representação da aula unilateral ou unidirecional, a parte docentis. De repente, me corriji: a sala de aula não é um agregado de ovelhas desprovido e necessitado de um pastor que o conduza; ao contrário, é uma comunidade de pessoas únicas, originais e que não se encontra em outros lugares, com um traço distintivo que os acomuna: o desejo pelo verdadeiro que, uma vez aceso e imergido no misterioso dinamismo da descoberta e do encontro daquilo que existe mas não vemos ou ouvimos, literalmente se desencadeia numa enormidade impetuosa de perguntas, reflexões, avaliações, novas interrogações, apelos, que não dão trégua ao professor. Então, sim, a aula se transforma em um laboratório contínuo, em um work progress, que, de fato, não é possível encontrar na ficção cinematográfica, já que irreal, do mago professor Keating [o autor se refere ao professor protagonista do filme Sociedade dos Poetas Mortos; daí, inclusive, a referência a "instante fugaz" do título deste artigo, visto que a máxima que está sempre na boca do referido professor é "carpe diem"; ndt], mas se torna experiência factual, mesmo que secreta porque nunca chega à ribalta midiática, lá onde existem escolas cujos docentes aceitam sacrificar o próprio orgulho (frustrado, invariavelmente) para se disporem ao serviço do conhecimento e ao cuidado com a razão dos jovens.
Pelo caminho indicado, onde o mestre seja, de fato, alguém dedicado a compartilhar com os alunos um itinerário de studium, de amor atento e paciente pelas coisas, e tenha deixado crescer e amadurecer neles não apenas as técnicas e as astúcias dialéticas e calculadoras, mas a agudeza do olhar e as categorias de juízo, então assistiremos àquilo que os teóricos da lingüística e da semiótica chamam “efeito feedback”: a contribuição, real e não pro forma ou fictícia, que o discípulo fornece para a elaboração crítica e consciente de um saber disciplinar que super o limite escolar, faz-se ciência seriamente e, sobretudo, ajuda a construir o edifício do conhecimento, ajuda a viver com incansável confiança cada instante da vida (Que é belo ver como vai acabar...).
* Extraído do IlSussidiario.net, do di 28 de julho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.
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