quinta-feira, 8 de julho de 2010

Nós, pobres doentes de um “vírus” mortal



Entrevista com John Waters, feita por Mauro Biondi

Mauro Biondi – No seu livro Beyond Consolation [Para além da consolação; o livro, porém, foi traduzido para o italiano com o título Soggetti smarriti, ou Sujeitos perdidos; ndt], você faz uma análise muito lúcida da submissão fisiológica moderna. Dá medo ver como esta falsa realidade, a redução da realidade que você descreve, se encontra amplamente dentro de cada um de nós. Estamos totalmente imersos nisso.
John Waters – É um vírus; como um vírus de computador. A metáfora é bastante real porque é como um vírus que pegamos e que infesta nossos sistemas; é possível vê-lo mais claramente se um vírus entra no nosso sistema: começa a agir dentro da memória do computador, pode impedi-lo de fazer certas coisas, começa a forçá-lo a fazer outras coisas que não queremos, que quem idealizou o computador não tinha em mente. Entra em nós, em cada um de nós. É como se nós fôssemos receptores destes sinais, que estão todos em volta de nós, que são bombeados na atmosfera como radiação, e nós os inspiramos. Penetram através dos poros da pele, através da mente, dos olhos, de todas as partes. Cada símbolo que vemos carrega algum elemento desta mensagem e é, de verdade, impressionante pensar em como foi eficaz esta reprogramação.
Assim, quando chegamos a certas verdades sobre nós, como, por exemplo, a mortalidade que experimentamos na frágil dimensão da nossa encarnação, ficamos chocados, prostrados pela dor mais do que seria natural, porque a cultural conseguiu persuadir-nos de duas coisas contraditórias: a primeira é que esta mortalidade é definitiva, o fim de todas as coisas, e a segunda é que ela não acontece a nós, não diz respeito a nós. Nós não pensamos sobre isso; falamos deste problema com certa condescendência, mas não vamos a fundo.
A morte é reconhecida como um fato, mas apenas de modo muito reduzido, limitado, não como um fato profundo da vida. A morte é como todas as outras coisas da realidade, na medida em que nos recusamos a olhá-la nos olhos até o fundo – e às vezes é difícil entender aquilo que Dom Giussani queria dizer, quando falava da necessidade de olhar cada coisa até o fundo. Se olharmos para o jarro de leite, como podemos olhá-lo em profundidade senão simplesmente olhando para ele? Mas, no sentido cultural, isto é um problema muito real: você pode olhar algo por um dia inteiro, algo como a morte, como a doença, como a situação objetiva de outro ser humano, e não vê-la porque usa os instrumentos errados, as palavras erradas e as imagens erradas, de tal forma que você é levado continuamente para fora do caminho, ou então você entra em curto circuito, sem agarrar aquilo sobre o que precisa pensar.

Biondi – No seu livro, você descreve muito claramente a distinção entre fé e conhecimento, e como esta divisão parece se alargar na nossa experiência. Mas, ao mesmo tempo, no livro você introduz gradualmente o real “inimigo” desta cultura, capaz de resistir a ela e que, em última instância, não pode ser vencido – ou seja, a “realidade” mesma. Chesterton, usualmente, definia isso como a “teimosia das coisas”...
Waters – Entre este livro e Lapsed Agnostic há um caminho, mas não é um caminho linear, pessoalmente para mim. Por tanto tempo eu pensei que as minhas dificuldades na fé estivessem dentro de mim, mas Giussani me despertou, fazendo-me entender o que eu devia começar a buscar. E esta ideia de conhecimento, que é a aguda observação de Giussani sobre a diferença entre a nossa concepção da fé, a palavra na sua aparência cotidiana, e aquilo que ela realmente significada – é uma daquelas ideias cristalinas que, quando você chega a ela, surpreendentemente, você se dá conta de que toda a linguagem que usava para tentar realizar este caminho era supérflua, porque o caminho que estava percorrendo é uma espécie de mundo fantástico, como que em um espaço imaginário, abstrato, e não na realidade. Tudo gira em torno dessa palavra, “fé” – se você pensa que a fé seja algo a que você adere não obstante tudo, nunca chegará a lugar algum.
Isto é muito radicando na cultura irlandesa. Nós cantamos: “A fé dos nossos pais, que viveram tranquilos, apesar da prisão, do fogo e da espada”. Assim, há esse tipo de ideia fixa que, não obstante tudo, mesmo não obstante os fatos, nós “acreditamos”, o que é exatamente o oposto da fé tal como era definida por Giussani. Se pensarmos na concepção de Giussani, não faremos esforço algum para crer – uma vez que tenhamos feito o trabalho preliminar, que tenhamos entendido o método, o que não é absolutamente fácil. Mas, uma vez que tenhamos este método, devemos apenas olhar para as coisas, olhar para a realidade, não temos que mover nem mesmo um músculo ou exercitar o intelecto de alguma maneira, e é óbvio. Para mim, esta é a ideia mais difícil apesar de ser a mais simples, talvez aquela que mais se aproxima de conter ou indicar a resposta. Oferece-nos o início da explicação, porque nos permite começar a olhar a realidade de modo diferente. Fazendo isto, devemos retornar à cultura, e o truque é sermos capazes de manter o sentido da realidade absoluta sem nos descobrirmos, de novo, no coração da cultura. Não se trata, como digo no meu livro, de “atormentarmos a nossa mente para acreditar em algo”. Trata-se de manter este sentido da realidade enquanto estamos atravessando aquelas zonas construídas, pré-fabricadas, projetadas de propósito para nos arrastar novamente para o mundo artificial.
Não sei, com certeza, aonde vai dar este livro. Sou muito indeciso, porque descobri realmente, com Giussani e Carrón, nos últimos anos, que existe uma armadilha do sentimentalismo. Tão logo você consegue entender um pouquinho as coisas, e aparece a tentação de aprender toda a linguagem e, depois, hipotecar o resto para obter o tudo (para possui-lo sem, antes, fazer uma experiência dele). Aprendi que esta é uma falsa pista. Assim, em cada detalhe, me detenho até encontrar as palavras para dizer exatamente aquilo que eu penso sobre as coisas. E depois de ter lido o meu livro, tem quem me tenha dito: “você não é um católico de verdade, você não é, de verdade, isso ou aquilo. Não é um verdadeiro cristão. Não diz isso e aquilo, evita isso e aquilo”. Eu digo o que posso, aquilo do que estou certo. E daquelas coisas de que não estou certo, digo que não estou certo delas. Já tivemos suficiente consenso tribal e gente que chega às conclusões antes mesmo de ter dado o primeiro passo. Esta é a armadilha do sentimentalismo: a certeza antes da investigação.

* Extraído do IlSussidario.net, do dia 07 de julho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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