quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Abelardo e Heloísa: quando a paixão carnal dá espaço ao amor de Deus

Por Laura Cioni

Um grande amor, o de Abelardo e Heloísa, no coração do século XII, contado pelos mesmos protagonistas, segundo a tese que prevalece hoje em dia sobre a autenticidade de seu epistolário. Quando Abelardo conhece Heloísa, umas das mulheres mais inteligentes, cultas e belas da Idade Média, é já um conhecido mestre daquela escola de Paris que, em pouco tempo, daria origem à universidade. Tem um orgulho intelectual sem medidas, exerce um enorme fascínio sobre seus estudantes e goza de uma merecida fama de hábil dialético.
Fulberto, tio e tutor de Heloísa, lhe confia o cargo de instruir a sobrinha. Cargo que é como uma condenação, já que os dois, muito rapidamente, se tornam amantes, preferindo ao gosto do conhecimento os prazeres da carne. Descobertos, são induzidos a se casarem em segredo, de modo a não manchar o prestígio de Abelardo, cujo papel de mestre exige, naquela época, o celibato.
O matrimônio é realizado, nasce um filho ao qual é colocado o curioso nome de Astrolábio; mas Fulberto, não contente com a reparação tardia, se vinga da maneira mais sinistra: manda que seus sicários o castrem durante a noite. Os dois esposos são separados, exatamente no momento em que sua união é legítima: ele se refugia em um mosteiro e faz com que ela se retire em outro.
Desse momento em diante, os caminhos dos dois se distanciam. Abelardo percorre uma estrada intransitável. Já provado, e duramente, na carne, é atacado do ponto de vista da doutrina por São Bernardo, intransigente defensor da teologia monástica e as suas teses são condenadas graças também à enorme influência do seu adversário. A derrota se torna o caminho para a conversão, confortado pela amizade de Pedro, o Venerável, abade de Cluny, que o acolhe doente e lhe oferece o perdão da Igreja. 
O mesmo não aconteceu com Heloísa: não aceita o monaquismo forçado mesmo tendo se tornado abadessa do Paráclito, mosteiro beneditino dedicado ao Espírito Santo. À penitência humilde de Abelardo se opõe o drama da revolta de Heloísa, e essa diversidade percorre toda a sua correspondência. Abelardo escreve a um amigo a história das suas desgraças, não calando sobre os particulares do seu caso com Heloísa. Ela fica ressentida e rompe o silencia imposto pelas circunstâncias.
“Ao seu senhor, ou melhor ao pai, ao seu esposo, ou melhor ao irmão, a sua serva ou melhor a filha, a sua esposa, ou melhor irmã; a Abelardo, Heloísa”: dedicatória figurativa e explícita de um conflito bem distante de parecer resolvido. Rigor intelectual e precisão linguística não mascaram a luta interior. Sem falsos pudores, Heloísa revela o quanto a sua conduta no mosteiro estava longe de ser irrepreensível; o claustro desperta nela o lamento das alegrias passadas e ela pede ajuda, sim, mas sobretudo confessa desesperadamente a Abelardo a constância de sua fidelidade.
Ele responde indicando a ela a única via praticável: a da aceitação. A resistência de Heloísa não se dobra e sob a frieza das expressões com a qual ela se volta para ele pulsa um fogo ardente, se acende uma paixão intelectual  e a seu modo ética de uma mulher que não aceita o que é incompatível com sua liberdade: ser reduzida à piedosa ficção de esposa de Cristo, quando, com tudo de si mesmo, continua a ser a esposa de Abelardo.
Ele recorre, então, a um último argumento: amou nela não ela mesma, mas o seu próprio prazer; somente Um a amou verdadeiramente, morrendo por ela. Diante do Crucifixo, Heloísa cede. Abelardo morre. Pedro, o Venerável, escreve a Heloísa para informá-la e o faz com grande delicadeza. Dirige-se a ela com a honradez devida à abadessa e com o afeto por uma mulher que, agora, fica ainda mais sozinha: “Ele te será guardado pela eternidade, para poder te ser restituído”. Heloísa recebe a autorização de acolher no Paráclito os restos de seu marido e de ser sepultada ao lado dele. Para quem acredita na ressurreição da carne, isso não é igual a nada.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 05 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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