terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Deleuze e o “solipsismo incomunicável” da filosofia... ou Da morte da filosofia (Parte 2)


2) Do “solipsismo incomunicável”[1] propriamente dito
Mas, deixando de lado um pouco a querela aberta por Sokal, que se avance rumo a uma compreensão da proposta deleuzo-guattariana, em Qu’est-ce que la philosophie?. Fique claro, porém, o quê de intencional da introdução deste texto: mais que abrir as vias de uma discussão sobre a filosofia da ciência, apontar o caráter monológico dessas assim chamadas filosofias relativistas “pós-modernas”[2], seus riscos e conseqüências.
Chegado à velhice e ao “tempo de falar concretamente”[3], Deleuze, na introdução da obra, buscando dar apenas um vislumbre do que seja a filosofia, escreve: “La philosophie ne contemple pas, ne réfléchit pas, ne communique pas, bien qu’elle ait à créer des concepts pour ces actions ou passions”[4]. Deixando claro o caráter “criador de conceitos” da filosofia em contraposição à qualquer contemplação, reflexão ou comunicação.
Mas, o que são “conceitos”[5]? A fim de responder a essa pergunta, segue-se sucintamente um itinerário conforme proposto pelo próprio Deleuze: 1) os conceitos se firmam em determinado(s) plano(s) por partes de outros conceitos que, antes, serviam a também outros problemas e habitavam outros planos, de forma que se pode dizer que eles têm uma história feita não só de passado, mas também de devir (o conceito “a” moderno usado para definir e solucionar e descrever um problema específico, no passado era designado como “α” e servia em um plano de imanência particular; modernamente, o mesmo conceito “a” permite, no plano de imanência a que pertence, a conjunção entre outras partes conceituais de um mesmo plano); 2) os conceitos são formados por partes que também podem ser definidas como outros conceitos, num dinamismo que não pára (para explicar o conceito “a” é preciso fazer uso de conceitos tais como “A”, “á”, “À” etc., que, por sua vez, são outros conceitos que precisam de outros tantos conceitos para serem definidos e assim amiúde); 3) possuem endo-consistência, na medida em que os elementos que compõem um conceitos são inseparáveis (se a conjunção “A”+ “á” + “À” é usada para designar “a”, se não há endo-consistência, pode ocorrer que “A”+ “á” + “À” se confunda com “b”); 4) possuem também exo-consistência, dado que um conceito isolado num plano determinado, bem como isolado de outros planos de imanência, diz pouco, é pouco útil (“a” precisando de “A” para se definir, e “A” pertencendo ao plano Y diferente de X a que pertence “a”, obriga que “a” construa uma ponte entre X e Y); 5) de (3) e (4) se conclui que os conceitos são a conseqüência da “condensação”, “acumulação” e “conexão” de e entre seus elementos, numa construção de sentido, de consistência; 6) o conceito é auto-referente, ou seja, não se refere a nada exterior a ele (aos fatos, por exemplos, ou ao status quo, a não ser que seja para denunciá-los) apenas aos acontecimentos, que nada mais são que a consistência mesma do conceito.
Seria essa auto-referencialidade a responsável por esse “solipsismo incomunicável” da filosofia de Deleuze?
Antes de responder a essa pergunta, uma outra se impõe: “pourquoi faut-il créer des concepts, et toujours de nouveaux concepts, sous quelle nécessité, à quel usage? Pour quoi faire?”[6]. À criação de conceitos cabe um papel evenemencial: não lhe interessa dizer a coisa em-si ou sua essência universal (já que a “coisa em-si”, a “essência” e o “universal” são apenas criações de uma história que fez da filosofia objeto seja do capitalismo, seja da religião, que só pensam através de figuras), mas sim descrever o acontecimento que se efetua num status quo determinado, numa imanência. Ao que tudo indica, a “utilidade” da filosofia é se configurar como um certo belo altruísmo pedagógico que se lança contra as alturas da “encyclopédie”[7] e contra o desastre absoluto da “formation professionnelle commerciale”[8]. Nova pergunta se faz, daí: a auto-referencialidade da filosofia deleuzo-guattariana não estaria, portanto, na esteira daqueles que viram alimentados os seus preconceitos ideológico no artigo de Sokal? “Abaixo o capitalismo universal”: não seria a palavra de ordem escondida nas entrelinhas “vaporosas e sombrias”[9] do texto deleuzo-guattariano? “Conceitos”, “planos de imanências”, “personagens conceituais”, “geofilosofia”: (pseudo) panóplia reivindicatória e culturalista-panfletária que levanta a voz contra o pensamento submetido, dogmático, pretensioso, capitalista, pós-iluminista, patriarcalista, elitista e outros “istas”? “Pop filosofia”[10]?
Auto-referencialidade, reivindicação etc.: é muito pouco, no entanto, designar assim a filosofia conforme proposta por Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que la philosophie?. É preciso dizer mais e – por mais difícil que seja! – evitar toda “filosofia do martelo” gratuita contra a obra deleuzo-guattariana.
Que se diga, portanto: criar conceitos é criar sentido num plano de imanência (imagem do pensamento e seus movimentos infinitos), permanecendo neste último, ou seja, não buscando referência ulterior ao seu território. Os conceitos são rizomas (diferente de raízes, que são verticalizadas) que realizam conjunções horizontais num mesmo plano ou fora dele (desde que perpetre a construção de sentido): o importante é que não exista uma junção vertical, ou seja, uma junção com uma realidade acima, sobrenatural, mística, hierarquicamente superior, qualquer que seja; o importante, segundo Deleuze e Guattari, é evitar todo o transcendentalismo escolástico e permanecer na imanência, que impede a figuração, o pensar por imagens, a busca de verdades superiormente fora do plano. A filosofia é, finalmente – nesse sentido –, um jogo de coerência da linguagem, ou “um jogo de conceitos com consistência em seus devires”[11], que não busca a Verdade, mas cria conceitos; que não se ocupa de um ponto de fuga, mas do caótico dos infinitos pontos de fuga. A filosofia, resumindo,

consiste na criação de conceitos em um plano de imanência com o objetivo de fugir da busca da verdade, da fundamentação última; a filosofia como experimentação se preocupa com sua consistência, coerência, auto-referência e produção de sentido no plano de imanência[12].

Evidentemente, a postura mais justa diante do que diz Deleuze (e diante do que diz qualquer filósofo, seja escolástico, cartesiano, iluminista, moderno ou pós-moderno) não pode ser a de “temor reverencial”, “fanatismo”, “bajulação intelectual” ou “idolatria”: é preciso ter claro, sim, o valor de crítica que um tal pensamento traz consigo, de subversão mesma de uma imagem corrente do pensamento (mais que pós-iluminista, positivista), no entanto, Deleuze não pode ser lido como uma espécie de mensageiro da verdade absoluta (como tantos filósofos franceses são lidos no Brasil: como é comum ver estudantes andando com Les Écrits de Lacan, debaixo do braço!).
Não se pode esquecer também toda a discussão de Deleuze e Guattari acerca das produções artística e científica: filosofia, arte e ciência se ocupam de criar; no entanto, a cada um dos saberes a sua criatura: à filosofia, o conceito; à arte, os afectos e perceptos; à ciência os functivos. A filosofia trabalha com planos de imanência, a arte com planos de composição e a ciência com planos de referência. A filosofia opera por meio de personagens conceituais, a arte por figuras estéticas, a ciência por observadores parciais. O filósofo traz do caos as variações infinitas, o artista traz as variedades e o cientista as variáveis independentes. Conceitos e mais conceitos desfilam no texto deleuzo-guattariano (e aqui a crítica de Sokal começa a ganhar consistência), tornando-o obscuro, hermético (?) e monológico:


A auto-referencialidade do conceito produz uma atitude anti-comunicativa, anti-discursiva em favor de um monólogo do conceito; e, também, fortifica o discurso filosófico deleuziano contra os juízos, pois o que podemos falar daqueles que não se preocupam com a busca e construção de verdades? O pensamento deleuzo-guattariano não pode ser caracterizado como uma fraude, visto que ele é totalmente coerente com o seu projeto: tratar o pensamento como experimentação, criação e viagem. Filosofar é criar e não participar de um encontro de “convivas bêbados”, de uma “grande conversação”. Para realizar essa experimentação, Deleuze e Guattari se alimentaram da “potência do falso”[13].


Notas:


[1] Utiliza-se, aqui, a expressão de Olavo de Carvalho (1995) quando, criticando a ciência, sentenciou: “a Ciência fecha-se num solipsismo incomunicável” (Em O Jardim das Aflições, p. 192). “Solipsismo” ou “egoísmo metafísico” ou “egoísmo teórico”: trata-se de uma espécie de idealismo que reduz a idéias (conceitos) não só as coisas, mas também os espíritos; é a idéia de que só eu existo e de que toda a realidade circundante nada mais é que uma idéia minha. Do ponto de vista da teoria do conhecimento (aquela adotada pelo positivismo lógico) é um ponto de partida importante mas que, se levado às últimas conseqüências leva a absurdos lógicos e teóricos importantes... até o ponto de dizer que a realidade física não existe.
[2] Além de Sokal, Scola (1998) também define, segundo ele usando as próprias palavras de Deleuze, essa filosofia de “pós-moderna”. Cf. o texto de Angelo Scola – “La politica e la dimensione etica” –, no Web Site http:// www.patriarcato.venezia.it/ patriarca/ scritti%201998/ politica.htm#_ftnref9.
[3] Deleuze, G. e Guattari, F. (1991). Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Les Éditions de Minuit, p. 7.
[4] Ibid., p. 12.
[5] Cf. Ibid., pp. 21-37.
[6] Ibid., p. 14.
[7] Ibid., p. 17.
[8] Ibid., p. 17.
[9] Ibid., p. 150.
[10] Como é definida a filosofia de Deleuze por Guareschi (2001). Cf. Guareschi, M. (2001). Gilles Deleuze Popfilosofo. Milano: Shake Edizioni Underground.
[11] Costa Leite, A. F. B. (2002). Auto-referência do Conceito e Solilóquio da Filosofia. Consciência.org, s.p.
[12] Ibid., s.p.
[13] Ibid., s.p.

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