domingo, 10 de maio de 2009

Cartas do P.e Aldo 50


Asunción, 31 de outubro de 2008.

Caros amigos,
Esta noite, antes de começar a Escola de Comunidade, senti uma necessidade enorme de pedir que cantassem “Povera voce di un uomo che non c’è...” ("Pobre é a voz de um homem que não existe..."; trata-se de uma canção de Adriana Mascagni, nascida do carisma de Comunhão e Libertação; ndt)... Porém, quando chegamos no fim – “la nostra voce deve gridare, deve cantare perché la vita c’è” e “tutta la vita chiede l’eternità” ("a nossa voz deve gritar, deve cantar, porque a vida existe" e "toda a vida pede a eternidade"; ndt) – senti um nó na garganta, porque poucos instantes antes eu tinha celebrando a Santa Missa na clínica, no quarto onde jazem: Andrés (um rapaz de 22 anos que pesa 15 kg, com o corpo todo enrolado como um novelo), que não tem uma única posição na qual eu o veja bem, porque ele não tem sequer uma parte do corpo normal (Hermano, o Coxo – espero que muitos se lembrem dele, se não sugiro que leiam “Santi”, de Martindale – era uma obra de arte comparado a Andrés) e Celeste, a garota destruída pela leucemia e que estava à beira da morte, já que seus pais, por causa da pobreza, nunca tiveram consciência. Tão logo comecei a Missa, chegado à primeira leitura, Celeste, como um trovão, abre a boca gritando de dor. Um grito terrível, sufocante. O meu coração, na verdade, todos os dias presta contas com este grito que parece revelar sempre que ela não dá conta. Enquanto a enfermeira lia, eu escutava apenas o grito divino de um novo Jesus morrendo na cruz. Passavam-me pela cabeça as palavras do Gius na Escola de Comunidade, quando fala da obediência, do seguir, do conteúdo do seguimento, da razoabilidade do seguir. Aquelas palavras, particularmente quando comenta o capítulo 6 de São João e a relação de Jesus com o Pai, do Getsêmani à cruz... Palavras que me ajudam a viver com grande razoabilidade aquele grito, porque me ajudava a ficar certo de que aquele grito, como o de Jesus, são para a minha salvação, a salvação de vocês e do mundo. Se eu não tivesse a Escola de Comunidade (se muitos para os quais eu escrevo não são de CL, quando me escreverem me perguntem... explicarei com muito prazer o que é a Escola de Comunidade) não poderia ter as razões para enfrentar estes dramas que, há quatro anos, vivo dia e noite. Terminada a leitura – sim ou sim – eu deveria me levantar para ler o evangelho... mas não conseguia. Não conseguia falar, nem as palavras de Deus. Eu queria estar ali, acorrentado ao seu lado... beijá-la e fazer-lhe um carinho... porém, a Missa tinha que continuar. No momento do ofertório, com o pão e o vinho, ofereci Celeste ao Pai, por todos nós. Mas, o drama tinha apenas começado, porque, chegado à consagração, enquanto pronunciava as palavras de Jesus sobre o pão e o vinho, e, em seguida, enquanto levantava o cálice dizendo “fazei isto em memória de Mim”, Celeste explodiu em um grito fortíssimo e lacerante que invadiu a Clínica inteira. O médico de plantão e as enfermeiras correram... a enésima dose de morfina... mas os gritos continuavam. Eu me sentia como Nossa Senhora aos pés da cruz com Jesus, como diz o evangelho: “deu um grande grito e expirou”. Aquele “grito” de Jesus podia ser visto naquele cálice que eu levantava e naquele grito cheio de dor de Celeste. Naquele momento, tudo – Celeste e a Missa – era uma única cena: a do Calvário.
“Pobre voz... mas, agora, deve gritar, deve cantar porque a vida existe”. Deixo a vocês imaginarem o que foi, para mim, para todo o grupo de Escola de Comunidade... não era a leitura de um livro, era o Acontecimento de alguns minutos antes que falava, que explicava. Agora, sempre, para mim, a Escola de Comunidade é assim e, por isso, não posso ficar sem ela... não conseguiria suportar esta cruz, este grito, este tormento com os milhares de “por quê?”, de perguntas. Ah, meu Deus! Se todos vivessem assim a Escola de Comunidade... tudo seria diferente, porque se comunicaria apenas aquilo que é verdadeiro para si e, portanto, verdadeiro para todos e, além do mais, experimentaríamos como é verdade que a Escola de Comunidade é a carne da nossa humanidade.
“A nossa voz canta com um porquê”. O grito de Celeste era, de fato, a verdade deste porquê. O seu grito é para a minha salvação e a de vocês. E isto é o cêntuplo, porque o cêntuplo é o homem que grita, que reconhece, consciente ou não, o Mistério. Digo “consciente ou não” porque mesmo os meus pequenos filhos doentes – que, para o mundo não têm consciência –, pertencendo ao corpo místico de Deus, Cristo, a têm!
Um outro fato que me aconteceu. Ontem de noite, como faço todas as noites, fui à clínica dar um beijo de boa noite nos doentes. Antes, por volta das 20h30, vou colocar os meus 14 filhinhos da Casinha de Belém 2 – a mais cheia, e que tem 4 bebês – para dormir. Cada noite é um espetáculo: “papai, papai, vamos rezar!”, e como anjinhos se colocam de joelhos no chão e, depois de um beijinho, todos vão para a cama. Voltando para a Clínica, depois de ter ido à Casinha de Belém, fico ao lado de Victor, Aldo e Cristina. Victor é como alguém com febre muito alta... mas não geme, apesar das chagas de decúbito atrás da cabeça e apesar de a parte superior da cabeça, cheia d’água, ser sustentada apenas por uma pele que substitui o crânio que não existe. Depois, vejo o rosto de Cristina, que sofre. É pequena – tem apenas um ano e meio –, é surda e quase cega. No entanto, com os seus olhos pretos, belíssimos, segue os meus movimentos. Quase não me vê, mas o contato físico certamente é capaz de sentir. Por causa das convulsões, acontece, às vezes, que ela morde a língua e aparece, então, um pouco de sangue nos lábios que precisam ser limpos continuamente. Olhos os três ali, sozinho, e penso nas crianças da idade deles que, na mesma hora, estão dormindo com o carinho e a ternura de seus pais. Eles porém têm apenas a mim e às enfermeiras que fazem o possível por eles. Encho-os de beijos e de carinhos para que durmam.
Agora, os três estão dormindo: olhos-os e continuo a rezar. Parece-me que estou no paraíso com os anjinhos. Penso em Jesus quando diz: “deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o reino dos céus”.
Já estava indo embora quando se aproxima de mim a mulher de um doente grave de AIDS: “padre, peço-lhe a permissão de ir ao mercado central para trabalhar descaroçando milho. Cada saco de 50 kg descaroçado me rende dois mil Guaranis (um Euro é igual a cinco mil e oitocentos Guaranis) e, em uma noite, eu consigo descaroçar até 15 sacos. Padre, me dê a permissão, porque hoje um dos meus filhos veio me dizer que está há dois dias sem comer”. Olho para ela e o meu coração explode ao ver as suas lágrimas. Peguei então a minha carteira, mas ela me disse: “Não, Padre... o que o senhor me dá já é demais... eu quero trabalhar e ganhar o que merecer”. Suplico a ela que aceite... e, finalmente, a assumi como lavadeira. Ela ficou radiante de alegria.
Giussani, na Escola de Comunidade, no capítulo sobre a obediência, na parte onde deseja Bom Natal, fala do cêntuplo como o verdadeiro êxito. Descobrir-me a cada dia comovido é exatamente o êxito, o cêntuplo. De tal forma que começar os dia às 4h45 e terminar às 23h30 não é um peso, mas um cêntuplo, um uso novo do tempo, que, para mim, cada vez mais se torna o alvorecer da eternidade.
Fui dormir com o coração cheio de paz. Ainda que tivesse o coração rasgado pelos gritos de Celeste, pela solidão dos meus muitos filhinhos (de quem eu sou o pai e a quem eu gostaria de dedicar mais tempo), pela dor de Victor, Cristina e Aldo que, com Celeste, são o coração do meu hospital... onde ainda hoje morreu um homem. A morte... mas que bela! Porque me ajuda a entender que a dor é uma condição momentânea de hoje. Ela, de fato, me levará definitivamente ao meu Jesus.
Rezem pelos meus moribundos. Rezemos pelos meus santos e pelos meus mortos, já que estamos quase em Novembro e a Igreja nos lembra, junto com os 4 Novíssimos (morte, juízo, inferno e paraíso) que a cena deste mundo é destinada a desaparecer, para deixar lugar ao que é eterno.
Obrigado pelas orações de vocês.
Um abraço
P.e Aldo
* Na foto, a pequena Cristina.

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