terça-feira, 26 de maio de 2009

A experiência da família: uma beleza para reconquistar

Encontro organizado pelo Centro Cultural de Milão
em ocasião da Semana da Cultura 2009, da Diocese de Milão.

A experiência da família: uma beleza para reconquistar
De Julián Carrón

Um novo início
A família está, nos últimos tempos, no centro do debate público. A tentativa de regular novas formas de convivência diversas do matrimônio concebido como relacionamento definitivo e fecundo entre um homem e uma mulher desencadeou uma apaixonada discussão. Não é algo de totalmente novo, mas o cume de um processo começado há anos.
Este debate colocou em evidência, por um lado, que toda a propaganda de uma mentalidade contrária, através da mídia (cinema, televisão, jornais), mesmo tendo à sua disposição meios tão potentes, não impediu que tantas pessoas continuem a fazer uma experiência positiva da família. Diante deste impressionante uso das forças midiáticas e ideológicas, pareceria inevitável que a família perdesse o interesse. Pelo contrário, há um fato que somos constrangidos a reconhecer quase com surpresa: este impressionante aparato demonstrou-se incapaz diante da experiência elementar que tantos de nós viveram na própria família, a experiência inextirpável de um bem. Um bem do qual somos gratos e que queremos transmitir às futuras gerações, para partilhá-lo com elas. Mas, por outro lado, este bem experimentado não conseguiu bloquear socialmente as tentativas de transformar o matrimônio em outras formas diferentes. A isto é preciso acrescentar um dado não menos significativo: este processo começou quando a maior parte das leis sobre o matrimônio defendia a concepção tradicional derivada do cristianismo. Todas essas leis não impediram o alargamento de uma mentalidade contrária ao matrimônio, não deram conta de conter a mudança.
Como isso pode ter acontecido? Como é possível que a clareza a que havíamos chegado acerca do matrimônio e que havia sido confirmada nos séculos, em tão pouco tempo, tenha sido colocada em discussão de um modo tão generalizado? Tentar entender a situação que estamos vivendo me parece particularmente decisivo para poder responder a essas perguntas.
Na sua última encíclia – Spe Salvi –, Bento XVI ofereceu uma chave de leitura para entender o que está acontecendo, quando afirma que “um progresso adicional é possível apenas em campo material. Aqui, no conhecimento crescente das estruturas da matéria e em correspondência com as invenções sempre mais avançadas, se dá claramente continuidade ao progresso em direção a um domínio cada vez maior da natureza. Porém, no âmbito da consciência ética e da decisão moral não existe uma possibilidade similar de crescimento, pelo simples motivo de que a liberdade do homem é sempre nova e deve sempre, novamente, tomar as suas decisões. Essas decisões nunca são tomadas para nós, por outros – em tais casos, de fato, não seríamos mais livres. A liberdade pressupõe que, nas decisões fundamentais, cada homem, cada geração seja um novo início” [1].
Novo início. Será difícil encontrar uma expressão mais adequada para descrever o presente. Se cada momento é um novo início, exatamente porque tem no meio a liberdade, o nosso será propriamente um novo início porque aquilo que era transmitido pacificamente de uma geração a outra não existe mais. É um novo início porque não se pode dar por óbvio nada daquilo que até bem pouco tempo atrás era claro para todos. É preciso começar do início.
Olhando bem para a nossa situação, nos damos conta de que não é muito diferente daquela do início. Basta recordar a reação dos discípulos quando ouviram Jesus falar sobre o matrimônio. “Naquele tempo, se aproximaram dEle alguns fariseus para colocá-Lo à prova e Lhe perguntaram: ‘É lícito a um homem repudiar a própria mulher por algum motivo?’. E Ele respondeu: ‘Vós não lestes que o Criador, no princípio, os criou homem e mulher e disse: por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne? Assim, não são mais duas, mas uma só carne. Aquilo, portanto, que Deus uniu, o homem não deve separar’. Disseram-Lhe, então, os discípulos: ‘Se esta é a condição do homem em relação à mulher, não convém se casar’” [2]. Não devemos nos surpreender, portanto. A mesma coisa que a tantos dos nossos contemporâneos, hoje, e tão frequentemente a nós mesmos, parece impossível, parecia também aos discípulos.
Isto não quer dizer que nada do que se aprendeu ao longo dessa história milenar sirva, mas quer dizer que esta riqueza acumulada não se transmite mecanicamente. Prossegue, de fato, o Papa: “Certamente, as novas gerações podem construir sobre conhecimentos e sobre experiências daquelas gerações que as precederam, assim como podem chegar ao tesouro moral da humanidade inteira. Mas podem também refutá-lo, porque ele não tem a mesma evidência das invenções materiais. O tesouro moral da humanidade não está presente como estão presentes os instrumentos que se usam; ele existe como convite à liberdade e como possibilidade para ela” [3]. A transmissão, no campo moral, não é tão fácil de acontecer, porque os seus conteúdos não podem ter a mesma evidência das descobertas científicas. O tesouro moral é um convite à liberdade. Por isso, devemos parar de sonhar “sistemas de tal forma perfeitos que mais ninguém teria necessidade de ser homem” [4]. Isto serve, antes de mais nada, para que não sejamos diferentes dos outros. Dolorosamente, constatamos como, entre nós, existem tantos amigos que não conseguem estar inteiros diante das numerosas dificuldades externas e internas por que atravessam. E quanto a nós, não é suficiente conhecer a verdadeira doutrina sobre o matrimônio para resistir a todos os desafios da vida. O Papa nos lembrou disso: “as boas estruturas ajudam, mas sozinhas não bastam. O homem nunca pode ser redimido simplesmente de fora” [5].

Ganhar o eu outra vez
Como pode acontecer este novo início desejado por Bento XVI? O caminho não pode ser diferente daquele sugerido por Fausto, de Göethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, ganha-o outra vez, para possui-lo” [6]. Para ganhar outra vez, é preciso voltar à origem da experiência amorosa, a fim de redescobrir a sua verdadeira natureza. Somente esta experiência pode ser ponto de partida adequado para poder colher de dentro dela o valor da proposta de Cristo ao amor entre dois esposos.
Os esposos são dois sujeitos humanos, um eu e um tu, um homem e uma mulher, que decidem caminhar juntos em direção ao destino, em direção à felicidade. Como impostam o seu relacionamento, como o concebem, depende da imagem que cada um tem da própria vida, da realização de si. Isto implica uma concepção do homem e do seu mistério. Afirma ainda o Papa: “a questão do justo relacionamento entre homem e mulher afunda suas raízes na essência mais profunda do ser humano e pode encontrar a sua resposta apenas a partir disso. Não pode ser separada da antiga e sempre nova pergunta do homem sobre si mesmo: quem sou? O que é o homem?” [7].
Por isto, a primeira ajuda que se pode oferecer àqueles que querem se unir em matrimônio é o tomar consciência do mistério do seu ser homens. Somente desta forma poderão focar a sua relação, sem esperar dela algo que, por sua natureza, ninguém pode dar ao outro. Quanta violência, quanta desilusão poderiam evitar no relacionamento matrimonial, se fosse compreendida a natureza da pessoa!
Esta falta de consciência do destino do ser humano conduz o homem a fundar todo o relacionamento sobre um engano, que pode, sinteticamente, ser formulado assim: a convicção de que o tu possa tornar o eu feliz. O relacionamento do casal, deste modo, se transforma em refúgio, tão desejável quanto inútil, para resolver o problema afetivo. E quando o engano se manifesta, é inevitável a desilusão, porque o outro não realizou a expectativa. O relacionamento matrimonial não pode ter outro fundamento diferente da verdade de cada um dos seus protagonistas.
Como eles podem descobrir a sua verdade, o mistério do seu ser homens?

A dinâmica do novo início: beleza, sinal, promessa
É a mesma relação amorosa que contribui, de maneira precípua, para descobrir a verdade do eu e do tu; e junto com a verdade do eu e do tu se manifesta a natureza da vocação comum. O que somos nos é revelado de maneira evidente na relação com a pessoa amada. Nada nos desperta mais, nada nos torna tão conscientes do desejo de felicidade que nos constitui, quanto a pessoa amada. A sua presença é um bem tão grande que nos faz colher a profundidade e a verdadeira dimensão deste desejo: um desejo infinito. Pode-se aplicar, por analogia, ao relacionamento amoroso aquilo que Cesare Pavese disse sobre o prazer: “o que o homem procura nos prazeres é um infinito, e ninguém renunciaria à esperança de alcançar este infinito” [8]. Um eu e um tu limitados suscitam, um no outro, um desejo infinito e se descobrem lançados do amor que têm um pelo outro em direção a um destino infinito. Nesta experiência se revela a ambos a própria vocação.
E no mesmo momento em que se revelam a nós mesmos as dimensões sem limites do nosso desejo, nos é oferecida uma possibilidade de realização. Mais ainda, entrever na pessoa amada a promessa de realização acende em nós todo o potencial infinito do desejo de felicidade. Por isso, não existe nada que nos faça compreender o mistério do nosso ser homens melhor do que o relacionamento entre um homem e uma mulher, como nos lembrou Bento XVI na encíclica Deus caritas est: “o amor entre homem e mulher, no qual corpo e alma concorrem indivisivelmente e ao ser humano se abre uma promessa de felicidade que parece irresistível, emerge como arquétipo [...], diante do qual, à primeira vista, todos os outros tipos de amor perdem a cor” [9]. Neste relacionamento, o ser humano parece encontrar a promessa que lhe faz superar o próprio limite e lhe permite alcançar uma plenitude incomparável, já que “na raiz de toda a realidade viva existe a esponsalidade. E é a esponsalidade que torna tudo promessa, como a própria palavra o diz: esponsal quer dizer uma realidade promisssora, que promete” [10]. Por isso, a história da humanidade – mesmo nas suas diferentes expressões – sempre instituiu uma relação entre o amor e o divino: “o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente outra se comparada à cotidianeidade do nosso existir” [11].
Trata-se exatamente da experiência que, de modo insuperável, expressa Giacomo Leopardi no seu Hino a Aspásia: “Raio divino ao meu pensamento aparece, Mulher, a sua beleza” [12]. A beleza da mulher é percebida pelo poeta como um raio divino, como a presença do divino. Através da beleza da mulher é Deus que bate à porta do homem. Se o homem não compreende a natureza desse chamado e não se arrisca a acompanhá-lo, dificilmente pode compreender profundamente o próprio destino de infinito e de felicidade.
A mulher, com o seu limite, desperta no homem, também ele limitado, um desejo de plenitude desproporcional à capacidade que ela tem de responder a ele. Suscita uma sede que ela não tem condições de extinguir. Suscita uma fome que não encontra resposta naquela que a despertou. Daqui nasce a raiva, a violência, que tantas vezes surgem entre os esposos, e a desilusão na qual caem se não compreendem a verdadeira natureza do seu relacionamento. A beleza da mulher é, na realidade, raio divino, sinal que remete a algo além, a outra coisa maior, divina, incomensurável, como descreve Romeu no drama de William Shakespeare: “Faz-me ver uma mulher que seja belíssima entre todas as outras; a beleza dela será apenas, para mim, como uma página onde lerei a beleza daquela que supera tudo com sua beleza” [13]. A sua beleza grita: “Não sou eu: eu sou apenas um lembrete. Olha! Olha! O que eu lembro a você?” [14].
É a dinâmica do sinal, da qual o relacionamento entre homem e mulher se constitui em um exemplo comovente. Quanto mais eles vivem a presença do amado como sinal de outro – que é a verdade do amado –, tanto mais esperam e gritam por este outro.
Se não compreende esta dinâmica, o homem cai no erro de parar na realidade que suscitou o desejo. Como se uma mulher que recebe um buquê de flores e, tomada pela sua beleza, se esquecesse do rosto de quem as mandou, e de quem são sinal, perdendo o melhor que as flores produziam. Não reconhecer no outro o seu caráter de sinal conduz inevitavelmente a reduzi-lo àquilo que aparece aos nossos olhos. E, cedo ou tarde, se manifestará a sua incapacidade de responder ao desejo que suscitou.
Por isso, se cada um não encontra aquilo a que o sinal remete, o lugar onde pode encontrar a realização da promessa que o outro suscitou, os esposos estarão condenados a serem consumidos por uma pretensão da qual não conseguirão se libertar, e o seu desejo de infinito, que ninguém como a pessoa amada desperta, estará condenado a permanecer insatisfeito. Diante desta insatisfação, a única via de saída que, hoje em dia, tantos veem é mudar o casal, dando início a uma espiral na qual o problema apenas é mandado para frente, até o momento em que virá a próxima desilusão.
Mas, entrar nesta espiral não pode ser a única via de saída. Este é o paradoxo do amor entre homem e mulher: dois infinitos se encontram com dois limites; duas necessidades infinitas de serem amados se encontram com duas frágeis e limitadas capacidades de amar. E somente no horizonte de um amor maior não se consomem na pretensão e não se resignam, mas caminham juntos em direção a uma plenitude da qual o outro é sinal. Somente no horizonte de um amor maior se pode evitar o consumir-se na pretensão, carregada de violência, de que o outro, que é limitado, responda ao desejo infinito que desperta, tornando possível, assim, a realização de si e da pessoa amada. Para descobrir isso é preciso estar dispostos a seguir a dinâmica do sinal, permanecendo abertos à surpresa que esta pode reservar-nos.
Leopardi teve a coragem de correr este risco. Com uma intuição penetrante acerca do relacionamento amoroso, o poeta italiano entreviu que aquilo que buscava na beleza das mulheres pelas quais se apaixonava era a Beleza, com letra maiúscula. No vértice de sua intensidade humana, o hino à sua mulher exprime todo o seu desejo de que a Beleza, a ideia eterna da Beleza, assumisse uma forma sensível. É o que aconteceu em Cristo: o Verbo se fez carne. Por isso, Luigi Giussani definiu esta poesia como “uma profecia da Encarnação” [15].
Neste contexto, pode-se compreender a inaudita proposta de Jesus para que a mais bela experiência da vida – o apaixonar-se – não decaia até se tornar uma coisa sufocante.
Esta é a pretensão de Jesus, que encontramos em algumas passagens do evangelho, que, à primeira vista, podem parecer paradoxais. “Não acreditai que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada. Vim, de fato, para separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra: e os inimigos do homem serão aqueles de sua casa. Quem ama o pai e a mãe mais que a mim não é digno de mim; quem ama o filho ou a filha mais que a mim não é digno de mim; quem não toma a sua cruz e não me segue não é digno de mim. Quem tiver encontrado a sua vida, a perderá: e quem perdeu a sua vida por minha causa, a encontrará. Quem acolher a vós, acolherá a mim, e quem acolher a mim acolherá Àquele que me enviou” [16].
Neste texto, Jesus se apresenta como o centro da afetividade e da liberdade do homem. Colocando a si mesmo no coração dos mesmos sentimentos naturais, coloca-se a pleno direito como a raiz verdadeira dos sentimentos. Dessa maneira, Jesus revela o alcance da promessa que a sua pessoa constitui para todos aqueles que o deixam entrar. Não se trata de uma ingerência de Jesus no nível dos sentimentos mais íntimos, mas se trata da maior promessa que o homem já recebeu: sem amar a Cristo (isto é, a Beleza feita carne) mais que a pessoa amada, este último relacionamento resseca, porque é Ele a verdade deste relacionamento, a plenitude à qual remetem um e outro e na qual a sua relação se realiza. Somente se permitimos Sua entrada nesse relacionamento será possível que o relacionamento mais belo que pode acontecer na vida não se corrompa e, com o tempo, morra. Tal é a audácia da Sua pretensão.
Como Jesus respondeu ao susto dos discípulos diante da verdade sobre o matrimônio que estava anunciando? Podemos dizer com uma fórmula: fazendo o cristianismo. Ele não parou no anúncio da verdade do matrimônio, mas introduziu uma novidade nas vidas deles que permitiu viver o matrimônio segundo aquela verdade.
Que esta novidade seja algo assim real e correspondente à natureza do homem se vê no fato de que sobre ela se pode apostar com certeza toda a vida. É isso que a tradição cristã chama de virgindade.

Matrimônio e virgindade
À reação assustada dos discípulos sobre a natureza original do matrimônio, que vimos antes, Jesus opõe uma frase que pode parecer ainda mais enigmática: “Ele lhes respondeu: ‘nem todos podem compreender isso, apenas aqueles a quem foi concedido compreender. Há eunucos que nasceram assim do ventre de suas mães; há os que foram tornados eunucos por homens; e existem outros que se fizeram eunucos pelo reino dos céus. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça’” [17].
Nestas palavras, Jesus acrescenta uma nova categoria de eunucos àquelas já conhecidas: aqueles que se fazem eunucos pelo reino dos céus. Obviamente que se trata da escolha livre de renucia ao casamento que fazem aqueles a quem foi concedido reconhecer o valor único do reino dos céus. Comentando este trecho, João Paulo II disse o seguinte: “no chamado à continência ‘pelo Reino dos céus’, primeiro os próprios Discípulos e, depois, toda a Tradição viva, descobriram rápido aquele amor que se refere a Cristo mesmo como Esposo da Igreja e Esposo das almas, às quais Ele deu a Si mesmo até o fim, no mistério da Sua Páscoa e na Eucaristia. De tal modo, a continência 'pelo Reino dos céus’, a escolha pela virgindade ou pelo celibato por toda a vida, se tornou, na experiência dos discípuulos e seguidores de Cristo, um ato de resposta particular ao amor do Esposo Divino e, por isso, adquiriu o significado de um ato de amor esponsal, isto é, de uma doação esponsal de si, com o fim de retribuir de modo especial o amor esponsal do Redentor; uma doação de si, entendida como renúncia, mas feita, sobretudo, por amor” [18].
À luz disso se compreende o que é a virgindade: o novo relacionamento absolutamente gratuito que Cristo introduziu na história. A virgindade é viver as coisas segundo a sua verdade. E como entrou no mundo a virgindade? Entrou no mundo como imitação de Cristo, isto é, como imitação do viver de um homem que era Deus. Nenhuma outra razão pode sustentar uma coisa assim grande como é a virgindade no viver a existência, a não ser a identificação com a modalidade através da qual Cristo possuia a realidade, isto é, segundo a vontade do Pai.
A pessoa de Jesus é um bem de tal forma grande e precioso que Ele é o único que corresponde plenamente à sede de felicidade do homem. É exatamente por causa dessa correspondência única, que a Sua pessoa constitui para quem O encontra, que é possível um relacionamento com o real absolutamente gratuito. Por isso, quem abraça a virgindade pode ser livre para não se casar.
Como aqueles que são chamados à virgindade contribuem para a edificação do reino de Deus? Os chamados à virgindade foram escolhidos para que “gritem diante de todos, a cada instante – toda a sua vida é feita para isso –, que Cristo é a única coisa pela qual vale a pena que o mundo exista. [...] Este é o valor objetivo da vocação: a forma da sua vida se joga no mundo por Cristo, luta no mundo por Cristo. A forma mesma da sua vida! [...] É uma vida que, como forma, grita: ‘Jesus é tudo’. Gritam isso diante de todos, de todos aqueles que os veem, de todos aqueles que se encontram com eles, de todos aqueles que os escutam, de todos aqueles que os olham” [19].
A vocação à virgindade é estritamente ligada à vocação ao matrimônio. Respondendo ao chamado, os virgens gritam aos casados a verdade do seu amor. Sigamos ainda as palavras de João Paulo II: “à luz das palavras de Cristo, como também à luz de toda a autêntica tradição cristã, é possível deduzir que tal renúncia é, ao mesmo tempo, uma forma particular de afirmação daquele valor, do qual a pessoa não casada se abstém coerentemente, seguindo o conselho evangélico. Isto pode parecer um paradoxo. É notável, todavia, que o paradoxo acompanha numerosos enunciados do Evangelho, e frequentemente os mais eloquentes e profundos. Aceitando um tal significado do chamado à continência ‘pelo Reino dos céus’, tiramos uma conclusão correta, sustentando que a realização deste chamado serve também – e de modo particular – à confirmação do significado esponsal do corpo humano na sua masculinidade e na sua feminilidade. A renúncia ao matrimônio pelo reino de Deus coloca em evidência ao mesmo tempo aquele significado em toda a sua verdade interior e em toda a sua beleza pessoal. Pode-se dizer que esta renúncia por parte de indivíduos, homens e mulheres, seja de certa maneira indispensável para que o mesmo significado esponsal do corpo seja mais facilmente reconhecido em todo o ethos da vida humana e, sobretudo, no ethos da vida conjugal e familiar” [20].
A virgindade é a autêntica esperança para os casados; é a raiz da possibilidade de viver o matrimônio sem pretensão e sem enganos: “à força deste testemunho, a virgindade mantém viva, na Igreja, a consciência do mistério do matrimônio e o defende de toda redução e de todo empobrecimento” [21].
“Por isso, a virgindade é a virtude cristã ideal para qualquer relacionamento, mesmo do relacionamento entre um homem e uma mulher casados. E, de fato, o cume do seu relacionamento, o momento culminante do seu relacionamento está lá onde se sacrificam, não onde expressam a sua posse. Porque, por causa do pecado original, o agarrar, de fato, faz escorregar. É como se a pessoa desejasse uma coisa e correndo em direção a ela, na medida em que se aproxima, corre ainda mais e bate o nariz contra: escorrega, tropeça. É por isso que nós dizemos que a virgindade é uma posse com uma distância dentro” [22]. A verdadeira posse que experimentamos é uma posse com uma distância dentro.

O lugar da família: comunidades cristãs vivas
Aparece, aqui, portanto, em toda a sua importância, o objetivo da comunidade cristã: favorecer uma experiência do cristianismo pela plenitude da vida de cada um. Somente no âmbito desta relação maior é possível não se divorciar, porque cada um encontra nela a sua realização humana, surpreendendo em si mesmo uma capacidade de abraçar o outro na sua diversidade, uma capacidade de gratuidade sem limites, de perdão sempre renovado.
Sem comunidades cristãs capazes de acompanhar e sustentar os esposos na sua aventura, será difícil, se não impossível, que eles a levem à realização de forma feliz. Os esposos, por sua vez, não podem eximir-se do trabalho de uma educação – da qual são os principais protagonistas –, pensando que a pertença à comunidade eclesial os libere das dificuldades. Deste modo se revela plenamente a natureza da vocação matrimonial: caminhar juntos em direção ao Único que pode responder à sede de felicidade que o outro desperta constantemente em mim, isto é, em direção a Cristo. Assim se evitará passar, como a Samaritana, de marido em marido, sem conseguir satisfazer o desejo pessoal autêntico. A consciência da sua incapacidade de resolver, sozinha, o próprio drama – nem mesmo mudando de marido cinco vezes! – lhe fez perceber Jesus como um bem tão desejável que só podia gritar: “dá-me desta água, para que eu não tenha mais sede” [23].
Consciente da situação atual, Bento XVI afirma a necessidade de que “as família não fiquem sozinhas. Um pequeno núcleo familiar pode encontrar obstáculos difíceis de superar se se sente isolado do resto de seus familiares e amigos. Por isso, a comunidade eclesial tem a responsabilidade de oferecer sustento, estímulo e alimento espiritual que fortifique a coesão familiar, sobretudo nas provações e nos momentos mais críticos. Neste sentido, é muito importante o papel das paróquias, assim como das diversas associações eclesiais, chamadas a colaborar como estrutura de apoio e mão amiga da Igreja para o crescimento da família na fé” [24]. Este convite cheio de ternura e de realismo é, ao mesmo tempo, a indicação de um objetivo: a família como tal tem necessidade de um lugar para viver, e esse lugar pode ser apenas constituído de comunidades cristãs que, por sua vez, vivam em plenitude contemplativa e operativa a própria fé. Em uma entrevista, Giussani utilizava a seguinte imagem: “Um povo nasce de um acontecimento, se constitui como realidade que quer se afirmar, defendendo a sua vida típica daqueles que a ameaçam. Imaginemos duas famílias que começam a crescer sobre palafitas no meio de um rio. A unidade destas duas famílias, depois de cinco, de dez família, na medida em que crescem as gerações, é uma luta pela sobrevivência e, finalmente, uma luta para afirmar a vida. Sem querê-lo, afirmam um ideal que é a vida. Assim, as pessoas que se referem a um povo veem, inexoravelmente, a vida como positiva. Pelo conhecimento racionalmente impenhado que tenho da vida do indivíduo e da sociedade, estas condições da ideia de povo tocam o vértice de concepções e de atuações no anúncio do Fato cristão, no qual, para nós, se cumpre aquilo que qualificou em toda a história o grande ethos do povo judeu e a sua tensão a mudar a terra” [25].
A pertença de um ser humano à própria família se dilata, então, na pertença à Igreja e, portanto, àquele pedacinho de Igreja no qual cada um de nós experimenta a presença universal de Cristo. O aproximar-se fraternalmente, o criar moradas hospitaleiras: é esta a maior contribuição que os cristãos podem dar para favorecer e acompanhar a experiência da família como caminho facilitado em direção à plenitude constituída por Cristo. “A superação da solidão na experiência do Espírito de Cristo não aproxima o homem aos outros, o escancara a eles até as profundidades do seu ser. [...] A comunidade se torna essencial à vida mesma de cada um. [...] O ‘nós’ se torna plenitude do ‘eu’, lei da realização do ‘eu’” [26].
Sem a experiência de plenitude humana que Cristo torna possível, o ideal cristão do matrimônio se reduz a algo impossível de se realizar. A indissolubilidade e a eternidade do amor aparecerão como quimeras inatingíveis. E, na realidade, elas são fruto tão gratuitos de uma intensidade de experiência de Cristo que, aos esposos, aparecem como uma surpresa, como o testemunho de que, de fato, “nada é impossível para Deus” [27]. Somente uma tal experiência pode mostrar, hoje, a racionalidade da fé cristã, uma realidade que corresponde totalmente ao desejo e às exigências do homem, mesmo no matrimônio e na família.
Este testemunho é a contribuição que podem dar, hoje, os esposos cristãos diante das dificuldades nas quais se encontram tantos de seus concidadãos. É um testemunho gratuito que desafiará a razão e a liberdade de quem, buscando uma autêntica resposta à própria exigência de felicidade, não consegue encontrá-la. É um testemunho que buscamos dar na consciência de que “guardamos este tesouro em vasos de argila, para que se evidencie que esta potência extraordinária vem de Deus e não de nós” [28].

Notas
[1] Spe salvi, 24.
[2] Mt 19,3-6.10.
[3] Spe salvi, 24.
[4] T.S. Eliot, Choruses from “The Rock”, 6 («By dreaming of systems so perfect that no one will need to be good»).
[5] Spe salvi, 25.
[6] J.W. Goethe, Faust, 682-683 («Was du ererbt von deinen Vätern hast, Erwirb es, um es zu besitzen!»).
[7] Benedetto XVI, Famiglia e comunità cristiana: formazione della persona e trasmissione della fede.
[8] C. Pavese, Il mestiere di vivere, Einaudi, Torino 1973, p. 190.
[9] Deus caritas est, 2.
[10] L. Giussani, Affezione e dimora, Biblioteca Universale Rizzoli, Milano 2001, p. 130.
[11] Deus caritas est, 5.
[12] G. Leopardi, Aspasia, 33-34.
[13] W. Shakespeare, Romeo and Juliet, I, I, («Show me a mistress that is passing fair, What doth her beauty serve, but as a note Where I may read who pass’d that passing fair?»).
[14] C.S. Lewis, Sorpreso dalla gioia, Jaca Book, Milano 2002, p. 160.
[15] L. Giussani, Le mie letture, Biblioteca Universale Rizzoli, Milano 1996, p. 30.
[16] Mt 10,34-40.
[17] Mt 19,11-12.
[18] Giovanni Paolo II, Udienza generale, 28 aprile 1982.
[19] L. Giussani, Il tempo e il tempio. Dio e l’uomo, Biblioteca Universale Rizzoli, Milano 1995, pp. 20-21.
[20] Giovanni Paolo II, Udienza generale, 5 maggio 1982.
[21] Familiaris consortio, 16.
[22] L. Giussani, Affezione e dimora, Biblioteca Universale Rizzoli, Milano 2001, p. 250.
[23] Gv 4,15.
[24] Benedetto XVI, Incontro festivo e testimoniale per la conclusione del V Incontro Mondiale delle Famiglie.
[25] L. Giussani, L’io, il potere, le opere. Contributi da un’esperienza, Marietti, Genova 2000, p. 251.
[26] L. Giussani, Il cammino al vero è un’esperienza, Rizzoli, Milano 2006, p. 110.
[27] Lc 1,37.
[28] 2Cor 4,7.

Um comentário:

Cláudio disse...

Fantástico!!

Obrigado