terça-feira, 22 de setembro de 2009

Julio Cortázar e Mozart


Fui, recentemente, apresentado ao escritor argentino Julio Cortázar: caiu-me entre as mãos "Todos os fogos o fogo"... Quem me apresentou? Ana Débora... vou te ser sempre grato!
Uma das coisas mais deliciosas que li no mês passado.
Resolvi reproduzir um trechinho de uma pérola desse seu livro de contos - a propósito surpreedentemente perfeito -... e se o faço é porque a maneira como Cortázar fala da amizade, nesse conto intitulado Reunião, é de arrancar lágrimas... vale a pena, inclusive, escutar o trechinho do quarteto de Mozart (trata-se do Quarteto K458 - A caça) a que ele faz referência.

"No fundo, a única coisa boa que aconteceu durante o dia foi não receber notícias de Luís, o resto é um desastre, dos oitenta eles nos mataram pelo menos cinquenta ou sessenta; Javier foi um dos primeiros a cair, o Peruano perdeu um olho e agonizou durante três horas sem que eu pudesse fazer nada, nem sequer acabar com ele enquanto os outros não olhavam. Durante todo o dia tememos que algum elemento de ligação (houve três correndo um risco incrível, nas próprias barbas do exército) nos trouxesse a notícia da morte de Luís. Em última instância é melhor não saber de nada, imaginá-lo vivo, ainda poder esperar. Peso friamente as possibilidades e chego à conclusão de que o mataram, nós todos sabemos como é, de que maneira o grande condenado é capaz de sair a descoberto com uma pistola na mão, e quem vier atrás que se apresse. Não, mas Lopez terá tomado conta dele, não há ninguém como ele para enganá-lo às vezes, quase como a uma criança, convencê-lo de que precisa fazer o contrário do que tem vontade nesse momento. Mas, e se Lopez... Inútil torturar-se, não há elementos para formular a menor hipótese, e, além do mais, esta calma é estranha, este bem-estar de barriga para cima como se tudo estivesse bem assim, como se tudo estivesse sendo cumprido (quase pensei: 'consumado', teria sido idiota) de acordo com os planos. Será a febre ou o cansaço, será que eles vão nos liquidar como se fôssemos sapos, antes do nascer do sol? Mas agora vale a pena aproveitar esta calma absurda, deixar-se estar olhando o desenho feito pelos galhos da árvore contra o céu mais claro, com algumas estrelas, seguindo com os olhos semifechados esse desenho casual dos galhos e das folhas, esses ritmos que se encontram, se sobrepõem e se separam, e às vezes mudam suavemente quando uma rajada de vento quente passa por cima das copas, vindo dos pantanais. Penso em meu filho que está longe, a milhares de quilômetros, num país onde ainda se dorme na cama, e sua imagem me parece irreal, afina-se e perde-se entre as folhas da árvore, e, em compensação, me faz tanto bem lembrar o tema de Mozart, que sempre me acompanhou, o movimento inicial do quarteto A caça, a evocação do halali na voz mansa dos violinos, essa transposição de uma cerimônia selvagem para um claro gozo pensativo. Penso-o, repito-o, cantarolo na memória e sinto, ao mesmo tempo, como a melodia e o desenho da copa da árvore contra o céu vão se aproximando, travam amizade, unem-se uma e outra vez até que o desenho se arrume, de repente, na presença visível da melodia, um ritmo que saiu de um galho baixo, quase à altura de minha cabeça, torna a subir até certa altura e se abre como um leque de galhos, enquanto o segundo violino é esse galho mais fraco que se justapõe para confundir suas folhas num ponto situado à direita, perto do final da frase, e deixá-la acabar para que o olho desça pelo tronco e possa, se quiser, repetir a melodia. E tudo isso é também a nossa rebelião, é o que estamos fazendo, embora Mozart e a árvore não possam sabê-lo, enquanto nós, à nossa maneira, quisemos transpor uma guerra tosca para uma ordem que lhe dê sentido, que a justifique e, finalmente, a conduza a uma vitória que seja como a restituição de uma melodia após tantos anos de roucas trompas de caça, que seja esse allegro final que sucede ao adágio como um encontro com a luz. Como Luís iria se divertir se soubesse que, neste momento, eu o estou comparando a Mozart, vendo-o arrumar pouco a pouco a insensatez, erguê-la até a sua razão primordial que aniquila, com sua evidência e seu caráter desmedido, todas as prudentes razões temporais. Mas que amarga, que desesperada tarefa a de ser um músico de homens, por cima do barro e da metralha e do desânimo, urdir esse canto que achávamos impossível, esse canto que travará amizade com a copa das árvores, com a terra devolvida a seus filhos. Sim, é a febre. E como Luís riria, embora ele também goste de Mozart, segundo me consta.
E assim, finalmente, ficarei adormecido, mas, antes, me perguntarei se algum dia saberemos passar do movimento onde ainda ecoa o halali do caçador à conquistada plenitude do adágio e daí ao allegro final que cantarolo com um fio de voz, se seremos capazes de alcançar a reconciliação com tudo o que ficou vivo diante de nós. Teríamos de ser como Luís, não já segui-lo, mas ser como ele, deixar para trás inapelavelmente o ódio e a vingança, olhar para o inimigo como Luís o faz, com uma magnanimidade implacável que tantas vezes suscitou em minha memória (mas como dizer isto a alguém?) uma imagem de pantocrator, um juiz que começa por ser o acusado e a testemunha e que não julga, que simplesmente separa a terra das águas para que no fim, algum dia, possa nascer uma pátria de homens num amanhecer trêmulo, à beira de um tempo mais limpo" (CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, pp. 74-77).

Mas, esse é só um trechinho do final da primeira metade do conto... aquela expectativa do allegro final segue até ao ponto de uma impressão de que, finalmente, se estava chegando no adágio... daí para o allegro - "uma realidade digna desse nome" (p. 87) - bastaria tão pouco.
Abraço meu em todos!

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