terça-feira, 6 de julho de 2010

Tvardóvski: o homem que, entre o regime e a verdade, escolheu Soljenítsin


Por Marta Dell’Asta

Grandes aniversários literários na Rússia, em 2010: em novembro, o centenário da morte de Tolstói; em junho, o centenário de nascimento de Alexander Tvardóvski, um grande poeta, muito amado pelo público soviético nos anos 40/60. No Ocidente é conhecido (se o for) talvez apenas pelo papel que teve no degelo literário nos primeiros anos da década de 1960 e no debut de Alexander Soljenítsin.
Esta personalidade impetuosa, com efeito, assumiu um duplo papel, o de poeta popular e o de diretor da maior revista literária soviética, a Novy mir (Novo mundo). A sua poesia tocava dois temas próximos ao coração russo: a guerra e o campo. Filho de agricultores, Tvardóvski soube trazer para o verso os ritmos cheio de brio e as imagens coloridas e ingênuas das baladas populares; como correspondente de guerra, soube cantar os sacrifícios e o amor pela pátria das pessoas comuns, sem a usual retórica fastidiosa. Soljenítsin lembra ter apreciado o seu poema mais célebre, a história do soldado Vassili Tërkin, como “uma obra corajosa, limpa, honesta”, que tocava a alma. O poeta, que não podia dizer toda a verdade sobre a guerra, parava sempre a um milímetro da mentira, sem nunca ultrapassar o limite.
Todavia, também Tvardóvski pagou, e muito caro, o tributo para a ideologia: na juventude, participando da coletivização forçada, ele, filhos de agricultores deportados; em seguida, escrevendo mentiras despudoradas sobre a felicidade socialista no campo e sobre Stálin. Como, de resto, todos faziam naqueles anos. Foi recompensado com três prêmios Stálin, um prêmio Lênin, um prêmio de Estado e vários outros, e entrou no aparato com cargos de grande prestígio (membro candidato do Comitê Central, dirigente da União de Escritores etc.).
O que o salvou do mais vil conformismo foi a integridade da sua sanguínea natureza de campesino, e ainda mais o seu ânimo de poeta, cheio de um amor apaixonado pela arte. Na sua personalidade se revolvia um contínuo combate entre o mundo soviético oficial, no qual acreditou sinceramente, e a sua alma de poeta campesino sedenta de verdade, honra, sentido do belo. Este homem assim complexo, em 1950, foi nomeado diretor da Novy mir, e ele, por dezesseis anos, desfrutou da própria autoridade como mestre para promover tudo aquilo que existia de vivo no país. Fazendo assim deu espaço a uma plêiade de novos autores que, depois, se tornaram célebres: Trifonov, Tendríakov, Dombróvski, Voinóvich, Vládimov, Siniávski, Suksín e muitos outros.
Foi um diretor corajoso, que usava todos os espaços de liberdade concedidos do alto, naquele período de destalinização, frequentemente puxando a corda para além dos limites concedidos e arriscando a própria cabeça. E, de fato, pagou pessoalmente, perdendo por duas vezes a cadeira: primeiro em 1954, depois em 1970. Este último, um golpe que, seguramente, acelerou o seu fim.
De resto, ele gostava de estar no centro da batalha, por caráter tendia a “dispor de tudo, pronto a responder sem medo”. Exatamente assim é que fez com Um dia de Ivan Denísovich, o romance de um “desconhecido autor do interior”. A publicação, verdeiramente explosiva, daquele primeiro romance de Soljenítsin, em 1962, foi o ápice da sua carreira profissional e fonte da sua ruína.
Quando leu o manuscrito, de noite, em casa, foi uma fulguração.  Não era tanto o tema do lager que o prendeu (já tinha recebido tantos contos sobre os lager na redação, mas nenhum havia passado na avaliação), mas a perfeição orgânica, viva, da arte. Uma testemunha conta que Tvardóvski estava “iluminado, rejuvenescido, quase louco de alegria. ‘Vocês nunca leram nada de parecido! Nunca! Aposto a minha cabeça!...’. Parecia vinte anos mais jovem. Os olhos brilhavam. Todo ele resplandecia, como se dele emanassem raios. ‘Eis o nascimento de um novo escritor! Autêntico, grande! Nunca houve um assim! Finalmente nasceu!’”.
Tvardóvski havia arquitetado um plano estratégico que era uma operação bélica. Chegou mesmo a Khrushchev, para conseguir dele uma consenso para a publicação que nenhum instância poderia boicotar. Por um ano defendeu a obra como se fosse sua, exultou com o sucesso como se fosse o seu triunfo pessoal. O longo processo que mudou o clima cultural na URSS, e libertou as consciência, é devedor, em igual medida, dos outsiders clandestinos que vieram a público – como Pasternak ou Soljenítsin – e a personagens do establishment como Tvardóvski, que combateram uma batalha, a partir de dentro, armados apenas da própria humanidade sincera.
Ao seu vice, que lhe aconselhava prudência - “eles nunca o perdoarão. Por algo assim, perderemos a revista. E você sabe o que é a nossa revista, não apenas para nós dois, mas para toda a Rússia” -, Tvardóvski respondeu como um homem livre: “Entendo, mas o que eu posso fazer com a revista se não puder publicar isto?”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 06 de julho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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