Por Bruno Tolentino
Não é Deus o problema.
A humana confusão
nasce da velha teima
da alma com o coração
(ou vice-versa) e o tema
não tem solução
enquanto for dilema.
Um corpo e um espírito
que se debatem em vão
um contra o outro, não
separam o infinito
e o instante senão
segundo o velho mito
da humana divisão.
Nossa dualidade
axiomática, o pão
da falsa refeição
em que tudo é metade,
é uma irrealidade.
Somos um todo. A mão
que busca a eternidade
e o eterno que se inclina
para encontrá-la, são
um só, um não termina
onde começa o vão
esforço da cortina
para alçar-se do chão:
a comédia é divina
por ser a encenatura
de um drama em que a paixão,
a dor da criatura
e sua redenção,
atravessam a obscura
ponte-separação,
fazem do mal a cura...
Quando nos debatemos
numa irresolução
entre polos extremos,
resta que a inclinação
insistente de remos
opostos, um na mão,
um no ar, como gêmeos
dissemelhantes, mas
unidos em razão
de uma paixão que faz
do esforço a solução,
resta que essa voraz,
grave equivocação,
deifica o fugaz
e retarda a ascensão
rumo à única meta.
Somos irmãos da seta,
buscamos a amplidão.
E, se a alma é concreta,
tudo é evaporação
insistente, secreta
e enfim irreprimível!
Vamos aonde vão
todos na multidão
à procura do nível,
a predestinação
de tudo é o invisível.
Movemo-nos na mão
de um ritmo contínuo:
recapitulação
do humano no divino,
somos a dispersão
dos gemidos do sino
escalando a amplidão,
o som sempre mais fino,
mais sutil, mais repleto
daquela oscilação
do voo, que é direto
em si, mas que em função
deste mundo inquieto
é cheio de ilusão.
Como o branco no preto,
a reverberação
entre a ausência de cor
e a excessiva união
de todas, faz supor
uma dissolução
contraditória, o alvor
do amor na negação.
Mas ao fim da lição
nem Deus era o problema
nem era a solução:
não havia o dilema!
Era ilusãoa teima
do ser, sua prisão
uma má-criação...
Que se a dor era o estrume,
o humano coração
é mortal como o grão,
não como o vaga-lume,
e sua vocação
é preparar o lume,
a espiga, a erupção
triunfal de um futuro.
Sofri num corpo impuro
sem frutificação,
mas fiz uma canção,
uns desenhos no escuro,
como as heras no muro
vão subindo do chão.
Entendo que não são
duas coisas idênticas,
mas são gêmeas: canção
e hera são concêntricas,
uma e outra a explosão
da terra, o coração
do eterno: uma o adentra
enquanto a outra o concentra,
mas enfim tudo canta!
É tudo um eco, um vão
aberto entre a garganta
e uma sublimação,
uma ânsia de planta
que se alcança: a canção
é o grão que se levanta.
* TOLENTINO, Bruno. As horas de Katharina - com a peça A andorinha, ou: A cilada de Deus. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2010, pp. 234-237.
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