Sermão do Padre António Vieira proferido na Capela Real em 19 de Março de 1642, dia de aniversário do Rei D. João IV
Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph
[Maria, Mãe de Jesus, estava comprometida em casamento com José; Mateus 1, 18.]
III. Temos visto o nascimento real de João o Amado, e o sítio do Planeta, em que nasce debaixo da terra, no mesmo, ou semelhante dia; e porque os dias, como diz David, também se falam e se entendem uns com os outros: Dies diei eructat verbum [“o dia entrega a mensagem a outro dia”; Salmo 18, 3.]; com razão perguntará o dia do nascimento de Sua Majestade ao dia, em que nasce, de S. José, que influências pode ou deve esperar de tão divino Planeta. A resposta não é como a dos matemáticos, duvidosa e incerta; mas tão certa e sem dúvida, como tudo o que dizem os evangelistas. Vamos ao nosso Evangelho, que é de S. Mateus, no capítulo primeiro, e ouçamos com admirável propriedade o que diz, como se falara deste dia, e do nosso caso: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph. Estava, diz, a Mãe de Jesus, Maria, desposada com José. Onde se deve advertir, que a palavra desposada não significa promessa recíproca de bodas futuras, senão verdadeiro e actual matrimónio por contrato, e palavras de presente, como consta do mesmo Texto: Noli timere accipere Mariam conjugem tuam: [“não temas receber Maria, tua mulher”; Mateus 1, 20.] mas a cortesia do Evangelista não disse, casada, senão desposada, como termo mais decente e decoroso. O que suposto, era a Senhora já Mãe de Jesus, porque tinha concebido ao Verbo Eterno; mas antes de Mãe, primeiro desposada. E porquê? Como era, e havia de ser sempre Virgem, tanto importava ser primeiro desposada, como depois: porque razão logo ordenou a Providência Divina, que não concebesse ao Filho de Deus, senão depois de desposada: Cum esset desponsata Mater Jesu? A razão principal é porque convinha e era necessário que a conceição e parto da mesma Virgem estivesse encoberto: Ut virginues partus celaretur. Assim o dizem S. Jerónimo, S. Basílio, S. João Damasceno, Santo Ambrósio, S. Bernardo, e é comum dos santos padres. Constava da Sagrada Escritura pelo oráculo e testemunho do profeta Isaías, que o Messias, e Rei prometido para Redentor do mundo havia de nascer de uma Virgem: Ecce, Virgo concipiet et pariet Filium [“Eis que a jovem concebeu e dará à luz um filho”; Isaías 7, 14.]. E porque este Rei não só na Terra, senão no mesmo Inferno, havia de ter muitos émulos e inimigos, esta era a importância, e necessidade porque convinha, e tinha ordenado a Divina Providência, que estivesse encoberto a todos, como com efeito se encobriu no desposório, ou matrimónio da Virgem Santíssima com S. José, parecendo que não tinha mais mistério a conceição, e nascimento daquele Filho, que o comum e ordinário dos outros homens.
Que semelhança tem agora, ou que propriedade em S. José a providência de Deus neste mistério com o nascimento de Sua Majestade, que Deus guarde, no dia do mesmo Santo? Disse-o Ruperto com umas palavras, que se lhe pedíramos as fizesse de encomenda, não vieram mais nascidas ao intento:Ut esse Sponsus, custosque Beatae Virginis, ac nati ex ea Regis. Desposa-se José com Maria, e nomeadamente com Maria Mãe de Jesus, porque o fim destes desposórios foi ser José Esposo da Virgem, e guarda do Rei nascido: Custos nati Regis. Oh grande excelência! Oh grande glória! Oh dignidade superior a todos os santos a de José! Que os foros da mesma omnipotência nasçam debaixo de seu amparo, e que não tendo Cristo Anjo da Guarda, porque é Deus, tenha por Custódio um homem, que é S. José: Custus nati Regis! Grande glória de José, e grande graça também do nosso rei, e reino! Que o amasse Deus, e cuidasse do seu remédio com tão especial providência, que o patrocínio que deu em seu nascimento ao Rei que havia de restaurar o mundo, esse mesmo patrocínio desse em seu nascimento ao rei que havia de restaurar a Portugal! Um e outro nasceu debaixo da mesma protecção, um e outro nasceu debaixo da tutela e amparo de S. José: Joseph custos nati Regis.
Sendo pois estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores, e ambos encobertos; o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel Salvator [“Tu és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Salvador”; Isaías 45, 15.][1]. O segundo prometido pela profecia, e tradição de Santo Isidoro a Espanha, não com outro nome, ou antonomásia, senão a doEncoberto; vejamos quão particularmente encobriu a um e outro, o que a um e outro deu Deus por guarda o cuidado e vigilância de S. José. A Cristo encobriu-o, como Esposo de Maria, nove meses e treze dias desde sua conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente aos Magos, e os Magos em seguimento dela a toda Judeia. E como o encobriu? Spiritus Sanctus superveniet in te, et virtus Altissimi obumbravit tibi [O anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra”; Lucas 1, 35.] A Virgem Senhora nossa tinha dois Esposos, um divino, outro humano. O Esposo divino era o Espírito Santo; o humano, S. José. Do primeiro Esposo era obra o Filho concebido, como disse o Anjo à mesma Virgem: Spiritus Sanctus superveniet in te: acrescentando: Et virtus Altissimi obumbravit tibi: que a virtude do Altíssimo lhe faria sombra. E que sombra foi esta, ou quem foi esta sombra? Foi sem dúvida o segundo Esposo, a cuja sombra esteve a Virgem depois de desposada, e com a sombra e nome de Pai, encobriu o que verdadeiramente não era seu Filho. Assim ficou o Rei, e Redentor, que havia de ser do mundo, encoberto desde sua Encarnação nove meses até seu Nascimento, e treze dias, até que a estrela e os Magos, e Deus por eles o descobriu ao mundo: Ubi est, qui natus est Rex Judaeorum? [“Onde está o rei dos judeus recém-nascido?”; Mateus 2, 2.]
Mas se S. José guardou encoberto a Cristo nove meses e treze dias; que comparação tem este tempo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto de Portugal, desde o dia de seu nascimento até o felicíssimo de sua restituição? Vejo que me respondem, que S. José não só encobriu a Cristo naquele primeiro ano não acabado, mas em outros, cujo número certo se não sabe. Sabendo pelo Anjo que Herodes entre os Inocentes de Belém, queria tirar a vida a Cristo, fugiu de Judeia para o Egipto, e depois da morte do mesmo Herodes, sabendo também por aviso do Céu, que reinava em Judeia Arque seu filho, retirou-se para Galileia. De sorte que para encobrir o primeiro Rei nascido, tomou por meio tirá-lo diante dos olhos dois reis seus inimigos, e escondê-lo em terras estranhas. Porém para encobrir o segundo rei, não só no seu nascimento, nem na sua infância, puerícia, ou adolescência, senão na idade de varão perfeito em tantos anos, a traça com que o encobriu a outros dois reis, que não menos lhe podiam tirar a vida e a coroa, qual seria? Verdadeiramente milagrosa, e digna da Omnipotência Divina. Dentro na mesma Espanha, dentro no mesmo Portugal, e diante dos olhos dos mesmos reis, escondeu e encobriu de maneira ao encoberto, que vendo-o, o não viam, nem viram. É, certo que assim foi, mas duvidoso, como podia ser.
No dia da Ressurreição ajuntou-se Cristo aos dois discípulos que iam para Emaús, os quais, em todo aquele caminho, O viam e ouviam, sem O conhecerem. Porventura transfigurou-se Cristo, ou mudou as feições do rosto? Por nenhum modo. Pois se eram seus discípulos, costumados a vê-l'O todos os dias, e agora O estavam vendo, e no seu rosto não havia mudança, como O não conheciam? Responde o Evangelista: Oculi eorum tenebantur, ne eum agnoscerent [“seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhecê-lo”; Lucas 24, 16.] A palavra tenebantur, melhor se pode entender, do que declarar na nossa língua: Tenebantur, estavam detidos: Tenebantur, estavam presos: Tenebantur, estavam suspensos: Tenebantur, estavam em si, e fora de si, como extáticos os olhos que O viam, e não conheciam. Fazendo este milagre nos Discípulos a omnipotência de Cristo; e nos reis, que tanto podiam temer, e acautelar-se do que hoje é nosso, a mão invisível de S. José. Desde o princípio em que se fizeram senhores de Portugal aqueles reis estranhos; Filipe II tinha diante dos olhos a senhora D. Catarina; Filipe III ao duque D. Teodósio; Filipe IV a Sua Majestade, que finalmente lhe tirou da cabeça a coroa; e vendo-os, não conheciam o que neles deviam recear e temer, cegando-os S. José com a mesma luz de seus olhos; e cobrindo o seu e o nosso encoberto com o descobrir.
Assim desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir, e provar o nome de encoberto no novo rei, nascido no seu dia: mas ainda lhe falta, ou nos falta uma maior consideração e vigilância deste seu empenho. O ódio, a emulação, a cautela, o receio de perder o ganhado em Portugal, que tinham os reis estranhos, a grandeza do poder, e a doçura do possuir, podia lisonjear e adormecer todo este cuidado; mas da nossa parte, e em nós, os Portugueses, além da dor do perdido, estava com os olhos abertos ao remédio o amor, o desejo, e a necessidade. O amor ainda que é cego para ver, é lince para adivinhar: o desejo é um afecto sempre ardente e inquieto, que não sabe sossegar um momento: sobretudo a necessidade da redenção, da liberdade, e de rei natural, era a que mais apertava os cordéis a este tormento, e tinha com a soga na garganta todos estes afectos. E como podia ser, que sendo eles tão vigilantes, e tendo sempre o direito da coroa, e a pessoa do rei a quem pertencia, diante dos olhos, de tal sorte a encobrisse S. José, que a ninguém viesse ao pensamento ser ele o que o havia de recuperar"? Mas em encobrir o nosso encoberto neste grande perigo de o declararem as evidências, ou conjecturas de algum destes afectos, mostrou o Santo, quão alta e delicadamente observou as obrigações do ofício de o guardar: Custos nati Regis; equivocando milagrosamente um rei com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou morreu na batalha de África el-rei D. Sebastião, e puderam tanto as saudades de um rei, que se tinha perdido a si e a nós, que sem se divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda, a nossa redenção; e este foi o altíssimo conselho, com que S. José, debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei futuro e vivo. Não vemos conservar-se vivo o fogo debaixo das cinzas que o encobrem? Pois assim conservou e encobriu S. José a vida de el-rei, que Deus guarde, debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião defunto. É o que diz expressamente Isaías, no capítulo 61. Promete Deus ali de alegrar os tristes, de consolar os desconsolados, de libertar os cativos, e conclui, que pelas cinzas lhes dará a coroa: Ut mederer contritis corde: et praedicarem captivis indulgentiam: ut consolarer omnes lugentes [Isaías 61, 1, 2 e 3.] e finalmente: Et darem eis coronam pro cinere. Assim estava Portugal triste, assim estava desconsolado, assim estava cativo, e assim lhe prometia S. José a coroa perdida debaixo das cinzas do rei morto reputado por vivo; e assim conservava vivo e encoberto aquele que verdadeiramente havia de restituir aos tristes, desconsolados e cativos a coroa perdida. De maneira que encoberta a verdade debaixo do engano, a esperança, debaixo da desesperação, a vida debaixo da morte, e a coroa debaixo das cinzas, aos príncipes estranhos, que tudo isto tinham por riso, não lhes dava cuidado o remédio; e os vassalos, amigos e naturais, que o tinham, pouco menos, quase por fé, com milagrosa providência, enganada a sua dor, o seu amor, o seu desejo, e a sua necessidade, se consolavam e animavam da falsa e equivocada esperança até que a verdadeira, debaixo dela encoberta, ao tempo destinado pelo Céu, lhe trouxe a felicidade que hoje logramos.
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