sábado, 19 de março de 2011

Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph - Parte III


Sermão do Padre António Vieira proferido na Capela Real em 19 de Março de 1642, dia de aniversário do Rei D. João IV

Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph
[Maria, Mãe de Jesus, estava comprometida em casamento com José; Mateus 1, 18.]

III. Temos visto o nascimento real de João o Amado, e o sítio do Planeta, em que nasce debaixo da terra, no mesmo, ou semelhante dia; e porque os dias, como diz David, também se falam e se entendem uns com os outros: Dies diei eructat verbum [“o dia entrega a mensagem a outro dia”; Salmo 18, 3.]; com razão perguntará o dia do nascimento de Sua Majestade ao dia, em que nasce, de S. José, que influências pode ou deve esperar de tão divino Planeta. A resposta não é como a dos matemáticos, duvidosa e incerta; mas tão certa e sem dúvida, como tudo o que dizem os evangelistas. Vamos ao nosso Evangelho, que é de S. Mateus, no capítulo primeiro, e ouçamos com admirável propriedade o que diz, como se falara deste dia, e do nosso caso: Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph. Estava, diz, a Mãe de Jesus, Maria, desposada com José. Onde se deve advertir, que a palavra desposada não significa promessa recíproca de bodas futuras, senão verdadeiro e actual matrimónio por contrato, e palavras de presente, como consta do mesmo Texto: Noli timere accipere Mariam conjugem tuam: [“não temas receber Maria, tua mulher”; Mateus 1, 20.] mas a cortesia do Evangelista não disse, casada, senão desposada, como termo mais decente e decoroso. O que suposto, era a Senhora já Mãe de Jesus, porque tinha concebido ao Verbo Eterno; mas antes de Mãe, primeiro desposada. E porquê? Como era, e havia de ser sempre Virgem, tanto importava ser primeiro desposada, como depois: porque razão logo ordenou a Providência Divina, que não concebesse ao Filho de Deus, senão depois de desposada: Cum esset desponsata Mater Jesu? A razão principal é porque convinha e era necessário que a conceição e parto da mesma Virgem estivesse encoberto: Ut virginues partus celaretur. Assim o dizem S. Jerónimo, S. Basílio, S. João Damasceno, Santo Ambrósio, S. Bernardo, e é comum dos santos padres. Constava da Sagrada Escritura pelo oráculo e testemunho do profeta Isaías, que o Messias, e Rei prometido para Redentor do mundo havia de nascer de uma Virgem: Ecce, Virgo concipiet et pariet Filium [“Eis que a jovem concebeu e dará à luz um filho”; Isaías 7, 14.]. E porque este Rei não só na Terra, senão no mesmo Inferno, havia de ter muitos émulos e inimigos, esta era a importância, e necessidade porque convinha, e tinha ordenado a Divina Providência, que estivesse encoberto a todos, como com efeito se encobriu no desposório, ou matrimónio da Virgem Santíssima com S. José, parecendo que não tinha mais mistério a conceição, e nascimento daquele Filho, que o comum e ordinário dos outros homens.

Que semelhança tem agora, ou que propriedade em S. José a providência de Deus neste mistério com o nascimento de Sua Majestade, que Deus guarde, no dia do mesmo Santo? Disse-o Ruperto com umas palavras, que se lhe pedíramos as fizesse de encomenda, não vieram mais nascidas ao intento:Ut esse Sponsus, custosque Beatae Virginis, ac nati ex ea Regis. Desposa-se José com Maria, e nomeadamente com Maria Mãe de Jesus, porque o fim destes desposórios foi ser José Esposo da Virgem, e guarda do Rei nascido: Custos nati Regis. Oh grande excelência! Oh grande glória! Oh dignidade superior a todos os santos a de José! Que os foros da mesma omnipotência nasçam debaixo de seu amparo, e que não tendo Cristo Anjo da Guarda, porque é Deus, tenha por Custódio um homem, que é S. José: Custus nati Regis! Grande glória de José, e grande graça também do nosso rei, e reino! Que o amasse Deus, e cuidasse do seu remédio com tão especial providência, que o patrocínio que deu em seu nascimento ao Rei que havia de restaurar o mundo, esse mesmo patrocínio desse em seu nascimento ao rei que havia de restaurar a Portugal! Um e outro nasceu debaixo da mesma protecção, um e outro nasceu debaixo da tutela e amparo de S. José: Joseph custos nati Regis.

Sendo pois estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores, e ambos encobertos; o primeiro, como diz a profecia de Isaías: Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel Salvator [“Tu és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Salvador”; Isaías 45, 15.][1]. O segundo prometido pela profecia, e tradição de Santo Isidoro a Espanha, não com outro nome, ou antonomásia, senão a doEncoberto; vejamos quão particularmente encobriu a um e outro, o que a um e outro deu Deus por guarda o cuidado e vigilância de S. José. A Cristo encobriu-o, como Esposo de Maria, nove meses e treze dias desde sua conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente aos Magos, e os Magos em seguimento dela a toda Judeia. E como o encobriu? Spiritus Sanctus superveniet in te, et virtus Altissimi obumbravit tibi [O anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra”; Lucas 1, 35.]  A Virgem Senhora nossa tinha dois Esposos, um divino, outro humano. O Esposo divino era o Espírito Santo; o humano, S. José. Do primeiro Esposo era obra o Filho concebido, como disse o Anjo à mesma Virgem: Spiritus Sanctus superveniet in te: acrescentando: Et virtus Altissimi obumbravit tibi: que a virtude do Altíssimo lhe faria sombra. E que sombra foi esta, ou quem foi esta sombra? Foi sem dúvida o segundo Esposo, a cuja sombra esteve a Virgem depois de desposada, e com a sombra e nome de Pai, encobriu o que verdadeiramente não era seu Filho. Assim ficou o Rei, e Redentor, que havia de ser do mundo, encoberto desde sua Encarnação nove meses até seu Nascimento, e treze dias, até que a estrela e os Magos, e Deus por eles o descobriu ao mundo: Ubi est, qui natus est Rex Judaeorum? [“Onde está o rei dos judeus recém-nascido?”; Mateus 2, 2.]

Mas se S. José guardou encoberto a Cristo nove meses e treze dias; que comparação tem este tempo, que não chega a um ano, com mais de trinta e seis anos inteiros em que teve encoberto ao rei encoberto de Portugal, desde o dia de seu nascimento até o felicíssimo de sua restituição? Vejo que me respondem, que S. José não só encobriu a Cristo naquele primeiro ano não acabado, mas em outros, cujo número certo se não sabe. Sabendo pelo Anjo que Herodes entre os Inocentes de Belém, queria tirar a vida a Cristo, fugiu de Judeia para o Egipto, e depois da morte do mesmo Herodes, sabendo também por aviso do Céu, que reinava em Judeia Arque seu filho, retirou-se para Galileia. De sorte que para encobrir o primeiro Rei nascido, tomou por meio tirá-lo diante dos olhos dois reis seus inimigos, e escondê-lo em terras estranhas. Porém para encobrir o segundo rei, não só no seu nascimento, nem na sua infância, puerícia, ou adolescência, senão na idade de varão perfeito em tantos anos, a traça com que o encobriu a outros dois reis, que não menos lhe podiam tirar a vida e a coroa, qual seria? Verdadeiramente milagrosa, e digna da Omnipotência Divina. Dentro na mesma Espanha, dentro no mesmo Portugal, e diante dos olhos dos mesmos reis, escondeu e encobriu de maneira ao encoberto, que vendo-o, o não viam, nem viram. É, certo que assim foi, mas duvidoso, como podia ser.

No dia da Ressurreição ajuntou-se Cristo aos dois discípulos que iam para Emaús, os quais, em todo aquele caminho, O viam e ouviam, sem O conhecerem. Porventura transfigurou-se Cristo, ou mudou as feições do rosto? Por nenhum modo. Pois se eram seus discípulos, costumados a vê-l'O todos os dias, e agora O estavam vendo, e no seu rosto não havia mudança, como O não conheciam? Responde o Evangelista: Oculi eorum tenebantur, ne eum agnoscerent [“seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhecê-lo”; Lucas 24, 16.] A palavra tenebantur, melhor se pode entender, do que declarar na nossa língua: Tenebantur, estavam detidos: Tenebantur, estavam presos: Tenebantur, estavam suspensos: Tenebantur, estavam em si, e fora de si, como extáticos os olhos que O viam, e não conheciam. Fazendo este milagre nos Discípulos a omnipotência de Cristo; e nos reis, que tanto podiam temer, e acautelar-se do que hoje é nosso, a mão invisível de S. José. Desde o princípio em que se fizeram senhores de Portugal aqueles reis estranhos; Filipe II tinha diante dos olhos a senhora D. Catarina; Filipe III ao duque D. Teodósio; Filipe IV a Sua Majestade, que finalmente lhe tirou da cabeça a coroa; e vendo-os, não conheciam o que neles deviam recear e temer, cegando-os S. José com a mesma luz de seus olhos; e cobrindo o seu e o nosso encoberto com o descobrir.

Assim desempenhou o grande santo a obrigação que tinha de encobrir, e provar o nome de encoberto no novo rei, nascido no seu dia: mas ainda lhe falta, ou nos falta uma maior consideração e vigilância deste seu empenho. O ódio, a emulação, a cautela, o receio de perder o ganhado em Portugal, que tinham os reis estranhos, a grandeza do poder, e a doçura do possuir, podia lisonjear e adormecer todo este cuidado; mas da nossa parte, e em nós, os Portugueses, além da dor do perdido, estava com os olhos abertos ao remédio o amor, o desejo, e a necessidade. O amor ainda que é cego para ver, é lince para adivinhar: o desejo é um afecto sempre ardente e inquieto, que não sabe sossegar um momento: sobretudo a necessidade da redenção, da liberdade, e de rei natural, era a que mais apertava os cordéis a este tormento, e tinha com a soga na garganta todos estes afectos. E como podia ser, que sendo eles tão vigilantes, e tendo sempre o direito da coroa, e a pessoa do rei a quem pertencia, diante dos olhos, de tal sorte a encobrisse S. José, que a ninguém viesse ao pensamento ser ele o que o havia de recuperar"? Mas em encobrir o nosso encoberto neste grande perigo de o declararem as evidências, ou conjecturas de algum destes afectos, mostrou o Santo, quão alta e delicadamente observou as obrigações do ofício de o guardar: Custos nati Regis; equivocando milagrosamente um rei com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou morreu na batalha de África el-rei D. Sebastião, e puderam tanto as saudades de um rei, que se tinha perdido a si e a nós, que sem se divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda, a nossa redenção; e este foi o altíssimo conselho, com que S. José, debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei futuro e vivo. Não vemos conservar-se vivo o fogo debaixo das cinzas que o encobrem? Pois assim conservou e encobriu S. José a vida de el-rei, que Deus guarde, debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião defunto. É o que diz expressamente Isaías, no capítulo 61. Promete Deus ali de alegrar os tristes, de consolar os desconsolados, de libertar os cativos, e conclui, que pelas cinzas lhes dará a coroa: Ut mederer contritis corde: et praedicarem captivis indulgentiam: ut consolarer omnes lugentes [Isaías 61, 1, 2 e 3.] e finalmente: Et darem eis coronam pro cinere. Assim estava Portugal triste, assim estava desconsolado, assim estava cativo, e assim lhe prometia S. José a coroa perdida debaixo das cinzas do rei morto reputado por vivo; e assim conservava vivo e encoberto aquele que verdadeiramente havia de restituir aos tristes, desconsolados e cativos a coroa perdida. De maneira que encoberta a verdade debaixo do engano, a esperança, debaixo da desesperação, a vida debaixo da morte, e a coroa debaixo das cinzas, aos príncipes estranhos, que tudo isto tinham por riso, não lhes dava cuidado o remédio; e os vassalos, amigos e naturais, que o tinham, pouco menos, quase por fé, com milagrosa providência, enganada a sua dor, o seu amor, o seu desejo, e a sua necessidade, se consolavam e animavam da falsa e equivocada esperança até que a verdadeira, debaixo dela encoberta, ao tempo destinado pelo Céu, lhe trouxe a felicidade que hoje logramos.


Nenhum comentário: