Sermão do Padre António Vieira proferido na Capela Real em 19 de Março de 1642, dia de aniversário do Rei D. João IV
Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph
[Maria, Mãe de Jesus, estava comprometida em casamento com José; Mateus 1, 18.]
IV. Certo que ponderar cabalmente esta felicidade, será causa de não faltar nunca Portugal ao eterno agradecimento a S. José. Que uma vida (não sejamos ingratos, por não saber o que devemos a Deus), que uma vida, em que estavam fundadas as consequências, que hoje se logram, apesar da emulação de dois reis, debaixo de sua mesma jurisdição se conservasse! Que nasça a décima sexta geração de Portugal tão esperada, e que sendo décima sexta por três dias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e sete anos o descobrisse! Vivo apesar de tantas advertências políticas, encoberto, apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da Providência Divina; e este segundo, a meu ver, ainda maior. E se não, pergunto: Qual foi a razão, porque ordenou Deus que o libertador que havia de ser de Portugal, se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de libertador, senão pelo nome de encoberto? A razão foi; porque maior milagre da Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador. Fazê-lo libertador, foi deliberarem-se os homens a uma coisa muito útil; conservá-lo encoberto, foi cegarem-se os homens a uma coisa muito manifesta: e maior milagre é encobrir evidências ao entendimento, que persuadir conveniências à vontade. O que todos ponderam, o que todos admiram, o de que todos fazem maior caso é, que se unissem, e concordassem as vontades de todo um reino, para fazer o que fizeram. Muito foi; mas bem considerado, não foi muito; porque, que muito que as vontades dos homens se persuadissem a uma coisa tão útil, e tão honrosa, como ter reino, ter rei, ter liberdade, viver sem cativeiro e sem opressão? Porém que o autor felicíssimo de todo este bem nascesse e vivesse entre nós tão retratado pelos oráculos divinos, e ainda nomeado pelo próprio nome, e o tivesse Deus encoberto, sem que o amor, nem a emulação, que são os dois afectos mais linces, o descobrissem! Que o vissem os olhos, e que guardasse segredo o entendimento! Que suspirassem os desejos, e que não bastassem as maiores advertências! Dissimulado a evidências, e encoberto a olhos vistos! Este é o maior milagre, esta a maior maravilha, mas agora exercitada, e muitos séculos antes já ensaiada: por quem? Pelo autor da mesma protecção, S. José.
Conta o Texto sagrado no quarto Livro dos Reis, capítulo onze, que em uma ocasião quiseram tirar a vida tiranicamente os herdeiros do sangue real de Israel ao menino Joás; porém que Josabá o livrou do perigo, e o criou escondidamente: Abscondit eum, ut non interficeretur até que passados alguns anos, os nobres do povo se uniram, e todos com as armas nas mãos entraram no paço real, e impedindo as guardas em um sábado, aclamaram por rei a Joás, e o meteram de posse do reino, que lhe pertencia, lançando do paço a Atalia, uma senhora que então governava. Desta maneira refere o Texto este caso, e bem se vê, que é tão próprio do que sucedeu em Portugal, que se ao nome de Joás se mudara o s, em m, se pudera trasladar este capítulo, e escrever-se em nossas crónicas. Bem está: mas quem fez isto? A quem se deve esta façanha! Quem há-de levar a glória desta maravilha? Quem? S. José. Diz Isidoro Isolano que Josabá, a cuja indústria deve sua vida e restituição Joás, foi figura de S. José, Esposo da Virgem Joseph profecto in Josaba praefiguratus est, quae Joas Infantem clam nutrivit, et aluit, ao regem Israel tandem constituit. Hei-de construir as palavras ao pé da letra, para maior glória de S. José, e maior evidência do nosso caso. Joseph profecto in Josaba praefiguratas est. Verdadeiramente S. José foi figurado em Josabá: Quae Joas infantem clam nutrivit, et aluit: que guardou ao infante Joás vivo e encoberto: Ac regem Israel tandem constituit: e finalmente o fez rei de Israel, metendo-o de posse do reino, que lhe tocava. E não é isto mesmo, o que fez S. José com o rei e reino de Portugal? Nem o caso pode ser mais próprio; nem eu quero dizer mais nesta matéria.
Estas são as obrigações em que S. José tem empenhado a Vossa Majestade, Senhor; e as consequências delas são, que assim como S. José não só foi Salvador do Salvador, senão também do mundo; assim não foi só Salvador do nosso Libertador, senão também do Reino libertado. Espero em Deus que o hei-de provar literalmente. Benedictio illius, qui apparuit in rubo, veniat super caput Joseph [Deuteronómio 33, 16.] A bênção daquele que apareceu na sarça, desça sobre José. Esta bênção foi lançada ao patriarca José, e diz o Pelusiota e outros, que se cumpriu em S. José, Esposo da Virgem. E qual foi a bênção daquele, que apareceu na sarça a Moisés? Ele mesmo o disse: Vidi afflictionem populi mei, et descendi ut liberem eum [“eu vi, eu vi a miséria do meu povo, por isso desci a fim de libertá-lo” Êxodo 3, 7 e 8.] Vi a aflição do meu povo debaixo do poder de um rei estranho, e desci do Céu a libertá-lo. Pois se a bênção do que apareceu a Moisés na sarça, é ser libertador do povo oprimido do poder de um rei estranho, e esta bênção se cumpriu em José, Esposo da Virgem; digam-me agora, os historiadores, quando se cumpriu esta bênção, senão na restauração de Portugal. Viu o Santo as aflições deste povo verdadeiramente seu; e desceu do Céu a libertá-lo, guardando com particular providência a vida do nosso felicíssimo libertador, como fez à de Cristo, segundo a protecção que tomou em um e outro nascimento: Custos nati Regis, que foi o fim com que se desposou com a Virgem:Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.
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