sábado, 19 de março de 2011

Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph - Parte IV


Sermão do Padre António Vieira proferido na Capela Real em 19 de Março de 1642, dia de aniversário do Rei D. João IV

Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph
[Maria, Mãe de Jesus, estava comprometida em casamento com José; Mateus 1, 18.]

IV. Certo que ponderar cabalmente esta felicidade, será causa de não faltar nunca Portugal ao eterno agradecimento a S. José. Que uma vida (não sejamos ingratos, por não saber o que devemos a Deus), que uma vida, em que estavam fundadas as consequências, que hoje se logram, apesar da emulação de dois reis, debaixo de sua mesma jurisdição se conservasse! Que nasça a décima sexta geração de Portugal tão esperada, e que sendo décima sexta por três dias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e sete anos o descobrisse! Vivo apesar de tantas advertências políticas, encoberto, apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da Providência Divina; e este segundo, a meu ver, ainda maior. E se não, pergunto: Qual foi a razão, porque ordenou Deus que o libertador que havia de ser de Portugal, se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de libertador, senão pelo nome de encoberto? A razão foi; porque maior milagre da Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador. Fazê-lo libertador, foi deliberarem-se os homens a uma coisa muito útil; conservá-lo encoberto, foi cegarem-se os homens a uma coisa muito manifesta: e maior milagre é encobrir evidências ao entendimento, que persuadir conveniências à vontade. O que todos ponderam, o que todos admiram, o de que todos fazem maior caso é, que se unissem, e concordassem as vontades de todo um reino, para fazer o que fizeram. Muito foi; mas bem considerado, não foi muito; porque, que muito que as vontades dos homens se persuadissem a uma coisa tão útil, e tão honrosa, como ter reino, ter rei, ter liberdade, viver sem cativeiro e sem opressão? Porém que o autor felicíssimo de todo este bem nascesse e vivesse entre nós tão retratado pelos oráculos divinos, e ainda nomeado pelo próprio nome, e o tivesse Deus encoberto, sem que o amor, nem a emulação, que são os dois afectos mais linces, o descobrissem! Que o vissem os olhos, e que guardasse segredo o entendimento! Que suspirassem os desejos, e que não bastassem as maiores advertências! Dissimulado a evidências, e encoberto a olhos vistos! Este é o maior milagre, esta a maior maravilha, mas agora exercitada, e muitos séculos antes já ensaiada: por quem? Pelo autor da mesma protecção, S. José.

Conta o Texto sagrado no quarto Livro dos Reis, capítulo onze, que em uma ocasião quiseram tirar a vida tiranicamente os herdeiros do sangue real de Israel ao menino Joás; porém que Josabá o livrou do perigo, e o criou escondidamente: Abscondit eum, ut non interficeretur até que passados alguns anos, os nobres do povo se uniram, e todos com as armas nas mãos entraram no paço real, e impedindo as guardas em um sábado, aclamaram por rei a Joás, e o meteram de posse do reino, que lhe pertencia, lançando do paço a Atalia, uma senhora que então governava. Desta maneira refere o Texto este caso, e bem se vê, que é tão próprio do que sucedeu em Portugal, que se ao nome de Joás se mudara o s, em m, se pudera trasladar este capítulo, e escrever-se em nossas crónicas. Bem está: mas quem fez isto? A quem se deve esta façanha! Quem há-de levar a glória desta maravilha? Quem? S. José. Diz Isidoro Isolano que Josabá, a cuja indústria deve sua vida e restituição Joás, foi figura de S. José, Esposo da Virgem Joseph profecto in Josaba praefiguratus est, quae Joas Infantem clam nutrivit, et aluit, ao regem Israel tandem constituit. Hei-de construir as palavras ao pé da letra, para maior glória de S. José, e maior evidência do nosso caso. Joseph profecto in Josaba praefiguratas est. Verdadeiramente S. José foi figurado em Josabá: Quae Joas infantem clam nutrivit, et aluit: que guardou ao infante Joás vivo e encoberto: Ac regem Israel tandem constituit: e finalmente o fez rei de Israel, metendo-o de posse do reino, que lhe tocava. E não é isto mesmo, o que fez S. José com o rei e reino de Portugal? Nem o caso pode ser mais próprio; nem eu quero dizer mais nesta matéria.

Estas são as obrigações em que S. José tem empenhado a Vossa Majestade, Senhor; e as consequências delas são, que assim como S. José não só foi Salvador do Salvador, senão também do mundo; assim não foi só Salvador do nosso Libertador, senão também do Reino libertado. Espero em Deus que o hei-de provar literalmente. Benedictio illius, qui apparuit in rubo, veniat super caput Joseph [Deuteronómio 33, 16.] A bênção daquele que apareceu na sarça, desça sobre José. Esta bênção foi lançada ao patriarca José, e diz o Pelusiota e outros, que se cumpriu em S. José, Esposo da Virgem. E qual foi a bênção daquele, que apareceu na sarça a Moisés? Ele mesmo o disse: Vidi afflictionem populi mei, et descendi ut liberem eum [“eu vi, eu vi a miséria do meu povo, por isso desci a fim de libertá-lo” Êxodo 3, 7 e 8.] Vi a aflição do meu povo debaixo do poder de um rei estranho, e desci do Céu a libertá-lo. Pois se a bênção do que apareceu a Moisés na sarça, é ser libertador do povo oprimido do poder de um rei estranho, e esta bênção se cumpriu em José, Esposo da Virgem; digam-me agora, os historiadores, quando se cumpriu esta bênção, senão na restauração de Portugal. Viu o Santo as aflições deste povo verdadeiramente seu; e desceu do Céu a libertá-lo, guardando com particular providência a vida do nosso felicíssimo libertador, como fez à de Cristo, segundo a protecção que tomou em um e outro nascimento: Custos nati Regis, que foi o fim com que se desposou com a Virgem:Cum esset desponsata Mater Jesu Maria Joseph.


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