quarta-feira, 29 de abril de 2009

Cartas do P.e Aldo 43



Asunción, 11 de novembro de 2008.

Caros amigos,
Novembro nos recorda uma “máxima” cristã que me é familiar desde pequeno: “memorare novisima tua et in aeternum non pecabis” – recorda-te dos novíssimos e nunca mais pecarás. E os novíssimos são quatro: morte, juízo, paraíso e inferno.
Este pensamento, que desde pequeno me acompanha, há alguns anos é a constante que domina os meus pensamentos, presenteando-me com uma grande paz, uma dinamismo que não dá trégua, uma criatividade incessante e um amor impressionante pelo instante no qual jogo o meu destino aqui e depois.
O hospital é um grande momento para fazer esta memória e, por isto, é um desafio contínuo à razão, à vida, a levar a sério a realidade. Para mim, a clínica para pacientes terminais é a evidência de que a vida, a realidade pede a eternidade.
O ponto é a vida, é a realidade e não o papel ou as coisas a fazer que, se não entram nesta perspectiva, nos asfixiam.
Acompanhado, cada dia, pela Escola de Comunidade, que neste momento nos desafia com o capítulo sobre a obediência – da obediência a uma companhia – vivo a clínica como o conteúdo desta amizade. A clínica é este “alguém que caminha diante de mim”. Cada doente é este “alguém que caminha diante de mim”, porque, por exemplo, olhando para Celeste, a menina que sofre de leucemia (olhem que bonita que ela está nas fotos que mando junto), não posso não me perguntar: “mas, porque ela é tão diferente de mim que perco a coragem tão facilmente, tenho medo; enquanto que ela, no meio da dor terrível que sente, transpira uma paz, uma serenidade que só Jesus lhe pode dar?”. E, assim, fico ali, do seu lado, olhando-a, fazendo-lhe um carinho, rezando e aprendendo. Tenho tanta vontade de ficar com ela, assim como de ficar com Victor que geme continuamente e que tem o tórax todo incurvado pelo esforço enorme que faz para respirar, enquanto que seu coração resiste inexplicavelmente – parece uma locomotiva a vapor. Dou-me conta de que não posso não obedecer a eles, porque eles, constantemente, me remetem àquilo que meu coração deseja, de tal forma que, quando acontece de eu apresentar ainda alguns traços da depressão (que tomam conta de mim), não me deixo “levar” pelo estado de ânimo e repito sempre “eu sou Tu que me fazes”. E, assim, o meu caminho não é bloqueado pelo mal estar que sinto no estômago ou pela angústia que me anuvia a vista e todo o resto... Pelo contrário, entendo sempre mais aquilo que São Paulo diz quando afirma “completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo, pelo seu corpo que é a Igreja”.
Olhando para estas minhas crianças, entendo que o ponto é a vida e não o estado de ânimo; mesmo se o estado de ânimo faça parte da vida, não define a vida. Olho para eles e me dou conta de que eles e eu não somos e não podemos ser definidos nem pela leucemia, nem pela falta de um crânio, nem pela água que Victor carrega dentro da cabeça e mantida ali por uma pele fina, nem pela minha depressão (quando ela toma conta de mim). É a vida a questão e a vida pede a eternidade.
Assim, se entende o testemunho de uma enfermeira daqui, quando fala de sua relação com uma doente de AIDS que morria entre seus braços:

Foi uma tarde de domingo muito triste

Já era uma da tarde e eu fui ao quarto de Bernardina. Encontrei-a muito mal. Respirava com muita dificuldade. Saí correndo para chamar Sílvia e dizer-lhe como estava Bernardina. Fomos juntas até ela e lhe perguntamos: “Como está, Bernardina? Tem alguma coisa incomodando você?”. E ela responde: “Estou bem!”. Olhamo-nos e dissemos uma a outra: “Meu Deus! Com o que está sofrendo, ainda diz que está bem!”.
Ficamos ali, tomando conta dela. Sílvia ligou para a D.ra Olmedo, que sugeriu alguns
medicamentos. Bernardina estava sozinha. Justamente naquela manhã o seu marido tinha voltado para casa. Pedi a Diana que ligasse para a família. Bernardina estava morrendo... estava com a respiração artificial. Às três da tarde, chegou uma senhora dizendo que era a cunhada de Bernardina. Ficou 5 minutos com ela. Em seguida, entrou um senhor que parecia ter medo dela.
Às quatro e quinze, enquanto celebravam a Eucaristia no Bloco A, disse a Sílvia que ficaria com Bernardina: “não quero que ela vá embora sozinha. As pessoas que vieram vê-la já foram embora”. Fomos até Bernardina, fizemos-lhe um carinho no rosto e nas mãos e limpamos a sua boca que estava espumando. Às quatro e cinquenta, passou a Procissão do Santíssimo, que ficou um bom tempo diante dela.
Logo depois, chegou uma senhorinha que me perguntou: “minha cunhada está muito mal?”, e eu respondi que sim. Ela me disse, então: “Telefonaram para mim e me pediram para vir... trouxe os seus filhos – estão lá embaixo –, vieram para a sua mãe”. Perguntei a ela: “Vai ficar com Bernardina?”, e ela disse que sim. Fui, então, vestir um doente. Antes que eu começasse a vesti-lo, bate à porta aquela senhora me dizendo que Bernardina estava muito mal. Saí correndo para vê-la, mas ela já estava morta. Fiquei angustiada. Bernardina morreu sozinha... a sua cunhada tinha descido para chamar seus filhos, mas eles não chegaram a tempo de ver sua mãe ainda viva.
Fui chamar Sílvia e lhe disse que Bernardina estava morta. Sílvia ficou muito mal. Fizemos todos os cuidados postmortem. Tínhamos que tirar o corpo de Bernardina dali... saia líquido de todos os lados: pela boca, pelo nariz e até pelos olhos.
Sílvia me dizia que tinha um nó na garganta... fui buscar os lençóis e, quando voltei, encontrei Silvia chorando inconsolavelmente. Enquanto limpávamos Bernardina, eu dizia a Sílvia: “força! Tranquila!”. Colocamos seu corpo na liteira e a levamos para a capela. Diana nos fez rezar por Bernardina, mas não conseguíamos rezar por causa do choro. Demos um beijo no rosto de Bernardina e saímos chorando, enquanto seus filhos estava fora. Não entraram na capela enquanto rezávamos. Pedimos-lhes que entrassem para ver sua mãe e, só então, entraram.
Para nós, foi um domingo muito triste. Agradecemos por ter tido Bernardina conosco na Clínica e por nos lembrarmos da última coisa que nos disse sem se importar com o quanto estava mal: “ESTOU BEM!!!”.

Teresa, como as outras enfermeiras, comove pela consciência que tem de cada doente. É como se o Mistério que nos envolve e nos cria em cada momento a tornasse capaz de uma ternura, de um envolvimento com os pacientes, até o ponto de sentir o que eles sentem, a dor dos outros. Bernardina tinha chagas espalhadas por todo o corpo – escaras de decúbito – nas quais cabia uma mão e se podia ver o osso... mesmo assim, a limpavam com um amor e com uma delicadeza inexplicáveis.
O encontro que faço semanalmente com elas, com os médicos, com o pessoal da limpeza, da lavanderia ou da cozinha, me enche de vida, porque é como se eu pudesse ver a Escola de Comunidade encarnada, até o ponto de que aqueles que viviam em concubinato pedem para se casar, outros pedem para se confessar ou para fazer a primeira comunhão. Não sou eu que lhe peço essas coisas, mas é a realidade vivida com paixão que – sim ou sim – me remete e remete a cada um a Cristo. Não partimos de Cristo – arriscaríamos de ser ideológicos –, partimos da realidade, como afirma São Paulo: “é Cristo”. É como dizer que vivendo a vida intensamente, em todos os seus aspectos, a pessoa ou vai embora ou se abre para o Mistério... até o ponto de alguém me dizer como os apóstolos no capítulo 6 de São João: “mas, padre, para onde podemos ir... esse lugar nos educa à beleza da vida, nos faz ver a morte como abertura para a vida eterna”.
Quando, a cada dia, por três vezes, fazemos a Procissão Eucarística, ajoelhando-me e beijando doente por doente – não importando o que ele tem (se a tuberculose ou a saliva lhe saem da boca ou não) –, sinto, sentimos viva a Presença de Jesus. E lhes garanto que são os momentos mais belos! Momentos nos quais o meu estado de ânimo, tão frequentemente flutuante, é submetido pela clareza do juízo, ou seja, pela certeza de que o Mistério e o sinal coincidem. De tal forma que vocês podem imaginar o que quer dizer esta consciência, quando, saindo da clínica, passo para ver os velhinhos na casa – família criada para eles como alternativa aos frios asilos com dezenas de idosos – ou quando, a cada dia, pela manhã, encontro minhas crianças para levá-las para a escola ou, à noite, para colocá-las na cama. Que impressão me causa vê-los comendo todos juntos, vê-los se levantando quando a mãe adotiva se levanta, ver como cada um leva para a pia o seu prato (no qual não fica nem mesmo uma migalha... eles só podem se levantar quando comeram tudo... porque, assim, se entende o que é a Providência)... ver, depois, como tem sempre aquele que pega a vassoura, aquele que pega o pano de chão ou o rodo... cada um trabalha... pois a casa é a casa deles. E eles têm apenas entre 4 e 11 anos de idade. E pensar que, em fevereiro, eram como se fossem animaizinhos.
Outro dia, como há cada quinze dias, me encontrei com o conselho de família (as duas mães, a psicóloga, a assistente social, o advogado, a responsável pelas duas casinhas, a diretora da escola) e saí feliz da reaunião, porque a diretora da escola disse: “a maioria das crianças vai ter que repetir de ano [e é justo, porque se não sabem é justo que repitam de ano]... mas, padre, humanamente são irreconhecíveis se comparados a quando chegaram. Há neles o início de uma auto-estima, sorriem, sabem usar o banheiro e sabem se limpar, convivem e brincam uns com os outros, fizeram amizades, os pequenos desvios homossexuais não existem mais. Em suma, de zero passaram a um, de nada passaram a alguém”, ela disse. Juro para vocês que não tinha ninguém mais contente do que eu ali!
No fundo, eu pensava: “o que vivemos com estas crianças é o caminho da Escola de Comunidade”. Porque, o que é a fé, a confiança, a correspondência, o coração, a liberdade, a obediência, se não o fato de uma criança se confiar a um adulto que, vivendo a realidade, infunde nela a ternura e a segurança.
Um exemplo para encerrar. Rosita é uma menininha de um ano cheia de problemas. Não conseguia, até bem pouco tempo atrás, ficar sentada no chão ou em qualquer outro lugar. Devagar, comecei a colocá-la assentada, protegendo-a com os meus braços fechados, em forma de círculo em torno do seu corpinho. Foram suficientes alguns dias para que aquele recinto feito pelos meus braços lhe infundissem segurança até o ponto de ela começar a viver um equilíbrio. Porém, quando eu tirava os braços, ela chorava desesperadamente e caia. Pois bem, depois de um pouco de tempo, aconteceu o milagre: mantenho os meus braços comigo e ela, sorridente, fica assentada sozinha. A obediência a uma amizade, a uma paternidade, torna-nos livres e capazes de andar com as próprias pernas. Amigos, isto é viver, educar. Mas, isto vale também para os dois rapazes doentes de AIDS – Luciano e Alcides – que me foram confiados no fim da vida e com o caixão pronto para enterrá-los. A mesma paixão tida pela Rosita é a que tenho por toda a clínica. Agora, eles comem, caminham, riem e contam para todo mundo o milagre. Em breve, eu os levarei para a fazenda onde moram outros rapazes nas mesmas condições, recuperados para a vida.
Mas, o bonito é que o mesmo acontece com os meus “doidos”, que se parecem tanto comigo. Chegam aqui sem cabeça, como Giorgio, que, atualmente porém, está empenhado com a impressão de dois livros meus: em dois anos recuperou a normalidade. Tem AIDS, porém, para ele, é como ter uma pérola preciosa, porque ele, judeu, encontrou a fé católica e se tornou um católico fervoroso que se confessa frequentemente e vai à Missa todos os dias. Mas, pensem, não tem um só doente que não esteja na graça de deus e não me peça os sacramentos! E, entre eles, existem homossexuais, lésbicas, travestis, concubinos... todo o humano na sua grandeza miserável. E Deus tem para todos uma surpresa: encontrar o gosto pela vida e a beleza da morte para chegar a Ele.
Desejo a todos que a liturgia deste fim de ano nos faça descobrir e saborear os quatro novíssimos.

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