quinta-feira, 1 de julho de 2010

O “não” de Saramago: quando uma certa liberdade produz miséria e desespero



Por Maria do Rosário Leitão Lupi Bello

No romance do Nobel de literatura José Saramago (1922-2010), intitulado História do cerco de Lisboa (1989), o personagem do redator Raimundo Silva acrescenta um “não” à frase na qual se diz que, no século XII, os cruzados decidiram ajudar o rei de Portugal a conquistar a cidade ocupada pelos mouros. Os eventos históricos se veem, desta maneira, artificiosamente modificados por meio da subversão total do seu significado, em um exercícios que quer ser criador daquela novidade que a história “oficial” não é presumivelmente capaz de dar (“a dita história é cada vez mais incapaz de surpreender”, afirma o escritor em 1998, num discurso proferido na Real Academia Sueca).
Sem pretender entrar na análise das complexas relações que, na criação literária, podem se estabelecer entre a realidade a ficção, vale a pena tomar este episódio como exemplo daquela que foi a posição do escritor como literato e cidadão comunista sempre empenhado com a política: a crença, constantemente declarada, no valor da “resistência” individual e coletiva aos fatos da História, enquanto modo supremo de realizar a liberdade.
É bem visível, no conjunto das suas numerosas obras, entre as quais ressalta, sem dúvida, o seu fascínio pela narrativa e o seu talento de contador “oral” de histórias, o efeito deste conceito de liberdade como recusa e como negação. Antes de tudo, no tom da amarga ironia (mesmo nos casos em que escreve paródias), que predomina nos seus romances, cheios de personagens sofredores, vitimizados e revoltados ou rebeldes, mas também em um tipo de construção narrativa sempre organizada em torno de uma determinada tese a ser defendida.
É o mesmo escritor que se define um “escritor de ideias” e que afirma: “sou um ensaísta que tem necessidade de escrever romances porque não sabe escrever ensaios”, colocando-se com precisão naquela posição teórica e abstrata que uma escritora como Flannery O’Connor descreveria como uma atitude ideológica do romancista fraco e inexperiente: a preocupação com as ideias e com as emoções pobres, com temas e problemas de impacto sociológico, ao invés da atenção ao “tecido da existência (...), a estes detalhes concretos da vida que tornam presente o mistério da nossa posição na terra”.
Nisto consiste a luta de Saramago (que ele chama, sem meias palavras, de “guerra”), manifestada, do ponto de vista literário e existencial, no seu zelo em desafiar e atacar a Igreja, na sua obsessão desesperada e pretensiosa de subverter o conteúdo da Bíblia e na sua recorrente declaração de ateísmo. Livros como Memorial do Convento (1982), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a Cegueira (1995) ou Caim (2009) evidenciam com particular clareza a recusa a priori de aceitar a hipótese segundo a qual a realidade possa ser constituída por uma dimensão não plenamente explicável pelo homem. A razão, entendida como capacidade de explicação, é, para Saramago, a medida do próprio eu e, por isso, o escritor olha para a vida como devedora da própria arte, na qual o papel de um narrador sempre onisciente, onipotente e intervencionista, explicitamente identificado com o mesmo (e clarividente) autor, é o de construir o único lugar da possível “redenção” e de orientação de uma humanidade cega, mesquinha, repugnante e desesperadamente perdida.
É impossível não ver, no gigantesco e muito “popular” sucesso que a sua obra encontrou (não obstante o inconfesso tédio que a leitura das suas obras provoca em muitos), a perícia da propaganda comunista em toda a sua capacidade – para a qual, diga-se de passagem, a mulher com a qual viveu desde 1988, a jornalista espanhola Pilar del Rio, contribuiu de modo decisivo. Mas, é igualmente evidente que toda a glória aparente de uma vida fundada sobre a convicção de que o “ser humano inventou a Deus e, depois, se tornou Seu escravo” revela, no fim, a ironia da real escravidão para a qual esta repugnância conduz ao se render ao mistério, que, não obstante tudo, Saramago parece entrever, como atesta a sua obsessiva retomada dos mesmos temas.
Como, recentemente, escutamos do cineasta Manuel de Oliveira, em Lisboa, diante do Papa Bento XVI, citando o grande orador do século XVII, Padre Antônio Vieira, “a palavra 'não' é terrível”, porque “o 'não' elimina toda a esperança, que é a última coisa que a natureza deixou ao homem”, a este homem cuja grandeza, liberdade e fecundidade se escondem no fato de não poder não desejar dizer “sim” ao infinito.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 01 de julho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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