Por Simone Fortunato
Numa Inglaterra onde a expectativa de vida chegou aos 100 anos, graças a um rigoroso programa de doação de órgãos, as existências de três jovens doadores se cruzam
Um drama esplêndido, suave e sofrido, dirigido pelo diretor de um único filme, o interessante Retratos de uma obsessão, e de muitos videoclipes musicais. O seu nome é Mark Romanek e vale a pena sublinhá-lo, porque teve sucesso num empreendimento: dirigir um filme de ficção científica sem efeitos de nenhum tipo e sustentado apenas pela interpretação de três jovens atores – Keira Knightley, Andrew Garfield e Carey Mulligan –, um melhor que o outro, e sobretudo tomando da ficção científica seu verdadeiro núcleo não muito escondido: as perguntas pelo sentido. Deste ponto de vista, o filme, suspenso numa atmosfera indefinida e marcado pelas cores outonais, configura-se como um grande filme sobre a pergunta fundamental do ser humano. Quem sou eu? Qual é o meu destino? Para que sirvo? Por que viver e morrer? São as perguntas que os três protagonistas se fazem, sempre e continuamente. Eles as fazem na infância – o prólogo do filme – vivida entre os muros aparentemente quentes e acolhedores do internato Hailsham, gerido por uma diretora (Charlotte Rampling) maternal e severa quanto ao que respeita a relação com estes órfãos de pai e mãe e de destino marcado. Eles as fazem na relação que estabelecem entre si e nas contradições típicas da adolescência, quando a amizade e o amor se confundem, quando é preciso conviver com os sentimentos mais diversos e quando as pulsões sexuais parecem querer dominar tudo. Sozinhos, diante de um mundo que – exceção feita a um dos professores do internato – nem mesmo se dá conta da existência deles, os três jovens tentam, assim como conseguem, fazer companhia uns para os outros: acompanham-se no momento de enfrentarem uma dor que parece certa ou diante de um destino que parece predeterminado desde os primeiros momentos de suas vidas. No entanto, os três sonham que o amor e a amizade entre eles durarão para sempre, ou ao menos esperam obter do Poder uma prorrogação, alguns anos a mais, antes da separação inevitável. Esperam contra toda esperança.
São, pelo menos, dois os níveis através dos quais se pode ter acesso ao filme: o primeiro é eminentemente cinematográfico. Não me abandone jamais leva adiante o mesmo discurso de Gattaca, obra-prima da ficção científica das perguntas (anos 1990), e Romanek, através de um estilo sóbrio, sem frescuras, permanece fixo no essencial. Mais do que o non sense de um mundo no qual o progresso tecnológico reduziu o homem a objeto de consumo, o que conta mesmo é o coração destes jovens que amam, esperam, vivem e sofrem diante das contradições da vida que pertence a todos, de forma que amam para sempre, não obstante o amor seja, por sua natureza terrena, finito. Saint-Exupéry escreve n’O Pequeno Príncipe: “A prova de que o Pequeno Príncipe existiu está no fato de que era muito bonito, ria e queria uma ovelha. Quando alguém quer uma ovelha é a prova de que existe”. A prova de que os três jovens existem e são homens é que se amam e desejam que seja para sempre o amor que sentem. Neste sentido, Romanek, de um ponto de vista estilístico, retoma com grande respeito o cinema de Kubrick, cujo 2001, além de ser a obra-prima definitiva do cinema das perguntas fundamentais da vida, é também um dos filmes de culto do diretor de Retratos de uma obsessão. A mesma abordagem científica, a mesma aparente frieza quanto ao sofrimento dos protagonistas, que parecem deixados sozinhos, abandonados a si próprios. No entanto, a bem da verdade, assim como, no final de Glória feita de sangue, ou em alguns momentos de Barry Lyndon e do mesmo 2001, Kubrick chora silenciosamente as muitas crueldades que o Destino infringe aos seus personagens, assim também faz Romanek, nas sequências que se passam no hospital com os protagonistas doadores e no final, cheio de espera diante de um horizonte bastante sugestivo.
A segunda chave de leitura é a metafórica e simbólica. O filme, apenas a partir de uma análise inicial bastante superficial, fala do outro de nós, de outro lugar e de outro tempo. Na realidade, Não me abandone jamais fala do aqui e do agora. É possível ver isso nos tons de contos de fadas e também kafkianos do prólogo; é possível ver isso também na falta quase absoluta de referências espaço-temporais; mas, sobretudo, é possível ver isso na ideia de fundo do filme, ou seja, a de que somos todos “doadores”.
Ficha técnicaTítulo original: Never let me go
Gênero: drama
Duração: 1h45min (105 minutos)
Ano de lançamento: 2010
Site oficial: http://www.foxsearchlight.com/neverletmego/
Diretor: Mark Romanek
Elenco principal: Carey Mulligan, Andrew Garfield, Keira Knigtlley
Temáticas: sentido da vida, morte, doença, amizade, amor, clonagem
Censura: 12 anos
Sinopse: Ruth, Kathy e Tommy cresceram juntos em um internato, na Inglaterra. Já jovens adultos, os três são obrigados a encarar a verdade sobre a infância.
Avaliação: imperdível
* Texto extraído do site Sentieri del Cinema. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.
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